Romantismo do Mar do Sul. Bora-Bora. Revista BRASIL-EUROPA 125. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

Poucas são as regiões do mundo que despertam associações comparáveis com aquelas que irradiam do nome de Bora Bora. Essa ilha surge como corporificação por excelência de idílio do Mar do Sul. Decantada como pérola da Polinésia, Bora Bora marcou visões de de um paraíso taitiano. Tendo a sua imagem no decorrer do século XX influenciada sobretudo pela cinematografia, transportou idealizações de Hollywood, fazendo com que a ilha se tornasse objetivo de sonhos e de viagens de lua-de-mel.

Bora Bora, ainda que privilegiada quanto à configuração de sua paisagem - marcada pela silhueta dos montes rochosos de Otemanu e Pahia e pela riqueza subaquática de suas lagunas de águas transparentes -, fica, em particular quanto à pujança de sua vegetação, aquém de outras ilhas do arquipélago, causando frequentemente decepções a visitantes.

Essa discrepância entre a imagem de Bora Bora e a sua realidade não pode ser apenas explicada pelo empobrecimento de seu mundo natural, um depauperamento que pode ser, de fato, constatado. O corte de coqueiros que hoje ali se constata - repercussão colonial de um fenômeno europeu causado hoje por riscos de tempestades e de vento - contribui à perda de uma das características da ilha que mais marcaram a sua imagem.

As origens mais profundas da imagem de Bora Bora devem ser procuradas no fato de ter-se nela cristalizado, de forma idealizada, um conjunto de características, qualidades e espectativas que dizem respeito à toda uma região.


Transformações de imagens e Romantismo

A descoberta do Taiti em meados do século XVIII ocorreu em fase da história cultural européia marcada por anelos de retorno à vida natural, a seus impulsos, à liberdade, aos sentimentos. A revelação do Mar do Sul não foi apenas marcada por expectativas e imagens já existentes, fundamentadas na tradição humanística - da ilha dos amores de Citeréia, de Vênus, de Calipso, das odes anacreônticas, do carpe diem de Horácio (65 A.C.- 8 A.C.), das éclogas de Vergil (70 A.C.-19.A.C.) - com as suas reinterpretações cristãs. A descoberta ou redescoberta do mundo insular do Pacífico inseriu-se e fortaleceu correntes do pensamento e das artes, de filosofia de vida, participando de transformações, passando de uma lírica amorosa do bucolismo e das imagens pastorais ao Romantismo.

Já na terceira década do século XIX Bora Bora era considerada expressamente como ilha romântica por excelência. O livro do geógrafo francês Grégoire Louis Domeny de Rienzi (1789-1843), publicado em 1836 e traduzido em vários idiomas, intitula um tópico de sua obra explicitamente "Bora Bora - Regiões românticas" (Oceanie ou cinquième partie du monde: revue geographique et ethnographique de la Malaisie, de la Micronesie, de la Polynesie, et de la Melanesie, Paris: Firmin Didot Frères,1836-38); Oceanien oder Der Fünfte Welttheil. Welt-Gemälde-Gallerie oder Geschichte und Beschreibung aller Länder und Völker, ihrer Gebräuche, Religionen, Sitten u.s.w. (...) Aus dem Französischen. Oceanien 2. Band. Polynesien, Stuttgart : E. Schweitzerbart's Verlagshandlung, 1837-1839, pág. 430).

"Bora Bora. Regiões românticas

Essa ilha tem feições românticas e estranhas. A sua terra oferece ocorrências muito singulares. Vê-se uma pedra redonda, uma espécie de farol sem luz, uma espécie de alto campanário sem sinos, coberto de verde, que domina um vale estreito, com um fila de Pandanus e coqueiros, que parecem aros de um chapéu de sol. Aqui e ali veem-se cabanas, agrupadas de forma muito amável, linda. É notável que, na bacia de forma circular, que o recife separa da ilha, a água é de rara claridade, e que a faixa exterior dos recifes não se encontra ora sob o mar ou ora acompanha a água, ora deserta, ora coberta com pouca vegetação, como em muitas ilhas, mas sim que ela é totalmente coberta de coqueiros, que formam como que uma coroa verde num  ramalhete de flores." (loc.cit.)

Nessas palavras, já se constata o conhecimento, na Europa, das lagunas de água transparentes de Bora Bora e, sobretudo, o coqueiral que ladeava as praias e que circundava a ilha, diferenciando-a de muitas outras. O cunho romântico da ilha, porém, vinha de formações que lembravam ruínas, correspondendo, assim, a um estado de espírito europeu marcado por reconscientizações do passado, por saudades do perdido e anelos restauradores. A imagem da ilha dos amores parece já ter passado por transformações, da visão idealizada do homem natural e de seus prazeres de amor de décadas do Iluminismo, de estética dos sentimentos de meados do século XVIII, da linguagem mitológica sobretudo de orientação helênica a uma visão marcada pela temporalidade da existência, pelo misterioso, por segrêdos, pelo amor que prende almas. Não um pensamento voltado a templos e deuses gregos surgem aqui transpostos ao Taiti, como em relatos anteriores, mas sim a menção à cultura própria da ilha, às cabanas dispostas de forma a tocar os sentidos. Essa transformação romântica da imagem correspondia também à realidade taitiana, quando o mundo anterior da cultura polinésia, a sua Antiguidade, já havia erodido ou se encontrava nos seus últimos suspiros, destruído pelo contato com o europeu e a missão cristã. As ilhas encontravam-se repletas de ruínas de antigos locais e objetos de culto, imersos na nebulosidade de mitos e estórias já não mais bem compreendidos, transmitidos na memória de velhos habitantes. As próprias idealizações européias do homem natural e seus amores, já reconhecidas como pertencentes ao passado, passaram a ser envoltas pelo véu nostálgico que unia o amor a indefinível saudade.

Coqueirais como laço de ramalhete

Se tais transformações disseram respeito ao Taiti no seu todo - até mesmo à Polinésia em geral - que entrara na consciência européia como última região paradisíaca de um homem feliz perdida com o contato com a civilização, pergunta-se a razão pela qual sobretudo Bora Bora tenha adquirido a imagem de ilha do amor romântico por excelência. Esse fato pode ser compreendido com relação à ilha do Taiti propriamente dita, cujo porto, frequentado por marinheiros, comerciantes, e pessoas do mais baixo nível de sentimentos envolvidas em empreendimentos de caça marítima tornava-se principal portão da decadência e destruição. Se Bora Bora manteve-se ainda no seu relativo isolamento mais distante desse triste desenvolvimento, esse era o caso também de muitas outras ilhas que não chegaram a adquirir a imagem de Bora Bora. A resposta a essa questão encontra-se no texto citado da obra enciclopédica de Rienzi. A ilha era associada com a visão de um ramalhete seguro por um laço, um laço formado de coqueirais. A orla de coqueiros que cercava o interior coberto de florestas com os seus mistérios, contrastando com a transparência das águas da laguna e formando um anel mais acentuado do que em outras ilhas foi característica que explica o privilégio de Bora Bora.

Ilha de amores configurada por coqueiros

A ilha de amores da tradição humanística, da ilha de Venus (Veja artigo a respeito nesta edição), foi o principal fator determinante da imagem do Taiti à época de sua revelação aos europeus. A sua romantização, correspondendo a um anelo de distanciamento das referências com a Antiguidade grega e valorização dos elos locais, próprios, nativos, significou uma reconfiguração da antiga imagem. Poder-se-ia dizer que a idéia da ilha dos amores, com as suas mais diversas associações, tornou-se matéria de outro princípio formal; foi, em singular processo de performatização, envolta pela forma, pelo invólucro, pela cintura dos coqueirais. Tornou-se, assim, em Bora Bora, corpo e alma, produto de um matrimônio, mãe européia e pai polinésio. Também o princípio formal resultante, porém, foi outro, com outra matéria, ou seja, o coqueiro, após a configuração da imagem de Bora Bora como ilha romântica por excelência, já não era o coqueiro como antes. Passou a ser um coqueiro balbuciante, que desperta associações com a longínqua idéia da ilha paradisíaca, com anelos indefiníveis expressos em antigas alegorias. Esse coqueiro romântico já não precisa estar em Bora Bora, pode até mesmo não apresentar nenhum elo explícito com essa ilha do arquipélago taitiano, leva, porém, para todo lugar, um espírito da Romântica do Mar do Sul.

Das viagens dos cocos e da difusão de coqueirais

No Centro Cultural da Polinésia, no Hawai, apresenta-se um filme que trata de forma expressiva processos de ocupação humana da Polinésia, de sua difusão e supostos contatos com indígenas da América do Sul.

Para a elucidação desse processo de difusão humana, utiliza-se a imagem do coco e sua propagação. Devido à sua forte casca, e à impermeabilidade do receptáculo, o coco tem a possibilidade de resistir por longo tempo, até 110 dias na água salgada, mantendo a sua fertilidade. Levado por correntes marítimas, o coco pode assim superar grandes distâncias, atingindo praias de outras costas, ali germinando. Essas características do coco explicariam, assim a grande difusão de coqueiros.


Essa imagem, empregada pelo filme, corresponde, de fato, a uma hipótese considerada por especialistas (J. E. Mendes Ferrão, A Aventura das Plantas e os Descobrimentos Portugueses, Exposição do Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1992, pág. 174). Ela poderia explicar também a menção de Gonzalo Fernández de Oviedo (1478-1557), acompanhante de Colombo, que parece indicar a existência de coqueiros no litoral pacífico do Panamá à época do descobrimento do continente americano (loc.cit.).


Vindo da Polinésia ou do Sueste Asiático, o coco teria alcançado o continente americano pelo Pacífico, podendo também ter-se expandido pelas ilhas do Caribe, o que explicaria uma possível existência de coqueiros no continente antes da chegada dos europeus. Trata-se aqui de conjecturas, e muitos autores as rejeitam, salientando, por exemplo, não haver coqueiros nas costas mexicanas do Pacífico ainda em 1539.


Segundo a opinião predominante, somente no século XVI é que os coqueiros teriam sido introduzidos no Brasil, pelos portugueses, e em Porto Rico, pelos espanhóis. Os coqueiros já tinham-se há muitp muito propagado em várias regiões do Oriente, vindos da Polinésia, e os portugueses o teriam trazido, pelas suas múltiplas utilidades, ao Brasil. O coco não era ainda conhecido na África, a não ser talvez nas costas voltadas ao Índico, onde parece ter sido encontrado durante a viagem de Vasco da Gama. Os portugueses depararam, no Oriente, com plantações já bem desenvolvidas de coqueiros nas Molucas e no Ceilão. Tendo aprendido a apreciar o coco e a água do coco, e constatado a facilidade de seu transporte e a durabilidade do fruto, passaram a levá-lo nas suas naves. Referência à água "suave e doce" do coco, "que não cria fastio", encontra-se no Aromatum et simplicium aliquot medicamentorum apud indos nascenciam historia, de C. Clusio (cit. J. E. Mendes Ferrão, loc.cit).


O caminho da viagem do coco do Pacífico ao Brasil, porém, teria passado por Moçambique e Cabo Verde. Ali, na ilha de Santiago, nas proximidades de Ribeira Grande, já haviam-se plantado palmeiras que produziam o coco conhecido por "noz da Índia" ao redor de 1545. Também o coqueiro já havia sido plantado em São Tomé. O cultivo do coqueiro nas terras continentais da África Ocidental parece ter encontrado dificuldades. A região entre o Senegal e Angola permaneceu antes marcada por palmeiras nativas, em particular a do dendém. Segundo outro autor (Pio Correia), o coco foi trazido diretamente do Oriente para o Brasil, em 1553, sendo plantado na Bahia. Gabriel Soares de Souza registra que os coqueiros deram-se até mesmo melhor na Bahia do que na própria Índia.   (cit. J. E. Mendes Ferrão, loc.cit).


O canto do coqueiro em Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711)

Embora tendo sido resultado de transplantação, o coqueiro, extraordinariamente bem aclimatado na Bahia e no Nordeste, já era considerado como árvore brasileira no século XVII. Esse fato é documentado pelo canto ao coqueiro no poema "Frutas do Brasil", de Manuel Botelho de Oliveira. Esse erudito advogado baiano, que realizou estudos em Coimbra, onde travou conhecimento com Gregório de Matos Guerra (1636-1695), autor de "Música do Parnaso, dividida em quatro coros, de Rimas Portuguesas, Castelhanas e Latinas, (...)", editado em 1705, decanta a galhardia dos coqueiros, a água de coco e a sua polpa.

"E, tratando das próprias, os coqueiros
Gualhardos e frondosos
Criam cocos gostosos,
E andou tão liberal a natureza
Que lhes deu por grandeza
Não só para bebida, mas sustento,
O néctar doce, o cândido alimento."

O coqueiro no "Brasil Pitoresco" e as ilhas de Charles Ribeyrolles (1812-1861)

Se os coqueirais em Bora Bora surgiam como "laço em ramalhete" no Romantismo europeu, determinando a imagem romântica do Taiti, na mesma época também os coqueirais do Brasil já eram sentidos como caracterizadores da paisagem, sobretudo a do Nordeste e da Bahia. Testemunho desse fato é o trecho dedicado aos coqueiros no "Brasil Pitoresco" de Charles Ribeyrolles, em texto dedicado a Victor Hugo (1802-1885) e no qual descreve a sua viagem de Pernambuco ao Rio de Janeiro.

"Era um inglês que me abordava. Médico, farmacêutico ou veterinário? Ignoro-o. Pelo menos, êle conhecia os produtos e conhecia o Brasil.
(...)
Sim, senhor. É o coqueiro. Menos desenvolvido que a palmeira de cera, acredito. Mas que profusão e que abundância! No tôpo das folhagens, êle ostenta o seu cacho como a arequa, tenro, alongado, suculento, exquisito fruto. Entre as últimas fôlhas, vereis a sua penca de flôres amarelas. Cada uma delas vos dará um coco, fruto e carne ao mesmo tempo, uma carne branca, um leite e um creme. Nada se perde da polpa, dessa amêndoa ou noz. Se tendes sêde, talhai a casca, fazei uma incisão, recolhei a seiva. Depois de fermentada, tereis o vinho do coqueiro, verdadeira ambrosia. Sois armador, capitão ou simples calafate? Pois, com a fibra da noz, onde se encontra o óleo, podeis calafetar as fendas, trançar vossos cordames. O próprio tronco vos fornecerá tábuas para um convés bem sólido. Até a casca vos servirá de copo.
- Mil agradecimentos, senhor. Conheceis de sobra o coco desde a medula à fibra. Nunca esquecerei, quando me fôr preciso, a sua amêndoa branca, o seu saboroso néctar."
(Charles Ribeyrolles, Brasil Pitoresco I, trad. G. Penalva, São Paulo: Martins, 1941, 138)

O mesmo autor, referindo-se à beleza de Niterói, demonstra de forma explícita a passagem ao Romantismo na linguagem das imagens:


"Niterói! Donde vem êste nome suave como uma canção? Dos índios Caribú, da tribu dos Tamoios. (...) Não é uma fantasia, é a imagem verdadeira. Em vez de se atulhar de santos e de deuses amortalhados, não ganhariam mais as línguas geográficas, se copiassem a natureza? As lendas mudam ou passam. A natureza é imortal." (op.cit. 145)


O escritor francês aproxima sobretudo Paquetá do Taiti, quando fala, romanticamente, que mesmo sem possuir ruínas de monumentos antigos poderia estar no arquipélago jônico (Veja artigo sobre Citeréia, nesta edição):


"Se possuís a santa e inesgotável curiosidade dos artistas, se não quereis perder coisa alguma dos esplendores desflorados nessas águas pela mão de Deus, tomai um dêsses barcos a remadores e correi por tôda a parte, praia por praia, ilha por ilha. Encontrareis menos ruínas e glórias mortas do que nos arquipélagos jônios. Paquetá, por exemplo, vale bem Pafos, em Chipre, embora não exceda de meia légua de comprimento por sessenta braças de largura e tenha eleito por patrono a S. Roque, em logar de Venus." (op.cit. 145-146)


Polinesiações do Brasil?


A imagem do Brasil marcada por praias contornadas de coqueiros do Nordeste, de um espírito e modo de vida natural, descontraído, aberto aos prazeres da vida, sensual, ao mesmo tempo exótico, melancólico e saudoso, nostálgico, em paisagens onde se vê, aqui e ali, campanários e muros em ruínas de antigas igrejas em mar de coqueirais não corresponde, assim, a uma paisagem e a um modo de vida da região existente antes da chegada dos europeus. Essa imagem também não possui relações diretas com a África Ocidental, uma vez que lá não havia coqueiros, não representando assim influências culturais africanas. A paisagem e a vida das praias ensombreadas por coqueiros representam resultado de atividades de cultivo desenvolvidas pelos portugueses, como mediadores, mas remontam a antigas raízes na Polinésia.


Se, porém, houve uma "polinesiação" de parte considerável do litoral do Brasil já nos primeiros séculos da colonização, anterior, assim, à descoberta da própria Polinésia pelos europeus, apenas muito mais tarde é que o meio ambiente assim criado e o modo de vida correspondente adquiriram a imagem que possuem na atualidade. Por caminhos complexos, idéias e imagens da "ilha dos amores" vincularam-se a coqueiros e coqueirais através de processos receptivos do Taiti na Europa e esse novo coqueiro, agora exótico e romântico, teria passado ao Brasil. A recepção de uma Romântica do Mar do Sul no Brasil representaria, assim, uma segunda "polinesiação".


A  Romântica dos Mares do Sul, corporificado em Bora Bora, representa um fenômeno cultural, imagológico, marcado por transformações. Merece ser considerado em estudos interculturais, também naqueles relacionados com o Brasil, pois influenciou visões de outras ilhas consideradas como românticas, de litorais e paisagens marcadas por coqueirais e uma estética que se expressa na arquitetura, em mobiliário e em trajes.

Hoje, a procura de recriação de uma atmosfera dos Mares do Sul pode ser constatada de forma mais evidente na construção e na decoração interna de hotéis e na indústria turística. Muito do que se considera como expressões resultantes de contribuição cultural afro-brasileira e indígena em residências de veraneio e em instalações turísticas parece antes ser resultado da recepção de imagens de uma Romântica do Mar do Sul. O brasileiro, em Bora Bora e em outras ilhas do Mar do Sul, lembra-se de Olinda, de Itamaracá, de praias de Alagoas, do Paraíba e de muitas outras da costa brasileira.

A imagem do Brasil marcada por praias emolduradas de coqueiros, de vida de praia, de paraíso tropical, difundida em catálogos turísticos e na propaganda de hotéis, - que procuram também corresponder arquitetonicamente a essa imagem, determinam percepções do país no Exterior e, em parte, internas.

Entretanto, aquele que se dedica ao estudo das fontes históricas, sobretudo dos relatos dos viajantes estrangeiros de séculos passados, fica surpreendido em não lembrar-se de descrições do país de tal forma centralizadas nas suas praias ladeadas de coqueiros. As referências à paisagem privilegiada do país focalizam antes outros aspectos da natureza, em particular a grandiosidade de suas florestas, intranspassáveis, de incomparável diversidade de flora e de fauna, das suas cachoeiras e rios, e os dados relativos à vida do homem brasileiro, sobretudo os positivos, dizem respeito antes à vida  urbana das cidades, à rural nas fazendas e à do indígena e caboclo, não à de bares de praia e às suas extensões na vida urbana das cidades. Mesmo referências às belezas do litoral brasileiro apontam antes o verde escuro das florestas que alcançavam o mar, o contraste da imensidade do oceano com a magnitude das montanhas cobertas de vegetação luxuriante.

As imagens do passado transmitem antes a visão de um Brasil marcado pelo mistério de suas matas com as suas árvores gigantescas e envolvidas por cipós e trepadeiras, por uma atmosfera escura de intranspassabilidade, não pela ensolarada abertura determinada pelo olhar de fora, à orla de coqueiros. Também parques e jardins do passado não demonstram ter sido inspirados nessa estética praiana, transmitindo ainda hoje outras concepções e sensações daquelas de projetos paisagísticos mais recentes, estes sim marcados antes por amplos espaços abertos. Sugerem uma diferente valorização de aspectos da natureza, uma outra forma de percepção e contemplação do mundo envolvente, com consequências para a própria condução de vida e identidade.

Seria certamente inadequado supor que essa essa focalização perceptiva da natureza do Brasil, expressa no paisagismo do passado, com as suas consequências culturais, haja sido simplesmente produto de transplante de visões e modos de expressão e configuração paisagística do estrangeiro, resultados de uma orientação cultural do país pela Europa. Essa explicação corresponderia ao mesmo mal-entendido que levou e leva à desvalorização da cultura musical e artística de grande parte passado brasileiro como resultado de transplantes ou imitações européias, superados enfim por desenvolvimentos criados pelas correntes nacionalistas e pela Semanha da Arte Moderna, estes sim vistos como manifestações de uma identidade própria, finalmente encontrada. Não, pelo contrário, dever-se-ia antes considerar a historicidade inerente à mudança de perspectiva na percepção do mundo natural e de suas expressões arquitetônicas e culturais, o processo histórico que levou ao predomínio de determinados aspectos do meio na caracterização da imagem do país, com as suas consequências para a identidade e expressões culturais.

O fascínio pela praias contornadas de coqueiros e pela amenidade da vida praiana remonta ou foi fomentado, em grande parte, pela descoberta européia da Polinésia, em particular do Taiti, no século XVIII. O europeu encontrou, nessa parte do mundo, uma natureza marcada por atóis e pequenas ilhas, onde o homem vivia orientado ao mar, recebendo-o da forma cordial, em canoas que o buscavam nas naves. Foi antes a visão da felicidade de uma vida conduzida em harmonia com a natureza, sem a escravização à mente voltada à matéria que marcou a imagem paradisíaca das praias exóticas. A percepção européia do romantismo exótico do Mar do Sul, liminar e litorânea, não deixou de ser assimilada pelos seus próprios habitantes, intensificando aspectos e expressões. Também a cultura polinésia parece ter sido antes marcada pelo mistério das grandes florestas, como o sugerem as marae em locais recônditos das matas. As grandes árvores eram veneradas. A ação européia determinou sob muitos aspectos uma mudança da paisagem das ilhas do Pacífico. Pode-se citar aqui o comércio de madeira, que levou já no século XIX ao desflorestamento sistemático de ilhas - tais como as do pau-brasil no Brasil do século XVI. A plantação sistemática de coqueiros e palmeiras para fins comerciais que marcou a presença colonial européia. O mar de palmeiras e coqueiros que pode ser observado em  várias regiões foi produto de plantagem, substituiu e substitui em parte grandes florestas nativas.

Hoje, a Romântica do Mar do Sul encontra a sua expressão sobretudo em hotéis, também no Taiti e no Hawai.  Não apenas marca a imagem dessas ilhas em visões do Exterior, mas também é utilizada para a auto-promoção turística e cultural. Pela sua internacionalidade, representa um fenômeno que merece ser considerado nos estudos culturais em contextos globais. É responsável por uma certa uniformidade arquitetônica e paisagística em muitas regiões do mundo, aproximando hotéis de Waikiki àqueles de praias brasileiras, de Santo Domingo a clubes em todo o globo.

Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (Ed.)."Bora Bora e Brasil: 'Romântica do Mar do Sul' nas suas transformações e extensões. Da viagem de cocos e da difusão de coqueiros". Revista Brasil-Europa 125/12 (2010:3). www.revista.brasil-europa.eu/125/Romantismo_do_Mar_do_Sul.html


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa:
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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 125/12 (2010:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
órgão da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
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de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2599


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Bora Bora e Brasil: "Romântica do Mar do Sul" nas suas transformações e extensões

Da viagem de cocos e da difusão de coqueiros





No âmbito do programa Atlântico/Pacífico de renovação dos estudos atlânticos e interamericanos da A.B.E. 
sob a direção de A.A.Bispo

 























  1. Fotos H. Hülskath©

 

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