Hula e Dandys. Revista BRASIL-EUROPA 126. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

O termo hula causa no observador não pertencente ao universo cultural polinésio espontaneamente imagens marcadas por dança, gestos e música que expressam e despertam  sentimentos de amabilidade, cordialidade, ternura, afeição, simpatia e suave sensualidade. Essas imagens são confirmadas por impressões obtidas em festivais, em apresentações de grupos havaianos no Exterior e em shows para turistas no Havaí. Percebe-se, aqui, de modo evidente, o significado dessa expressão para a representação do Havaí e de sua cultura.


Somente um contato mais próximo com a história cultural e o presente das reflexões voltadas à cultura do Havaí revela o significado da dança em processos de transformação da identidade havaiana e as suas dimensões mais profundas, que transcendem de muito impressões iniciais de fascinante, mas superficial e inócua amabilidade.


Somente a consideração mais aprofundada de sentidos inerentes à linguagem visual dessas expressões e da história e a atualidade das concepções que a elas se prendem permite que se perceba que o seu significado não se limita aos estudos havaianos.


Também os estudos inter-e transculturais dedicados a contextos atlânticos euro-brasileiros, em particular luso-brasileiros podem receber novos impulsos através de uma consideração mais diferenciada e refletida dessa expressão, uma vez que chama a atenção para aspectos que transcendem delimitações contextuais na dança, incluindo encenação e a linguagem de gestos e, sobretudo, ao papel de princípios simpatéticos em concepções culturais.




Atualidade dos debates: Hula Preservation Society


Comemora-se, neste ano de 2010, os dez anos de fundação da Hula Preservation Society (HPS), uma entidade educacional, sem fins lucrativos, baseada nos trabalhos de pesquisa desenvolvidos desde a década de cinquenta por Auntie Nona Beamer. O objetivo dessa sociedade- também compreendida como sociedade de história oral, é o de preservar e possibilitar o acesso a histórias orais dos representantes de mais idade da tradição hula.


O trabalho da HPS tem fins documentais, através do registro digital de histórias de vida, criando um acervo de fontes acessível à comunidade hula global, ou seja, aos círculos que a cultivam e apreciam em outras regiões dos EUA e em outros países, sobretudo no Japão.


Os mentores dessa tradição são questionados a respeito de suas experiências, de seus conhecimentos, de suas concepções pessoais. Esses dados são apresentados e discutidos em sessões de especialistas e eventos públicos. Os informantes são mestres de hula, - os Kumu Hula - ou os "rebentos" dessas fontes, os Na Pua O Na Loea Hula, aqueles provenientes de famílias de músicos vinculados a mestres já há muito falecidos, dançarinos solistas, músicos, artistas de cinema ou especializados em determinados gêneros, inclusive aqueles humorísticos. As histórias de vida permitem reconstruir rêdes sociais entre famílias e comunidades das várias ilhas do arquipélago e do continente.


O escopo da HPS não é apenas o de honrar aqueles que possibilitaram a continuidade da tradição ou o do fomento da pesquisa histórica. É dirigido ao futuro, visando a criação de bases documentais seguras e garantindo a transmissão de perspectivas adequadas quanto à contextualização histórico-cultural dessa expressão segundo a memória de seus representantes mais idosos.


Essa contextualização tem implicações político-culturais de grande alcance, pois remontam à época da autonomia do Havaí, em particular ao período áureo da monarquia havaiana sob o rei Kalakaua (1836-1891). (Veja artigo a respeito nesta edição).


A propugnada renascença dessa expressão, no presente e no futuro, é vista como um segundo renascimento, uma vez que já à época de Kalakaua a revalorização da dança representou um intento de revitalização de expressões de uma cultura tradicional quase que perdida.


O que surge sob uma perspectiva superficial como expressão nostálgica de um passado findo, de uma visão romântica do romantismo, neo-historicista do historicismo do século XIX, revela-se, assim, como esforço de revitalização e fomento de uma consciência de identidade havaiana marcada por anelos de autonomia. As vozes daqueles anciãos que são registradas documentam também o silenciamento a que foram submetidas antes da primeira e da atual renascença, ou seja, representam um protesto surdo contra ocorrências que precederam e sucederam à anexação do Havaí aos Estados Unidos e, mais ainda, à opressão dessas tradições pelos missionários evangélicos do século XIX.


Merrie Monarch Festival e Journal of the Hula Arts


Uma expressão desses intentos é a revista trimestral Humu Mo'olelo - Journal of the Hula Arts, fundada por Uncle George Na'ope, membro da Hula Preservation Society. O seu segundo número, de 2006, publicado por Chelle Shand e editado por Ka'iulani Poderick Jerman e Kainoa Baptiste, contém artigos que documentam de forma particularmente significativa os atuais anelos de revitalização de expressões e de um edifício de concepções relacionados com a tradição hula.


Esse caderno foi significativamente inspirado no vulto do rei Kalakaua, o "Merry Monarch", cujo nome designa também um festival havaiano dedicado à revalorização da cultura tradicional oprimida pelos missionários no século XIX, o Merrie Monarch Festival, realizado anualmente em Hilo.


A edição é aberta por um artigo de título "Kalakaua and the Renaissance of Hula", dedicado ao esclarecimento da "inspiração e da motivação intelectual da ressurreição cultural do Havaí" (págs. 6-27). Segume-se um texto sobre a Hula Preservation Society (HPS) (págs. 28-29), artigos sobre histórias orais (Palani Vaughan, "Voices on the Wind", págs. 30-55), sobre a simbologia de colares e coroas de flores (Etua Lopes, "Lei of Aloha", 56-79), sobre um vulto popular da época de Kalakau, a história trágica de um "dandy" (Jerry Hopkins, 'Ioani 'Ukeke: Havaían Dandy, Havaían Tragedy", págs. 80-95), e sobre um instrumento havaiano visto como emblema do amor (Ka 'Ukeke: Havaían Love Instrument, pág. 96).


O autor de um dos textos, Palani Vaughan, é salientado pelo fundador da revista como cantor, compositor e autoridade nos estudos da língua e da cultura do Havaí, particulamente da época monárquica. As suas palavras refletem o extraordinário significado do vulto do rei Kalakaua nos atuais anelos de revitalização da cultura havaiana. Kalakaua é decantado como figura única e como rei emblemático.


As guirlandas de flores, que refletem as mais antigas celebrações da natureza, o canto e mele com instrumentos tradicionais, o 'ukelele, os concursos, as expressões mixtas de música popular

mais ligeiras, as relações entre os diferentes estilos de expressão e a valsa havaiana da era monárquica tornaram-se bases de vários festivais criados com o sentido de perpetuação da cultura havaiana.


A hospitalidade lendária de Kalakaua, experimentada pelo espectador da atualidade, representa o verdadeiro elo com as mais antigas tradições. O rei Kalakaua é considerado como um homem de qualidades universais, quase que uma edição havaiana de um vulto da Renascença. (págs. 4-5)


Relendo a introdução de The Legends and Myths of Havaí'i (1887)


A publicação abre com palavras do próprio rei David Kalakaua, reproduzidas da introdução a seu livro The Legends and Myths of Havaí'i (24 ed., Toquio 1988), escrita em fevereiro de 1887.


Nesse texto, o rei havaiano, que oferece primeiramente um relato do país, considerando aspectos geográficos, históricos, políticos, sociais e econômicos, deixa transparecer um profundo sentimento de decadência e mesmo de pessimismo relativamente ao futuro do povo havaiano, apesar de todo o progresso econômico do país.


Termina lembrando que a prosperidade e o desenvolvimento do país, então evidente, não encobriam o fato de que os nativos diminuiam extraordinariamente em número, perdiam a terra de seus antepassados para os norte-americanos e haviam caído em pobreza. Em um século, a população havia diminuido de 400.000 habitantes, menos de um décimo daquela encontrada pelos europeus ao chegarem.


De filhos da natureza, saudáveis e felizes, haviam-se transformado em homens sem terra e sem esperanças, vítimas dos vícios da civilização. Haviam descido gradualmente a condições marginais e periféricas, e iam sucumbir sob condições sociais e políticas estranhas à sua natureza e às suas afeições.


Em linguagem altamente expressiva, o rei do Havaí previa, em 1887, que ano por ano as marcas havaianas tornar-se-iam mais tênues nas areias de suas costas protegidas por recifes e cada vez mais fracas soariam suas simples canções através das sombras das palmeiras, até que, por fim, as suas vozes não mais seriam ouvidas, para toda a eternidade. E isso se já não antes as ilhas havaianas, com os ecos de suas canções e a ternura de seus campos verdes, não tivessem passado ao sistema político dos Estados Unidos, como já então havia ocorrido na economia. (op.cit. 9)


Esteticismo e fin de siècle no Havaí


Essas palavras de Kalakaua, como rei e estudioso da própria cultura, comoventes na triste certeza que manifestam quanto à decadência de um povo e à perda da autonomia do país, abre perspectivas para a compreensão mais diferenciada das condições sob as quais decorreram os esforços de estudo e revitalização das expressões da cultura popular tradicional e, sobretudo, do fenômeno aparentemente paradoxal do Esteticismo nessa época de brilho da monarquia havaiana.


Ao contrário do desenvolvimentismo representado pelos poderes norteamericanos na sociedade havaiana, as palavras de Kalakaua refletem não apenas a consciência da tragédia da cultura nativa, mas sim também os seus elos com tendências do pensamento e de estado de espírito da Europa, em particular da Inglaterra.


Os impulsos de superação da estreiteza e da rígida moral do período vitoriano por intelectuais e artistas de Londres que cultivavam um estilo de vida marcado por extravagantes e provocativas auto-encenações corresponderam, no Havaí, às tendências de superação da austeridade de reinados anteriores e de círculos marcados pela admiração da rainha Vitória (1819-1901) na família real, e, sobretudo, da estreiteza de uma cultura burguesa e moralista determinada pela influência missionária evangélica, britânica e, sobretudo, norte-americana.


A atenção à forma e à estetização da vida sob Kalakaua e o seu próprio estilo de vida adquirem novo significado se compreendidos como expressões compensatórias de uma visão da realidade marcada pela convicção da ruína da cultura nativa e da falta de sentido da prosperidade material do país. Compreende-se, assim, que o monarca havaiano cultivasse o convívio com intelectuais e artistas de conotações extravagantes, em situações não correspondentes às normas burguesas.


"Dandyismo" e o Beau Brummell (1778-1840) havaiano


Sob esse pano de fundo, um dos textos mais significativos para a análise cultural do contexto em que ocorreu a revitalização da cultura nativa do Havaí em fins do século XIX é o de Jerry Hopkins, reproduzido do Ha'ilono Mele-Journal of Havaían Music da The Havaían Music Foundation (VI/2, 1980).

O autor considera a personalidade, o papel desempenhado na ressurreição da dança havaina e a tragédia de vida de um "Dandy" nativo proveniente de esferas mais simples da população e que gozou de singular proximidade ao rei Kalakaua.

Chamado de "'Ioane 'Ukeke", essa personalidade atuou como mestre de hula, dirigindo apresentações por ocasião das festividades de coroação de Kalakaua, em 1883, assim como nas festas de aniversário dos seus 50 anos.

Como o autor menciona, "Ioane Ukeke" era conhecida publicamente como uma versão havaiana do Beau Brummel, explicitamente assim identificado pelo Pacific Commercial Advertiser, a 10 de junho de 1871 (Jerry Hopkins, op.cit. 81).

Com a menção do Belo Brummel, o articulista lembrava aqui de George Bryan Brummel (1778-1840), criador de estilo de condução de vida e de encenação pessoal no trajar que se tornou conhecido como "Dandy".

Esse conceito, que era associado com uma atenção especial dada à elegância de cortes e à qualidade de tecidos, em especial também ao uso de lenços de pescoço, adequava-se bem à imagem de Ioane Ukeke. Este, durante a semana de trabalho apenas um simples empregado de casa comercial, mostrava-se aos sábados à tarde e aos domingos nas ruas de Honolulu usando roupas elegantemente confeccionadas, calças de linho branco, camisas de colarinho cuidadosamente engomado e cartola brilhante, de luvas brancas ou de outras cores, fumando um charuto de alta qualidade que segurava com elegância afetada, chamando a atenção de todos. 

Assim como Brummel fora amigo do rei inglês Georg IV (1762-1830) e polia as suas botas com champagne, o Brummel havaiano tornou-se amigo de Kalakaua, o "monarca da Champagne".  Na década de 70, Ioane Ukeke frequentava a alta sociedade havaina, sobretudo reuniões sociais com música em círculos relacionados com a Princesa Ruth Ke'elikolani (1826-1883), executando o instrumento que surge designado como jew's harp (berimbau de boca), mas que era provavelmente o ukeke, instrumento nativo de corda no qual a bôca do executante funciona como caixa de ressonância.

Ruth Ke'elikolani é cada vez mais reconhecida como personalidade da história havaiana particularmente consciente dos valores tradicionais, chegando a recusar-se a falar inglês, a não praticar a religião dos missionários e a deixar o arquipélago (DVD: Biography Hawai'i: Princess Ruth Ke'Elikolani, V 454 D). Nos saraus ao redor da Princesa Ruth Ke'elikolani, após o jantar, cantavam-se canções e, a seguir, conversava-se a respeito das circunstâncias que tinham levado à sua criação; quatro moças, ensinadas pelo 'Ioane, dançavam o pu'illi e 'uli'uli, e interpretava-se o pa'i umauma.

Apesar da extravagância de seus trajes, a elegância do Brummel havaiano correspondia àquela do Beau Brummel britânico, ou seja, era caracterizada por understatement. Esse característica, à primeira vista incompreensível no quadro geral da segunda metade do século XIX, deve ser entendida à luz da época de George Bryan Brummel e do período Regency na Grã-Bretanha, quando a elegância do homem britânico, pela sua distinção, diferiu-se da moda masculina que havia dominado na França do passado. Sob o aspecto desse understatement poder-se-ia interpretar também o uso de um instrumento nativo pelo Ioane Ikeke e, em geral, a sua predileção por expressões culturais tradicionais.

Em outra referência, no mesmo jornal, de 1883, 'Ioane Ukeke é comparado com o "Belo Hickman", ou seja, com Robert S. Hickman (1813-1873), um elegante modista que residia em Washington. Também nesse artigo de jornal surge 'Ioane como mestre de dança e costureiro, que conduzia os movimentos de suas dançarinas no hula Ku'i e Mele Inoa ao som trêmulo de sua jews-harp. Os visitantes estrangeiros testemunhavam que não haveria teatro na Europa ou na América que apresentasse encenação tão expressiva como a dança das havaianas.

O que os articulistas com a comparação do mestre de dança havaiano com o Beau Brummel não poderiam saber é que também 'Ioane Ukeke teria um fim triste. Com a proclamação da república pelos homens de negócios norte-americanos e do "partido missionário" do Havaí, e o conseguente desencorajamento das tradições nativas, 'Ioane perdeu a sua proteção real e as suas possibilidades de apresentação, passando os seus últimos dias como cego pedinte nas ruas de Honolulu, visto pelos visitantes do Havaí como "tipo popular".


Dimensões transepocais do "Dandyismo"

As considerações do "Dandyismo" no Havaí não deveriam, porém, delimitar-se a 'Ioane Ukeke como se este fosse um de seus únicos representantes.

O pesquisador que se ocupa com a história havaiana se surpreende em constatar o papel significativo desempenhado em várias épocas por personalidades que surgem nas fontes como singulares e de exquisita distinção, cuja proximidade aos reis é muitas vezes sentida como incompreensível.

Já no início do processo de transformação cultural, à época de Liholiho ou Kahamehameha II (1707-1824), a sua atenção é despertada pela figura de Jean Baptiste Rives (1793-1833), conhecido por cognome feminino e pelo seu exagerado modo de trajar segundo padrões da moda de sua época, amigo particularmente estreito do rei e que o acompanhou ao Brasil e à Inglaterra, em 1824 (Veja artigo nesta edição).

Em Londres, Liholiho e Rives foram acompanhados pelo alegre Frederick Gerald Byng (1784-1871), filho de John Byng, quinto Visconde de Torrington, Gentleman Usher da Royal Chamber, e amigo do Beau Brummel, conhecido pelo cognome de "Poodle" por acompanhar-se de seu cão de estimação. Foi indicado por Liholiho por George Canning (1770-1827), do Ministério para o Exterior, por ser o rei havaiano associado com um cão devido à sua afabilidade e à sua necessidade de afetos.

O próprio Kalakaua foi apreciado nos círculos aristocráticos europeus pelas qualidades de sua personalidade, ainda que sugerindo frivolidade e excessos epicuristas de alegria de vida, o que podia causar estranheza a mulheres.

"His charm, sociability, and gracious manner endeared him to most of the people he met. In Vienna, however, he caused an Austrian princess to become annoyed with him" (Maxine & Mark Mrantz, Hawaiian Monarchiy: The Romantic Years, Honolulu: Aloha 1974, 38)

Sob Kalakaua, vários homens que se destacaram por distinção, estilo, sensiblidade, qualidades de espírito, intelecto, humor e conhecedores de várias regiões do mundo alcançaram posições influentes e de confiança pessoal, dando motivos até mesmo a conflitos com conselheiros oficiais e ministros. Essas personalidades levantam questões aos historiadores a respeito de sua proveniência e das razões de sua ascensão social. Entre outros, pode-se aqui lembrar da vida aventureira e cosmopolita de Celso Caeser Moreno (Veja artigo a respeito de Kalakaua nesta edição) e do escritor escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), desafiador das convenções da sociedade vitoriana. Personalidade inigmática é também a de Walter Murray Gibson (1822-1888), a "voz dos havaianos", que adquiriu o Pacific Commercial Advertiser (1880) e foi, entre outros, Ministro das Relações Exteriores (1882).

Esteticismo e estudos de gênero

Esses aspectos da história cultural havaiana despertam, hoje, especial interesse sob o aspecto dos estudos de gênero. O pesquisador surpreende-se em constatar não apenas um papel determinante desempenhado por personalidades femininas resolutas no processo de transformação cultural do Havaí, tanto na superação da antiga cultura e na introdução do Protestantismo, como também na defesa de uma autonomia do Havaí assim formado (Veja outros artigos nesta edição). Surpreende-se, também, em constatar, de forma contrastante, um singular papel desempenhado por personalidades masculinas marcadas por sensibilidade e qualidades que foram consideradas muitas vezes como expressões de feminilidade, fraqueza e frivolidade.

Para a interpretação desse fenômeno da história cultural, o observador pode seguir diferentes caminhos. Lembrando que à época de 'Ioane Ukeke o mais conhecido Dandy do mundo de língua inglêsa era Oscar Wilde (1854-1900), parceiro de Robert Baldwin Ross (1869-1918) e Lord Alfred Douglas (1870-1945), cujos nomes se relacionam com a história da homosexualidade na Grã-Bretanha, o pesquisador defronta-se com a questão se também aqui, na esfera havaiana, não haveria uma situação significativa para estudos históricos de uma cultura "gay". Essa história teria sido silenciada em textos do passado e encoberta pelo fato de seus protagonistas - como em geral na Europa -, terem correspondido às exigências da sociedade, casando-se e tendo filhos. Pela falta de documentação histórica, tais hipóteses não podem ser confirmadas, permanecendo suposições  incomprovadas.

Procedimento simpatético e aguçamento da sensibilidade

Um outro caminho interpretativo, ainda que não necessariamente excludente do anterior, é aquele que dirige a atenção ao processo de transformação cultural do Havaí, salientando a instabilidade e a labilidade psíquica da situação criada pelo contato com os europeus e os impulsos por assim dizer compensatórios de auto-afirmação e representação. Os líderes havaianos teriam aqui sentido a necessidade de se tornarem mais civilizados do que os "civilizados", mais europeus do que os europeus, acentuando características de distinção social.

Esse intento teria como pressuposto um procedimento simpatético, o da percepção sensível de valores, de critérios e de modos de vida dos europeus. A receptividade dos havaianos, testemunhada já pelos primeiros viajantes europeus, ter-se-ia acentuado. O procedimento simpatético implica no vibrar por simpatia de cordas hábeis a ressoar em sintonia, tanto no ser vibrado como no fazer vibrar. Essa lei da atração do igual para o igual - não o da harmonização de opostos - teria agido a partir de fundamentos existentes na própria cultura consuetudinária, intensificando-os.

Concepções músico-antropológicas e substituições interculturais

Segundo esse caminho interpretativo, o homem se transforma em caixa de ressonância e em instrumento que emite vibrações que fazem ressoar outros corações. O mestre de hula 'Ioane Ukeke parece confirmar essa tentativa explicativa. O seu cognome, 'Ukeke, derivava-se de uma hula de amor, pela qual se tornou particularmente conhecido, e que era o mesmo de um instrumento de corda nativo - o único do instrumentário tradicional havaiano.

Esse instrumento, que usava a boca do instrumentista como caixa de ressonância, era empregado sobretudo para a comunicação de mensagens entre enamorados. O seu executante emitia, com o seu som suave e suas tremulações, mensagens de amor. O próprio instrumento podia ser assim visto como emblemático para o homem que emite sentimentos de amor, transformado em caixa de ressonância, vibrando as cordas de sua alma no seu próprio corpo.

A simbologia do 'Ukeke passou a ser traduzida em imagens conhecidas da cultura ocidental. Assim, a sua designacão como jew's harp foi explicitamente relacionada no artigo considerado relativo à dança na festa da coroação de Kalakau com a harpa de David, que movia o coração de um rei (op. cit. pág. 89). O instrumento, ou o homem que o executava, tinha a função, assim, de mover sentimentos e comover. A simbologia podia ser aplicada a outros instrumentos de corda. Assim, uma fotografia de 'Ioane da década de 80 o mostra tocando banjo. (op.cit. 92).

Augusto Dias e instrumentos de corda dedilhadas portugueses

Nesse contexto, a história da contribuição portuguesa à cultura musical havaiana surge sob nova luz. A assimilação da guitarra e instrumentos afins, em particular o cavaquinho no Havaí não pode ser considerada como um fenômeno independente da atmosfera cultural do reinado de Kalakaua. (Veja artigo a respeito nesta edição). Os estudos relacionados com a guitarra e instrumentos afins teem salientado a importância de seu conteúdo simbólico e simbólico-antropológico. A partir desse seu significado desempenhou relevante papel em processos de transformação cultural, substituindo instrumentos nativos.

As características dessas substituições e metamorfoses de conteúdo necessitam ser estudadas nos seus diferentes contextos. No caso do Havaí, insere-se na transformação por que passou o 'ukeke, fato que sugere a própria designação de ukelele para o instrumento europeu. Assim como Kalakaua, nas suas tendências dandyistas aceitou no seu convívio personalidades vindas de camadas mais simples da população, como Ioane 'Ukeke, também teve como amigo um imigrante português, Augusto Dias, tocador de cavaquinho.

O fascínio de Kalakaua por esse instrumento - e possivelmente pela personalidade de Augusto Dias - é que justificou a inclusão do instrumento e de outros de corda dedilhada de tradição portuguesa no acompanhamento da hula.

Pode-se distinguir, assim, no Havaí, um processo similar e ao mesmo tempo diferente daquele já estudado e discutido com relação à viola no Brasil e a outros instrumentos de corda dedilhada (por ex. charango) no passado colonial da América Latina.

Essa metamorfose cultural, pela primeira vez discutida no âmbito dos trabalhos do ISMPS e.V. e que levou à realização do Colóquio Internacional de Antropologia Simbólica no Brasil, em 1998, apresenta, no Havaí, outra conotação. No caso das culturas indígenas, o instrumento de corda dedilhada europeu substituiu em geral a maraca, correspondendo aqui, em interpretação cristã, à relação lira/sistro da Antiguidade.

No Havaí, porém, o cavaquinho substituiu o 'ukeke, ou seja, um outro instrumento de corda. Parece ter havido, portanto, não uma metamorfose de cunho anti-tipológico, mas sim simplesmente uma substituição segundo diferentes tradições culturais, correspondendo, porém, a conteúdos similares. Entretanto, a ocorrência da cabaça percutida (ipu), na qual uma outra cabaça é presa, como instrumento emblemático na hula indica a vigência de mecanismos similares àqueles analisados em situações latino-americanas. (Veja texto sobre instrumentos de cordas dedilhadas nesta edição)


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (Ed.). "Linguagem do coração e batida do coração do povo do Havaí: Hula, 'Dandyismo'
e vibrações simpatéticas na sensibilização estética por valores culturais".
Revista Brasil-Europa 126/19 (2010:4). www.revista.brasil-europa.eu/126/Hula.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 126/19 (2010:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2626




Linguagem e batida do coração do povo do Havaí
Hula, "Dandyismo"
e vibrações simpatéticas na sensibilização estética por valores culturais

Pelos 25 anos da oficialização alemã do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa
(
Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes - ISMPS e.V.)




 







  1. No texto: Dançarinas de hula. Eine Reise durch die Welt in tausend Bildern. Berlin: Peter J. Oestergaard 1927, pág. 126
    Fotos A.A.Bispo ©


 

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