Consciência histórica e líderes indígenas: Havaí. Revista BRASIL-EUROPA 126. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

Por motivo da passagem de um quarto de século da oficialização, na Alemanha, do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS e.V.), originado do Centro de Pesquisas em Musicologia fundado e registrado em São Paulo, em 1968, retomaram-se, in loco, aspectos de discussões desenvolvidas durante o trabalho da instituição relativos à comunidade de ascendência portuguesa no Havaí.

O particular interesse de questões relativas a essa comunidade reside sobretudo no fato de que aqui, em esfera de língua inglêsa, estudos culturais lusológicos poderem ser conduzidos também sob aspectos não necessáriamente vinculados com a lusofonia. (Veja "Tema em debate", nesta edição)

Uma questão que se levanta diz respeito à consciência histórica dos imigrantes e seus descendentes e às transformações por que passou com o encontro com uma diferente cultura de saber histórico e outros edifícios historiográficos de construção de nacionalidade.

Essa questão tem-se mostrado como de particular importância na análise de narrativas cantadas, em particular nos romances. A transmissão de fatos históricos e interpretações de ocorrências históricas teem sido também analisadas em representações com dança e música do repertório tradicional da cultura lúdica ibérica, também conhecido e em parte vigente no Brasil.

Nessas representações, sobretudo naquelas relacionadas com "as lutas entre cristãos e mouros", que perpetuam a memória de fatos decisivos para a Espanha, Portugal e para a Cristandade européia em geral, e que focalizam sobretudo o vulto de Carlos Magno (747/8-814), demonstra-se de forma exemplar o relacionamento entre a narrativa e a estrutura no processo transmitivo.

Como apresentado em publicações e discutido em congressos e simpósios do ISMPS e da Academia Brasil-Europa, entre outros na sessão de Parati do Congresso Internacional de encerramento do triênio pelos 500 anos do Brasil (2002), é a estrutura intrínseca ao processo que permite a atualização histórica e da sua adaptação em diferentes contextos. É essa sistemática inerente ao decorrer temporal da narrativa que possibilita a substituição de vultos e enrêdos históricos segundo situações e memórias locais, por exemplo através da substituição de Carlos Magno pelo rei do Congo e a dos mouros pelos seus inimigos em contextos africanos cristianizados ou, no caso do México, por astecas em "danças da conquista".

Os imigrantes portugueses que chegaram no Havaí confrontaram-se, - diferentemente daqueles que vieram para o Brasil -, com uma cultura de narração não marcada por elos de continuidade na consciência histórica que levam por fim a Carlos Magno e às lutas pela unificação da Europa sob o seu império, marco fundamental da história nacional de países europeus como a França e a Alemanha. Encontraram, no Havaí, uma linha memorial determinada pelo vulto de Kamehameha "O Grande" e às lutas pela unificação do arquipélago havaiano sob a sua chefia. Também no Havaí a transmissão da memória de fatos e ocorrências históricas deu-se sobretudo através de narrativas cantadas.

A questão que aqui se coloca diz respeito ao cotejo das estruturas subjacentes às narrativas nos dois contextos. Se as representações simbólicas das expressões festivas católicas não foram transmitidas ao Havaí devido à sua formação protestante, como se explicariam similaridades na sua estrutura? Representariam tais similaridades apenas coincidências históricas ou deveriam ser vistas como repercussões contextualizadas de modêlos de pensamento inerentes à cultura dos europeus, ainda que não conscientes? A análise da situação havaiana promete, aqui, subsídios ao esclarecimento de questões da própria cultura européia e de mecanismos de processos transformatórios em geral.


Kamehameha "O Grande": um Carlos Magno havaiano?

O observador brasileiro surpreende-se, no Havaí, ao constatar a presença de um chefe nativo, com os seus atributos tradicionais, em monumentos erigidos em locais nobres de Honolulu e de outras regiões, em particular em Hilo (Big Island). Quase que não se recorda de monumentos similares a algum cacique em cidades brasileiras, onde os indígenas ou surgem, em geral, aos pés de missionários, como espectadores ou como acompanhantes de "bandeirantes". Surpreende-se também com a valorização da cultura indígena em Estado norte-americano, tomando consciência da situação altamente singular que significa o fato de de que, no Brasil, toda a representação pouco mais nobilitante do indígena do século XIX ser criticada, mesmo por intelectuais esclarecidos, como expressão de indigenismo romântico e, portanto, como europeísmo inadequado a uma consciência cultural nacional (sic!).


O observador brasileiro conscientiza-se, assim, que a monumentalização do chefe indígena do Havaí levanta questões de compreensão histórica, de criação de imagens e de identidade que nem sempre são fáceis de ser respondidas e que necessitam ser elas próprias consideradas nas suas transformações de sentido no decorrer do tempo.

Percebe, também, que uma ocupação com essas questões da historiografia e da cultura comemorativa e memorial havaiana pode ser de utilidade para os próprios estudos brasileiros, uma vez que aguça a sensibilidade para determinados aspectos de concepções históricas. O costume e os elos emocionais com fatos, figuras e ocorrências daqueles inseridos em determinos contextos impedem muitas vezes reflexões à distância.

A diferença das situações implica numa diferença da perspectivação histórica. O unificador do arquipélago e, assim, o fundador da nação havaiana surge como aquele que foi o que recebeu, como senhor, altivo, consciente de si e forte, os europeus que vinham pelos mares.

Outra é a perspectiva de obras históricas brasileiras, mesmo aquelas que procuram mostrar a chegada das caravelas a partir da perspectiva da terra: os índios é que observam os portugueses que chegam, levantam a cruz e celebram a primeira missa.

Os chefes unificadores de tribos indígenas no Brasil não são perenizados como heróis, e uma "Confederação dos Tamoios" ou uma unificação de Temiminós sob Araribóia são, em geral, vistas a partir da perspectiva daqueles europeus que se saíram vitoriosos.

O fundador do Havaí unificado é celebrado, assim, como sendo um nativo indígena, o que não é o caso do Brasil: qual é o nome de cacique indígena que surge como fundador de nacionalidade?

O observador brasileiro constata, assim, uma fundamental diferença entre a história havaiana e a brasileira: a monarquia do Havaí teve bases indígenas, não foi extensão de famílias européias. Foram nativos de ancestralidade polinésia que trataram com diplomatas e soberanos europeus, e a autonomia do país manteve-se em mãos nativas, não tendo sido necessária uma proclamação de independência. O paradoxo, porém, é que essa autonomia de nação independente sob a égide de monarcas indígenas já não existe, uma vez que o país, décadas mais tarde, foi norteamericanizado por missionários, possuído e anexado pelos Estados Unidos.

O desenvolvimento histórico e a própria cultura simbólico-comemorativa do Havaí  surgem como altamente singulares: qual o sentido das lutas indígenas pela unificação dos grupos insulares sob Kamehameha "O Grande", ato celebrado como fundamento da consciência nacional, à luz da situação política atual de um país que perdeu a sua autonomia? Qual o sentido desses monumentos à luz dos fatos criados pela posse e anexação?


Pressupostos: recepção de James Cook (1728-1779) na terceira viagem

Em 1778, na sua terceira viagem, à procura de passagem a Noroeste, James Cook atingiu com os seus navios Resolution e Discover Waiumea, em Kaua'i. Denominou, então, o arquipélago de Ilhas Sandwich, em homenagem a John Montagu, 4° Earl of Sandwich (1718-1792). Em novembro desse ano, vindo das regiões árticas, à procura de um local ameno em que pudesse realizar reparos nos navios e recuperar forças, atingiu as costas de Maui em fins de novembro. Velejando pelo seu litoral, os europeus foram visitados pelo velho chefe da ilha de Havaíi, Kalaniopu'u.

Ao partir, deixou a bordo da Resolution um jovem chefe, Kamehameha, para guiá-lo até a ilha maior do arquipélago (Big Island), onde prometia que seriam recebidos com hospitalidade. Aproximaram-se do Upolu Point a 1 de dezembro, passando a circumnavegar a ilha. Alcançou o Cape Kumukahi, o ponto mais a leste da ilha, a 19 de dezembro, sendo forçados a voltar em direção norte. Passando pelo sul da ilha, no início de janeiro de 1779, e navegando paralelamente ao litoral ocidental da ilha, Cook enviou William Bligh (1754-1817) a explorar as redondezas à procura de água fresca. Foram, então, surpreendidos por mais de mil canoas, com ca. de 10000 pessoas.

A 17 de janeiro, encontraram porto seguro e água fresca na baía Kealakekua. Cook foi recebido com uma cerimônia no Hikiau Heiau. Tenho chegado na época do ano associada ao deus Lono, foi visto como sua personificação. O chefe Kalaniopu'u instalou-se do outro lado da baía e os estrangeiros receberam alimentos, madeiras e água fresca. Entretanto, com o conhecimento mais próximo, as relações tenderam a esfriar-se. Ao prosseguir a viagem de exploração, a quebra do mastro da Resolution, na baía de Kaiwaihoe, forçou-os a retornar à baía Kealakekua, ali chegado a 11 de fevereiro. A recepção, agora, não foi tão calorosa como da primeira vez e o chefe Kalaniopu'u demonstrou o seu desagrado pelo retorno. Nesse contexto, Cook foi envolvido em uma luta, no qual foi morto, juntamente com quatro marinheiros e vários havaianos.

Após a restauração das boas relações, os navios partiram em 22 de fevereiro de 1779. Os europeus exploraram outras ilhas, a de Lana'i, Moloka'i e Kaho'olawe, ancorando então na baía de Waimea e nas proximidades do Leahi Point. A recepção por parte de centenas de nativos que correram às praias foi fria. 

Na Europa, tomou-se conhecimento do Havaí através dos registros dos viajantes e das pinturas do artista da expedição. (Veja textos no número anterior desta revista)

Kamehameha, rei de 1795 a 1819

História e mito mesclam-se nas narrativas sobre Kamehameha. A força de sua personalidade foi explicada com um antigo mito que previa a vinda de um grande rei e que o seu nascimento seria prenunciado pelos céus. Por essa razão, como o cometa de Halley foi visto no Havaí em 1758, supõe-se ser essa a data de seu nascimento. Kamehameha surge, assim, como vulto marcado pelos desígnios celestes.

Era o sobrinho do chefe Kalani'opu', tendo, assim, vivenciado a viagem de Cook a Big Island, a sua recepção e o seu posterior assassinato. Experimentou, assim, a transformação de sentimentos, a receptividade e hospitalidade iniciais e o despertar da desconfiança. Após a morte de Kalani'opu', em 1782, o seu filho Kiwalao assumiu a chefia de Big Island e Kamehameha o cargo religioso-sacerdotal de guardião do deus Kukailimoku, a divindade da guerra.

Em 1786, um dos mais poderosos reis das ilhas era Kahekili, de Maui, que também dominava O'ahu, Moloka'i e Lana'i, além de controlar Kaua'i e Ni'ihau. As façanhas guerreiras de Kamehameha alcançaram um primeiro grande sucesso com uma vitória sobre Kahekili, em 1790.

Kamehameha, com os conhecimentos e a proximidade aos europeus obtidos na sua juventude, à época de Cook, procurou ganhar o apoio dos europeus para a concretização de suas intenções de poderio. Assim, conseguiu auxílio de europeus deserdados de seus navios em estadias anteriores, de diferentes nações. Dentre os europeus que mais o auxiliaram, mencionam-se Issac Davis (ca. 1758-1810), John Young (ca. 1742-1835) e George Vancouver (1757-1798). Uma de suas principais intenções ao aproximar-se de europeus era a de conseguir armas e munições, com as quais conseguia supremacia militar sobre os seus conterrâneos. Em 1810, havia-se tornado chefe único do arquipélago.

George Vancouver e a imagem de Kamehameha na Europa do século XIX

Vancouver  tomou parte na segunda viagem de Cook, a bordo da Resolution. Na terceira viagem, foi tripulante da nave Discovery, também realizando mapas. Já como tenente, assumiu o HMS Martin, em dezembro de 1780, patrulhando o Mar do Norte e o Canal da Mancha, antes de partir para as ilhas Ocidentais, em 1782. A bordo do HMS Europa, em 1784, retornou a Jamaica.  Em fins de 1790, foi designado como comandante de uma expedição ao Pacífico, dirigindo-a de 1791 a 1795. Mapeou grande parte da costa americana do norte e noroeste, da California ao Alaska. Tornou-se capitão em 1794. Deixou um relato de suas viagens, não completo por ocasião de sua morte.

O estudo do vir-a-ser da imagem histórica de Kamehameha "O Grande", que pode ser considerada como um fenômeno da historiografia de contextos globais do século XIX, não pode deixar de considerar a recepção dos escritos de viajantes na Europa. Por ter criado, com as suas lutas internas para a unificação do arquipélago sob o seu domínio pressupostos para o relacionamento comercial das potências européias com um único chefe, poderoso e apto a tomar decisões, criou-se dele uma imagem predominantemente positiva. Embora registrando-se a sua ambição e mesmo a violência com que alcançou os seus objetivos, passou-se a sallentar a mudança de suas atitudes após ter subido ao poder, as suas qualidades de liderança e mesmo pessoais. Esse julgamento histórico deve ser analisado no próprio contexto da história político-cultural e das idéias na Europa, surgindo como uma projeção de concepções de chefe-de-estado forte, de herói, de líder militar que, apesar de toda a questionabilidade de intenções e procedimentos consegue vencer através da energia e da força de sua personalidade, criando em Kamehameha uma espécie de Bonaparte do Pacífico. A construção da imagem de Kamehameha apresenta-se, aqui, como uma singular expressão da história das concepções históricas do século XIX.


Baseando-se sobretudo em descrições das experiências de Vancouver, procurava-se demonstrar que Kamehameha era o único vulto capaz de impor ordem numa situação marcada por contendas internas e que levava à destruição.


"Uma observação triste tiveram que fazer Vancouver e aqueles que haviam feito as primeiras viagens a essas ilhas: a infertilidade e a desolação que se haviam alastrado sobre essa terra que haviam visto antes tão florescente. Onde se haviam levantado aldeias cheias de vida, cresciam agora arbustos de espinhos e limo, que se estendiam sob as ruínas das casas. Os jardins, os campos estavam sem ser cultivados; e onde os navegantes haviam encontrado insulanos hospitaleiros, não viam agora nada mais do que roças abandonadas e desertos. Via-se que havia sido feita vingança, que houvera guerra amarga e impiedosa. Dos chefes, que Vancouver havia conhecido na sua viagem em 1779, apenas um levantava-se de tantas ruínas, e esse cacique, que começou a sua carreira como grande homem, era Tamea-Mea." (G. L. D. de Rienzi, Oceanien oder Der Fünfte Welttheil. Welt-Gemälde-Gallerie oder Geschichte und Beschreibung aller Länder und Völker, ihrer Gebräuche, Religionen, Sitten u.s.w. (...) Aus dem Französischen. Oceanien 2. Band. Polynesien, Stuttgart : E. Schweitzerbart's Verlagshandlung, 1837-1839, 158)


Kamehameha é apresentado não apenas como líder militar, mas sim como homem de gênio, corajoso e cheio de ânimo, astuto e inteligente. Assim, a mencionada obra enciclopédica de G.L.D. de Rienzi  salienta como Kamehameha foi de encontro ao comandante inglês sem proteção, apresentando-se de forma auto-consciente e corajosa como homem nobre, inteligente e esclarecido. Cria-se dele uma imagem de chefe que já teria compreendido as vantagens que o contato com os europeus trariam para os seus subalternos e que se propunha a usar de sua posição de autoridade para tornar-se um modêlo a ser imitado. Êle saberia que, com o exemplo de confiança e coragem que dava, o povo, cheio de ânimo, assimilaria idéias européias com entusiasmo e tornar-se-ia, assim, apto às reformas que desejava encetar. (op.cit. 159)

Essa interpretação cria, assim, quase que um romance de Kamehameha, no qual os dados históricos são inseridos num enrêdo que procura justificar a decisão de Vancouver em apoiá-lo. Toma-se o cuidado de salientar as tentativas de mediação de Vancouver, a sua neutralidade inicial, a sua boa vontade para com os demais chefes. Esses são apresentados porém como invejosos do sucesso de Kamehameha, lamentando terem colaborado na sua elevação. Apesar de tê-los presenteado, Vancouver já previa o que depois iria acontecer, ou seja, a queda dos caciques e a soberania única de Kamehameha.

O pesquisador que procure reconstruir fatos históricos nessas narrações necessita lê-las com especial cuidado. Percebe, do exposto, o papel relevante da diplomacia européia e dos meios empregados para influenciar a situação interna do arquipélago. Esses meios assumem particular interesse sob o ponto de vista histórico-cultural, uma vez que constaram de mútuos presentes, de encontros marcados por cordialidade com as diversas partes, de afirmações de neutralidade e de respeito à hospitalidade, e, sobretudo, de manifestações destinadas a impressionar os nativos, neles despertando ao mesmo tempo mêdo, respeito e admiração. Assim, Vancouver realizou um espetáculo de fogos de artíficio a bordo perante a população reunida na praia e que, após passado o terror inicial, foi tomada por grande entusiasmo, festejando cada foguete com gritos de admiração e aplausos.


A narrativa européia salienta sobretudo o espírito progressista de Kamehameha e o seu desejo de aprender. Dá-se especial atenção à sua procura de conselhos junto a Vancouver, do qual tornara-se amigo, solicitando sugestões quanto a melhorias que gostaria de introduzir no seu estado e os caminhos a serem seguidos. Salienta-se, também, que nada fora mais legítimo do que o fato de Vancouver ter-se utilizado dessa situação a favor dos interesses de seu país, a Grã-Bretanha. Para tal, chegou a encenar um ato solene de sentido simbólico dúbio, no qual Kamehameha declarava-se, junto com o seu povo, vassalo do rei inglês.Os inglêses, porém, passaram a ver nesse ato o fundamento de sua influência nas ilhas do Pacífico, das quais se tornaram senhores e nas quais levantaram estabelecimentos necessários para o seu comércio mundial.



(...) A principal intenção de Vancouver era a de fazer um tratado com esse poderoso e civilizado soberano favorecendo a sua pátria. Ele sabia que Tamea-Mea possuia lucidez suficiente para não acreditar que estava preso por uma cerimônia ôca, ou que pelo menos possuisse a intenção secreta de usar do apoio e do auxílio dos europeus contra os seus rivais. Vancouver fêz com que se realizasse a cerimônia ridícula apenas para satisfazer o orgulho nacional e a Admiralidade em Londres. As últimas dúvidas do rei foram tiradas com presentes e, numa audiência solene, na presença dos caciques havaianos e dos oficiais inglêses, o rei declarou-se, talvez sem entender as palavras dos tradutores, que era súdito do rei da Inglaterra. (op.cit. 161)


O contrato com Kamehameha dava a Vancouver o direito de intervenção em assuntos políticos. O interesse britânico era o de ganhar influência política e comercial nas ilhas. Assim, Vancouver pôde oferecer ajuda concreta a Kamehameha; fêz que os seus carpinteiros descessem à terra, que construíssem uma nave com coberta de consideráveis dimensões, batizada de Britannia. A tripulação foi formada por europeus desertores que já viviam nas ilhas, em parte inglêses, em parte franceses e americanos.


(...) Tão logo Vancouver saiu do arquipélago, Tamea-mea apressou-se a reiniciar com as animosidades, e enviou o seu general Tai-Ana às ilhas; esse porem, no lugar de tratar contra os seus inimigos, juntou-se a eles, e Tamea-Mea ganhou um novo inimigo, mais perigoso do que os anteriores. Não se deixou intimidar, porém; colocou-se à frente de um novo exército e logo havia limpado todas as ilhas vizinhas de inimigos e solidificado a sua soberania (op.cit. 160)

(...)Poucos dias depois de sua chegada, Tamea-Mea encontrou o exército inimigo em uma planície situada entre Nono-Kuru e o rio Eva. A batalha terminou desfavorável aos agravados, e Ta-Eo, rei de Tauai e Niihau morreu no campo de batalha. Tai-Teri e Tai-Ana juntaram os restos do exército no vale Anu-Anu, perto de Pik Pari. Tamea-mea não se fêz esperar, e logo desenrolou-se uma nova luta, mais amarga do que a primeira, sob todos os aspectos. O rei Tahi-Teri foi morto logo de início, e Tai-Ana retirou-se, depois de ter mostrado provas de valentia, com 300 combatentes ao pico do Pavi, onde foi cercado por Tamea-Mea; de lá, do alto do rochedo, atirou-se o novo Leonidas, que não tinha mais esperanças e que não queria sobreviver à sua derrota, sendo seguido por 300 de seus companheiros. Esses homens indomáveis, esses heróis de corações de ferro teriam merecido melhor destino" (op.cit. 163)


Kamehameha como "heróí civilizador"

Embora considerando os aspectos questionáveis dos atos de Kamehameha contra os seus conterrâneos e, sobretudo, o trágico destino - e a nobreza - de seus inimigos na batalha de Nu'Uanu Pali, os historiadores europeus criam a imagem de um líder destinado a dar início a uma nova fase histórica, a de um Estado unificado nas suas relações com a Europa.


Dedicado a estreitar os seus laços e a ampliá-los, enviou ao Rei Georg III uma manta de guerra magnífica, pela Fragata Cornwalli, e outros presentes preciosos. Reciprocamente, a Admiralidade decidiu enviar a êle um belo barco, construído em Port-Jackson, que, porém, chegou apeas em 1822, ou seja, após a morte de Tamea-Mea. Através dessa recíproca troca de gentilezas, o rei manteve durante toda a sua vida o vínculod com a Grã-Bretanha. (op.cit. 164)


Como característico do século XIX pode-se ver a intenção da historiografia européia em mostrar Kamehameha como líder esclarecido que coloca todas as suas forças a serviço do progresso e da civilização.


Como não tinha mais inimigos, empregou toda a sua energia na civilização, e como tinha compreendido as vantagens dos tratos que iniciavam o comércio de trocas, dedicou-se ao fomento do tráfego e deu êle próprio exemplo de sinceridade e confiança, sem o qual não há tráfego por longo tempo. Encantado com as primeiras experiências com a goelette Britannia, mandou que fossem construidas outras segundo o seu modêlo, ou adquiriu similares. Naves comerciais a êle trouxeram canhões, armas e munição, e segundo um registro das forças armadas de Havaí de 1804 havia 21 naves com atiradoras de pedras das dimensões da Brittannia, comandadas quase todas por europeus. ...Os insulanos também aprenderam o valor de mercadorias e do dinheiro, para comprar armas e objetos de vidro, buscavam madeira de sândalo nas montanhas do interior ou tornavam-se êles próprios madeireiros.


Justo e com visão, Tamea-Mea deu êle próprio os primeiros passos na civilização. Não se contentou de dar ordens a seus súditos sobre o que deveria acontecer, mas sim dava êle próprio o exemplo do que deveria ser reformado, indo à frente. Como tinha poder indeterminado, podia apenas mandar; preferia, porém, convencer, e no decorrer de poucos anos, os seus povos tinham feito consideráveis progressos. Ele fora favorecido pela sorte, mas também soube sempre utilizá-la ou mesmo chamá-la, como o ,mostra o caso com o marujo Young, o primeiro e talvez o mai útil veículo da civilização nessas ilhas. A recepção nobre e em parte as honras dadas aos primeiros europeus que ali se estabeleceram levaram a outro a escolher a mesma estadia, e o povo, acostumado aos poucos em outra civilização, sentiu-se novas necessidades e preocupava-se constantemente em satisfazê-las.


Todos os viajantes que o visitaram foram unânimes em louvar a sua administração sábia, a sua correção que sempre reinava no trato com êles. Aqueles que tiveram ocasião de observar a sua vida interior, louvaram a sua visão, a solidez de seu caráter, a sua ternura e a sua grandeza. Entre outros traços de sua viada, Turbull menciona o seguinte, que mostra tanto a sua bondade para com outros como a sua rigidez para consigo mesmo: Tamea-Mea tinha-se acostumado durante algun tempo a bebidas alcoólicas fortes, e quando tinha bebido demais, a sua bondade, à qual todos estavam acostumados, a sua personalidade agradável transformava-se em dureza e malvadeza. Mais de uma vez os seus ministros Young e Davis lamentaram-se a seu respeito; decididos de advertir ao rei, foram a êles e explicarar que tinham tomado a decisão de abandoná-lo se êle continuasse a se embriagar. Assustado com essa decisão, e consciente de sua culpa, (...) prometeu-lhe não mais beber e, a partir desse dia, determinou um determinada quantia de Rum para o consumo diário (op.cit. 165).


(...) Tamea mea prosseguiu com a sua obra civilizadora. De todas as partes do mundo vinham aventureiros, franceses, inglêses, espanhóis e americanos, como que para um território de caça, e constatavam, com surprêsa, que os insulanos estavam já acostumados a comerciar até mesmo com mais esperteza do que êles.


A pequena cidade Honolulu, a mais visitada pelo seu ancoradouro seguro, estava cheia de casas comerciais mantidas sobretudos por inglêses e americanos. À mesma época, várias plantas de zonas do Sul, as verduras da Europa, as árvores de frutas de Andalusia, trazidas pelo espanhol Morini a Oahu, o gado, introduzido da Asia e da Malásia, procriavam-se bem (...). Militares europeus organizaram a defesa da ilha, fortins e fortes nas partes mais ameaçadas e disciplinaram as tropas. As milicias do Havaí e de Oahu faziam as manobras européias. Também a marinha ganhara em significado. Naves carregadas com produtos da terra eram enviadas aos mercados da China e traziam mercadorias do Império Celestial na volta. Muitos desses trabalhos, a primeira base da civilização foram obras de Tamea-Mea e de seus esforços de trinta anos.  Sem dúvida, nenhum povo fêz progressos na civilizaçao de forma tão rápida e fácil como o povo do Havaí (...) (op.cit. 166)




Transmissão cantada de narrativas e consciência histórica

Se a imagem de Kamehameha como unificador e fundador do "Havai civilizado" foi difundida na Europa pelos relatos dos viajantes, no próprio país foi mantida sobretudo pela transmissão oral cantada, de fundamental significado para a consciência histórica havaiana, em particular da família real.

Esse significado é testemunhado pela última rainha do Havai, Liliukalani, quando descreve o papel do canto genealógico por ocasião de nascimentos e falecimentos de membros de antiga estirpe. Quando uma criança nascia em família de chefes, era costume de se criar um canto, não apenas em homenagem ao nascimento, mas sim também para recordar a genealogia do recém-nascido, assim como os valores e todos os fatos especialmente importantes e que eram motivo de orgulho nos quais haviam participado. Esses cantos eram guardados na memória, passados de boca em boca entre os próximos àquele chefe. Por ocasião da morte, eram entoados em honra daquele para o qual haviam sido compostos. Assim, a própria Liliukalani possuia o seu próprio canto, a ela sagrado durante toda a sua vida. Se uma criança de nascimento nobre que não tivesse o seu próprio canto, seria desprestigiada relativamente à sua posição social. (Hawaii's Story by Hawaii's Queen Liliuokalani (Honolulu: Mutal Publishing,  1990), 106 ss.)

Liliukalani lembra da entoação de cantos de despedida por ocasião do falecimento da Princesa Ruth (1826-1883), em 1884. A celebração dos últimos ritos apenas realizaram-se três semanas após o seu falecimento. O mesmo deu-se com o falecimento de sua prima, Bernice Pauahi Bishop (1831-1884), no mesmo ano, quando repetiram-se os ritos e as cerimônias fúnebres consuetudinárias devidas aos grandes chefes. Similarmente, em 1885, quando da morte da rainha Emma (1836-1885), - viúva do último rei da estirpe de Kamehameha - , apesar de seu empenho pelo igreja anglicana e suas convicções epicopalistas, e o serviço religioso na igreja congregacionalista de Honolulu. (op.cit., 109)

Das palavras de Liliukalani, percebe-se uma distinção entre ritos de guarda da memória na residência do falecido e as cerimônias dedicadas a seus despojos mortais. Naqueles, mantiveram-se tradições nativas e a entoação de cantos pessoais, nestes, as solenidades procediam de acordo com serviços religiosos segundo tradições européias ou norte-americanas.

As palavras da última rainha do Havai faz supor que a celebração de ritos funerários nativos foi uma das poucas expressões da antiga cultura que permaneceram no decorrer da transformação cultural havaiana. A esses ritos fúnebres fazia parte o canto de narrativas genealógicas relacionadas com o falecido. Assim, os ritos funerários constituiram a ponte entre a memória genealógica e de ancestralidade transmitida oralmente de forma cantada e os esforços de revitalização de antigas tradições.

Por ocasião do falecimento do rei Kalakaua (1836-1891), a solenidade fúnebre segundo os costumes consuetudinários atingiu particular pompa. Ainda que celebrada no Palácio Iolani, deu-se particular atenção a símbolos e atributos de chefia, entre outros com  sentinelas que podiam comprovar ancestralidade ou que pertenciam a famílias de antiga estirpe, ainda que, nessa época, já empobrecidas.

Enquanto mantinham guarda, alguns cantavam antigos mèlès ou cantos pertencentes exclusivamente à família do chefe falecido, outros, mais jovens, criaram lamentos mais de acordo com critérios poéticos e musicais da época. (op.cit. 214)

Houve, assim, transformações do repertório de canto tradicional de narrativas genealógicas. Nos ritos fúnebres de guarda, procedimentos consuetudinários da antiga cultura havaina relacionaram-se aqui com concepções maçônicas, compreensíveis à luz dos elos do rei do Havai com a Maçonaria. Manteve-se, ainda aqui, as três semanas devotadas às obséquias antes do entêrro.

Como Liliukalani salienta, a morte e o entêrro de um soberano nunca foi considerado como matéria trivial no Havai, e pessoas de todas as partes das ilhas deslocavam-se para homenagear aquele que foi conhecido e admirado como chefe da nação (loc. cit.).

No caso de Kalakaua, realizou-se uma das mais impressionantes solenidades até então vistas, levadas a efeito por uma sociedade secreta, a de Hale Naua, da qual havia sido fundador. A cerimônia foi considerada como idólatra por alguns, mas Liliukalani salienta não ter nela encontrado mais indícios de paganismo do que em cerimônias maçônicas ou em serviços religiosos. (op.cit., 215)


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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. "Consciência histórica e concepções de nacionalidade no Havaí e no Brasil. Líderes indígenas em diferentes situações: Kamehameha I° - "O Grande" (ca. 1758-1819). Narrativas cantadas e edifícios históricos". Revista Brasil-Europa 126/4 (2010:4). www.revista.brasil-europa.eu/126/Kamehameha-O-Grande.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.



 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 126/4 (2010:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2611




Consciência histórica e concepções de nacionalidade no Havaí e no Brasil
Líderes indígenas em diferentes situações: Kamehameha I° - "O Grande" (ca. 1758-1819)

Narrativas cantadas e edifícios históricos


Pelos 25 anos da oficialização alemã do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa
(
Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes (ISMPS e.V.)


 









Título: Representação da batalha de Nu'Uanu Pali

Honolulu: estátua de Kamehameha (coluna (1-2) e texto ao alto, à frente co Territorial Courthouse); Kamehameha Office Building (texto)

Hilo: estátua de Kamehameha (coluna ao centro e texto)

Local da batalha de Nu'Uanu Pali (texto)

Centro Cultural da Polinésia: representações de Kamehameha (coluna)

Fotos A.A.Bispo e H. Hülskath©



 

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