Congregacionalismo e mudança cultural: Havaí. Revista BRASIL-EUROPA 126. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais
 
 
Os estudos brasileiros confrontam-se, em todas as épocas da história, com erosões de sociedades indígenas a partir do contato com o europeu ou com a sociedade envolvente e com tentativas de construção de novas comunidades sob bases cristãs através da ação missionária. No decorrer do século XX, as atividades de missionários protestantes, em particular norte-americanos, passaram a desempenhar um papel particularmente intenso em intentos de transformação social e cultural de grupos indígenas, sobretudo na Amazônia.

Uma orientação teórica dos estudos de transformações culturais, que leva de constatações empíricas localizadas à procura de análise de processos globais, exige considerações de contextos interamericanos. Atuações missionárias fundamentadas nos Estados Unidos, porém, não podem ser estudadas sem as suas bases e suas tensões européias, nem sem as suas expansões em outras partes do mundo, em particular no Pacífico.

O estudo da história do Havaí na fase crítica criada pela destruição do antigo edifício de concepções e imagens e da sua reconfiguração social e cultural por parte de missionários norteamericanos pode contribuir para o reconhecimento de determinados mecanismos de um processo que atuou e que encontra-se em vigência no Brasil da atualidade.

Esforços reativos e papel da educação na formação da nova sociedade

Como conhecido de outras situações, também no Havaí houve esforços reativos de recuperação da antiga cultura. Tornaram-se principais aspirações do jovem Kamehameha III°, crescido em ambiente marcado conflitantemente por distúrbios sociais, estreiteza religiosa e dispersão de poder.

As suas ações iniciais foram guiadas por medidas de liberalização do severo sistema penal criado pelos missionários e pela revitalização de tradições, procurando recuperar um antigo Havaí. Constatando, porém, a impossibilidade de um retorno a um estado perdido, o que, pelas suas contradições com os intuitos dos missionários e dos cristianizados levava a tensões ainda maiores, foi obrigado a mudar de política.

Um dos centros das atenções foi, seguindo a tradição congregacionalista, criar agentes nativos para a propagação do Evangelho e congregações lideradas por havaianos, lançando bases para uma auto-difusão do Cristianismo. Esse procedimento teve consequências para a sociedade no seu todo, uma vez que baseu-se fundamentalmente na formação de novas elites. 

Os missionários mantiveram a orientação do processo educativo em mãos, conseguindo, porém, que a própria sociedade nativa o financiasse. Foram assim lançadas as bases a um sistema que determinaria o desenvolvimento do país: os próprios havaianos passaram a sustentar a criação de rêdes que transformavam a sua sociedade e garantiam o poder das lideranças missionárias.

Assim, os evangelizadores levaram a que o rei estabelecesse escolas para o ensino da população. A primeira dessa escola foi criada em Maui, em 1831, a Lahainaluna School. Com o ensino da língua e da escrita, criou-se um círculo de leitores, de modo que já em 1833 puderam ser publicados  os primeiros jornais em língua havaiana e inglêsa. A educação, baseada naturalmente em preceitos protestantes, compreendia, entre outros aspectos, economia, política, noções de propriedade e de transferência de bens.


Missionários como conselheiros de Estado e reconhecimento internacional do Havai

O govêrno do Havaí manteve-se a partir dessa época grande parte nas mãos daqueles que formaram a nova geração de líderes, ensinaram-nos segundo as normas norte-americanas e européias e que agiam agora como conselheiros.

Os havaianos não apenas foram levados a sustentar o sistema implantado, como também deles foi exigida proteção às propriedades de estrangeiros ali residentes. Assim, questões de propriedades de um súdito inglês levou a que a Grã-Bretanha interviesse no país, tomando posse de Honolulu. Kamehameha III° procurou superar essas dificuldades criadas pelos residentes através de um vínculo mais estreito com a própria Grã-Bretanha, a ela cedendo o Havaí. Entretanto, esse intento não vinha de encontro aos interesses dos próprios residentes estrangeiros.

A independência do Havaí foi reconhecida pela Grã-Bretanha, pela França e pelos Estados Unidos. A estruturação do Estado pode avançar nos próprios anos com o código civil (1839) e a constituição (1840). O Havaí tornou-se monarquia constitucional.

Gerrit Parmele Judd (1803-1873), médico, foi nomeado a Primeiro Ministro, cuidando de chamar ao govêrno outros estrangeiros, entre êles William Richards (1793-1847) como mestre do rei e Primeiro Ministro da Instrução Pública, o advogado americano William Lee para trabalhos relacionados com a constituição, o escocês Robert Willie, sobretudo para assuntos exteriores, o americano John Ricord, como primeiro General.

Divisão de terras e consequências

Uma das transformações de maiores consequências foi a da reforma dos direitos de propriedade. No passado, a soberania terra era exclusiva dos chefes, uma instituição que se baseava no edifício consuetudinário de concepções e que garantira a preservação natural das ilhas para o bem de toda a comunidade. Com a introdução de novas concepções de propriedade e com a consequente superação de noções de propriedade coletiva, tornou-se necessária a divisão das terras entre os habitantes.

Esse parcelamento tem sido visto como um grande ato de Kamehameha III° por historiadores que julgam o desenvolvimento segundo critérios de propriedade individual que predominaram. Não se pode esquecer, porém, que a divisão de terras foi uma consequência não simplesmente da superação de injustas prerrogtivas, mas sim de um outro edíficio de compreensão do mundo e do homem, assim como a da preservação e uso do patrimônio natural. O parcelamento das terras contribuiu à destruição do meio ambiente havaiano e levou à formação de grandes propriedades em mãos de estrangeiros, em particular norte-americanos, preparando assim a futura anexação do país aos EUA.

Desenvolvimento capitalista e corrida ao ouro

Se o período crítico de caos e violência fora o da época da pesca da baleia, a nova fase de reconstrução da sociedade foi marcada sobretudo pelo desenvolvimento da agricultura.

Com a concentração da terra parcelada em mãos de grandes proprietários estrangeiros, sobretudo de membros de famílias de missionários, tornou-se possível plantações em grandes latifúndios, principalmente de açúcar, café e abacaxí.

A mudança social e cultural do Havaí, segundo os critérios norte-americanos da educação propagada, caracterizou-se por um despertar de ambições materiais.

O Havaí foi, além do mais, alcançado pela corrida ao ouro descoberto na Califórnia. A emigração havaiana para os Estados Unidos nessa fase de sua história pode, assim, ser estudada sob o aspecto das transformações culturais sofridas pelo próprio Havaí com as suas fases de erosão do edifício tradicional de concepções, de crise cultural e moral, de reconstrução segundo normas regídas do protestantismo de uma ética de trabalho, de perda de terras e, agora, de eclosão de desejos de enriquecimento por todos os meios, mesmo abandonando as suas ilhas com o risco da própria vida.

Necessidade de força de trabalho externa

O desenvolvimento agrícola, que não podia contar com suficiente mão de obra entre os nativos, levou á necessidade de procura de trabalhadores no Exterior. Em 1852, chegou ao Havaí um primeiro contigente de trabalhadores chineses, dando início a um desenvolvimento que marcaria posteriormente de forma relevante a configuração populacional do país.

A população nativa, que já diminuira com surtos anteriores e como resultado do desenvolvimento geral que destruiu as condições tradicionais de sua vida, passou a ser dizimada com a introdução de doenças que tomaram formas epidêmicas.

Missão, hinologia e arquitetura: Hiram Bingham (1789-1869)

Com Hiram Bingham, principal vulto do grupo inicial de missionários que atuou no Havai, o arquipélago inseriu-se em antiga tradição cultural do protestantismo norte-americano.

Bingham descendia de uma família dos primeiros anos da colonização de Connecticut, em 1650. Nascido em Bennington, Vermont, estudou no Middlebury College e no Andover Theological Seminary.

Após ter-se casado - condição para a atividade na missão - partiu  a serviço do American Board of Commissioners for Foreign Missions para o Havai, de Boston, em 1819, juntamente com Asa (1787-1868) e Lucy Goodale Thurston.

Após estadia na ilha do Havaí (Big Island), transferiram-se para Honolulu, em 1820. Em 1823, batizou a rainha Ka'ahumanu e seis outros chefes da ilha, atuando decisivamente no combate à prostituição e ao consumo alcoólico.

Do ponto de vista educacional, traduziu livros bíblicos ao havaiano. As suas experiências no Havai foram descritas na sua obra A Residence of Twenty-One Years in the Sandwich Islands (1847).

Museu missionário em Honolulu

O complexo das Mission Houses na região central de Honolulu, abriga hoje um dos mais significativos museus da história missionária do Havai. Essa área havia sido entregue pelo chefe havaiano a Hiram Bingham e ao primeiro grupo de missionários enviado pelo American Board. Bem recebidos pelos chefes, receberam um terreno com fonte de água fresca na planícia ao sul do povoado de Honolulu, denominado de Ka Wai a H'ao.

Ao grupo pertenciam um agricultor, um tipógrafo (Elisha Loomis), dois professores, com suas mulheres e filhos, entre eles o médico Dr. Gerrit Judd,  transformando o local de seu estabelecimento no centro do processo de formação cultural cristã do "novo" Havaí. Construiu-se, ao lado dos edifícios de residência, imprensa e depósito, uma igreja coberta de sapé à moda nativa. Na casa da imprensa criou-se o alfabeto havaiano e produziram-se livros e folhetos na língua local.

O rei Kamehameha III permitiu, posteriormente, que ali fossem construidas casas permanentes. Com o crescimento da comunidade e devido aos perigos de incêndio das construções, decidiu-se levantar uma igreja solidamente construida. Bingham retornou aos Estados Unidos em 1840, viagem justificada pelo adoecimento de sua mulher. Possivelmente devido à sua grande influência na política havaiana, contrariando assim princípios congregacionalistas segundo os quais os missionários não deveriam atuar politicamente, o American Board of Commissioners for Foreign Missions não o reenviou ao Havaí, passando êle a atuar à frente de uma igreja afro-americana em New England.

Como em outros casos de famílias de missionários, os seus descendentes desempenharam papéis significativos na história do Havai, na história das investigações etnográficas e nas relações internacionais. O seu filho, Hiram Bingham II, foi missionário no Havai, o seu neto Hiram Bingham III, descobridor de Machu Pichu, o seu bisneto Hiram Bingham IV tornou-se vice-consul americano.


Kawaiaho'o Church: Westminster Abbey of Pacific em estilo New England

Ao missionário Bingham cabe a concepção da Igreja de Kawaiaha'o, construída entre 1836 e 1842. O edifício, pela solidez de sua arquitetura chamado de The Great Stone Church, - ainda que construida em blocos de coral cortados de recifes - tornou-se marco simbólico do estabelecimento do Protestantismo no Havaí. Tornou-se The Church of the Ali'i da elite havaiana, local de canto de hinos dos reis havaianos, de casamentos, de formação de filhos e de enterro da família real.

No seu estilo, revela a proveniência dos primeiros missionários, em particular de Hiram Bingham, e os seus elos culturais com a New England. Apesar desse estilo missionário americano, passou a ser considerada, pelo seu significado, como a Westminster Abbey of Pacific. A igreja foi dedicada a 21 de julho de 1842, em celebração que reuniu ca. de 5000 fiéis.

O rei Kamehameha III doou também o relógio de sua torre, fabricado em Boston, Massachusetts, pela firma Howard & Davis, enviado ao Havai em 1850. Os trabalhos de instalação foram feitos sob a supervisão do próprio rei.

O ministério musical da igreja

O canto de hinos e salmos desempenhou papel fundamental na atividade missionária e, assim, na transformação cultural do Havai. Com o projeto de construção de uma edifício sólido para a igreja também iniciou-se a formação de uma prática coral organizada. Assim, o Kawaiaha'o Church Choir, até hoje significativa instituição da vida musical de Honolulu, remonta as suas origens a um coro de 24 cantores que, a 4 de setembro de 1836, sob a direção de Hiram Bingham, cantou o Salmo 100 durante a Comunhão.

Personalidades da história política e cultural do Havai atuaram como cantores e organistas, entre elas a princesa Bernice Pauahi Bishop (1831-1884), a rainha Lili'uokalini (1838-1917) e o mestre-capela de origem prussiana Henri Berger (1844-1929) (Veja artigos a respeito). Também Daniel Akaka (*1924), Senador norte-americano, ali atuou como regente e Minister of Music.



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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (Ed.). "Congregacionalismo na mudança cultural do Havai: Honolulu Kawaiaho'o Church - 'Westminster Abbey of Pacific' sob Kamehameha III° (1814-1854) e seu significado para os estudos brasileiros". Revista Brasil-Europa 126/10 (2010:4). www.revista.brasil-europa.eu/126/Congregacionalismo.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


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  1. Casa da missão em Honolulu (Título e coluna)
    Prisão em Mauí (texto)
    Escola Kamehameha III em Lahaina, MauíKawaiaho'o Church (texto)
    Fotos A.A.Bispo e H. Hülskath
    ©

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 126/10 (2010:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -

e institutos integrados

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2617


©

Congregacionalismo na mudança cultural do Havai:
Honolulu Kawaiaho'o Church - "Westminster Abbey of Pacific"
sob Kamehameha III° (1814-1854)

e seu significado para os estudos brasileiros


Pelos 25 anos de oficialização alemã do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa
(
Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes, ISMPS e.V.)

 

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