Noble sauvage. Revista BRASIL-EUROPA 125. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

Estudos que procuram relacionar o Brasil e a esfera do Pacífico, aqui em particular a Polinésia Francesa, defrontam-se com o significado de ambas as regiões para uma história das concepções antropológicas e filosófico-culturais. O descobrimento do Brasil, no século XVI, foi acompanhado pelo despertar de interesses pelo indígena americano na Europa e o descobrimento do Taiti, no século XVIII, pelo fascínio pelo homem do Mar do Sul. Os nativos de ambas as regiões causaram admiração, sendo interpretados segundo modêlos de noções e imagens já existentes, influenciando, ao mesmo tempo, as reflexões e a história posterior das concepções antropológicas e culturais. O estudo de ambas as regiões nos seus elos recíprocos com a Europa não pode assim deixar de considerar o papel do indígena americano e o do polinésio nas transformações que ocorreram na auto-compreensão do homem.

O pesquisador é defrontado, em ambos os casos, com conceitos de complexo significado e de difícil compreensão, sobretudo por terem mudado de sentido no decorrer dos séculos. São conceitos que dão margens a mal-entendimentos de toda a ordem, o que faz incongruente a respectiva literatura, originando discussões e polêmicas. Entre esses conceitos, encontram-se aqueles do selvagem e do homem natural. Um desses problemáticos conceitos também é o do "noble sauvage", frequentemente utilizado tanto em reflexões relativas ao indígena na percepção do passado como com relação ao polinesio. É um conceito frequentemente corrigido e criticado no seu uso, entre outros já no século XIX por Charles Dickens no artigo "The noble sauvage" (1851) (Grace Moore, "Reappraising Dickens's 'Noble Savage'", The Dickensian 98/458 (2002): 236ss). Claridade com relação a esses conceitos apenas podem ser alcançados através de procedimentos que considerem adequadamente a história das idéias em contextos globais das relações entre os povos.

Estudos dessa natureza não possuem apenas interesse histórico, mas prometem também contribuir a análises culturais da atualidade e a reflexões a respeito da própria imagem e representação. Tanto o Brasil como a Polinésia são até hoje associados com atitudes, expressões e valores que marcaram as primeiras impressões dos europeus relativamente aos nativos de ambas as partes do mundo: alegria, despreocupação, descontração, espírito lúdico, beleza, simplicidade, sensualidade e ao mesmo tempo inocência, naturalidade relativamente à nudez. Tais impressões ganhas nos primeiros contatos marcam hoje, até mesmo em estereotipos, imagens e expressões que procuram representar as respectivas culturas, a mentalidade e as características de seus habitantes.

O "noble sauvage" que os europeus pensaram encontrar no Taiti do século XVIII não pode ser elucidado apenas a partir de concepções da época, mas exige que se atente a um desenvolvimento de séculos de idéias e imagens, e no qual o indígena brasileiro desempenhou papel relevante. A consideração do índio nas suas relações com o edifício de concepções antropológicas da época dos Descobrimentos representa pressuposto para o estudo de desenvolvimentos posteriores.

A "certidão de nascimento" do Brasil, a Carta de Pero Vaz de Caminha, registra impressões que se assemelham àquelas dos viajantes posteriores relativamente ao Taiti:

"A feição deles é serem pardos, quase avermelhados, de rostos regulares e narizes bem feitos; andam nus sem nenhuma cobertura; nem se importam de cobrir nenhuma coisa, nem de mostrar suas vergonhas. E sobre isto são tão inocentes, como em mostrar o rosto. (...)

(...) Uma daquelas moças estava toda tinta, de baixo acima, daquela tintura, a qual, na verdade, era tão bem feita e tão redonda; e sua vergonha, que ela não tinha, tão graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições, faria vergonha, por não terem a sua como ela.

(....) Enquanto ali andaram, este dia, sempre dançaram ao som de um tamborim nosso e bailaram com os nossos, de maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus. Se a gente lhes acenava se queriam vir às naus faziam-se logo prestes para isso; de tal forma que se a gente os quisesse a todos convidar, todos viriam.

(....) Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher moça, a qual esteve sempre à missa e a quem deram um pano com que se cobrisse e puseram-lho ao redor de si; mas, ao sentar-se não fazia memória de o estender muito, para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gete é tal que a de Adão não seria maior quanto a vergonha" (J: A. Vaz Valente, A Carta de Pero Vaz de Caminha: Estudo crítico, paleográfico-diplomático,  Coleção Museu Paulista, São Paulo 1975,  pág 125, pag. 137, pág. 179, pág. 188).

Fundamentação bíblica de concepções antropológicas

Não se pode esquecer que o "selvagem" já existia no repertório de imagens da Idade Média, ou seja, era parte do edifício de concepções antropológicas cristãs. Foi, assim, empregado para designar o homem das Canárias no início dos empreendimentos atlânticos. A consideração das concepções relativas ao homem de fundamentação bíblica é indispensável para a compreensão da visão européia do indígena.

Fundamental nessas concepções é a de que o homem, no seu estado original, foi criado à imagem do mais alto modêlo possível, e portanto segundo os mais altos critérios, e vivendo em estado paradisíaco. Fundamental também é que o homem perdeu esse estado pelo pecado original, caindo numa situação marcada pelo suor do trabalho, mas também pelo direcionamento de seus ímpetos à terra, à riqueza material, como a história da geração de Caim relata. Um desenvolvimento que levou à deturpação do gênero humano e à sua morte pelas águas, da qual Noe e sua família se salva. Os seus três filhos é que seriam os ancestrais de povos de diferentes regiões do mundo, o que indica a base antropológica das concepções etnográfico-simbólicas à época dos Descobrimentos. O edífico de concepções antropológicas referentes à situação após a expulsão do Paraíso e o salvamento do dilúvio é, no decorrer da narrativa bíblica, marcado por caídas ou uma parte descendente, por libertações ou uma parte ascendente e uma superior, havendo sempre o risco de decaídas, causada por um direcionamento à matéria, e o que leva a uma escravização ao trabalho no intuito do alcance de riquezas e satisfação de ambições.

A falta de consideração ou de compreensão por essa estrutura de concepções e imagens por parte de estudiosos deu origens a errôneas interpretações. A idéia de que o homem é por natureza bom, não é produto de séculos posteriores, mas encontra-se já na noção de sua criação original: seria impensável que o homem criado segundo a mais alta imagem tivesse natureza má. Entretanto, a humanidade, após a perda desse estado, encontra-se, segunda esse edifício consuetudinário de concepções, em outra situação, marcada pela deturpação.

O europeu, ao encontrar o indígena, - e mais tarde o polinésio - não poderia ter suposto ter encontrado o homem original, em estado paradisíaco, o que é por vezes mencionado por alguns autores, uma vez que, segundo as concepções consuetudinárias, esse foi perdido para todo o gênero. Se assim não fosse, não teria havido necessidade de missionação, de levar o evangelho de uma regeneração do homem pela fé no antitpo de Adão.

O europeu, porém, não encontrou, nem no indígena, nem mais tarde no polinésio, o tipo humano correspondente à geração de Caim, ao período de trabalho de Abrão no Egito ou à escravização do povo hebraico no mesmo Egito. De forma alguma os nativos se mostravam escravizados ao trabalho, à procura de riquezas materiais, impregnados de ganância e ambição, fatigados pelo labor incansável na procura de excedentes econômicos, utilizando todas as suas forças intelectuais, emocionais e voluntativas para o alcance de poder material.

Os viajantes - e os missionários - registraram em ambos os casos o fato de que os nativos não viviam para o trabalho, - surpreendiam-se até mesmo com a faina e as ambições dos europeus -, e que se mostravam despreocupados, alegres, felizes, em harmonia com a natureza envolvente e mesmo gozando de liberdade física. No sistema consuetudinário de concepções, a consideração desse tipo humano não foi sempre fácil para o europeu, sendo localizado em posição inferior no sistema imagológico, apresentando, porém, características do homem em posição intermediária, ascendente, marcado pelo impulso da liberdade e não escravizado ao trabalho.

Somente uma reconsideração cuidadosa da literatura da época dos Descobrimentos e dos séculos que se seguiram sob o pano de fundo das concepções antropológicas e etnográficas de fundamentação bíblica poderá revelar de forma adequada como o indígena levou a uma diferenciação ou à transformação do edifício consuetudinário de idéias e imagens. Não se pode esquecer, porém, que o seu descobrimento pelos europeus ocorreu em época de profundas mudanças religiosas na Europa, a da Reforma protestante, acompanhada por novos pêsos na interpretação bíblica, sobretudo também no referente às relações entre o Antigo e o Novo Testamento, com consequências para a hermenêutica, inclusive aquelas de particular relevância para as concepções antropológicas.

Referências a Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)

Em estudos referentes ao Pacífico, encontra-se não raro a menção ao papel relevante que sobretudo o taitiano teria desempenhado para o conceito do "noble sauvage" na Europa. O europeu teria encontrado, na Polinésia, a expressão viva e o testemunho de uma concepção de particular atualidade na época. Lembra-se, neste contexto, em particular de Jean-Jacques Rousseau.

Quando, em meados do século XVIII, a Academia de Dijon levantou a questão, cuja resposta devia ser premiada, se o desenvolvimento das artes e das ciências teriam colaborado para a nobilitação dos costumes homem, Rousseau apresentou um texto no qual respondia negativamente à pergunta (Discours sur les sciences et les arts, 1750). Rousseau partia da idéia de um estado original do homem natural, no qual teria sido feliz; desse estado teria caído, e nessa situação decorria a sua vida em sociedade, sob a ação da ciência ou da razão dirigida ao conhecimento do mundo material. O homem devia lembrar-se dos valores do estado original, caracterizado por liberdade, pureza e virtudes, por êles se orientando. Nesse estado, deveria procurar não cair novamente na situação anterior.

No seu Discours sur l'origine et les fondements de l'inégalité parmi les hommes, escrito em 1754, mantendo a sua atitude crítica perante o racionalismo, traçou um quadro do desenvolvimento do homem no qual este teria passado de um estado original a um estado marcado pela desigualdade. O estado mais feliz da humanidade seria um estado intermediário, situado entre o estado inferior e o superior. A formação de propriedade surgia em estreito relacionamento com a deturpação do homem, originalmente bom, marcando negativamente o estado cultural da sociedade.

Tais concepções teriam contribuído ao despontar de um anelo à vida natural, em harmonia com a natureza, à simplicidade e às virtudes, que marcaram profundamente a segunda metade do século XVIII pelas suas dimensões educativas (Julie ou La nouvelle Héloise, 1761; Emile ou De l'éducation, 1762), e sócio-políticas (Du contrat social, 1762). Um retorno ao estado feliz do selvagem não seria possível, e o homem natural ter-se-ia submetido na sua vontade ao bem comum, constituindo um corpo de estado com vontade geral.

A concepção do homem proposta por Rousseau não pode ser compreendida simplesmente como retorno ao homem original. Essa imagem do homem natural deveria apenas ser recordada, servir como guia. A imagem do homem de Rousseau reflete em parte concepções muito antigas da filosofia e da tradição simbólica, formuladas de modo próprio pelo pensador, e necessitam, assim, ser consideradas na sua inserção em determinadas correntes do pensamento. O conceito do "bon sauvage" não pode ser indiferenciadamente e exclusivamente considerado à luz de uma recepção do pensamento de Rousseau.

O taitiano e suas repercussões nos conceitos do "noble sauvage"

Os europeus que alcançaram o Taiti, em 1769, ficaram impressionados com a vida aparentemente fácil e alegre dos nativos, pela sua cordialidade, pelo ambiente idílico e belo em que viviam, e pelo clima ameno da região. Ficaram sobretudo surpreendidos pela liberdade sexual que reinava, a facilidade com que homens e mulheres satisfaziam os seus desejos e a disponibilidade das jovens em travar relações com os marinheiros europeus, desenvolvendo-se em muitos casos elos afetivos de ambos os lados. Assim, o próprio motim do Bounty (veja artigo a respeito) foi pelo que tudo indica determinado pela má vontade dos marinheiros europeus em abandonar a ilha paradisíaca e as relações afetivas que ali criaram. Essas características dos habitantes da Polinésia vinham de encontro às concepções do homem no estado caracterizado pela recuperação de impulsos à liberdade, marcada por uma vida em harmonia com a natureza, a inocência, a coragem moral e a saúde física.

Entre as descrições que contribuiram à difusão dessa imagem dos taitianos citam-se as de Philibert Commerson (1727-1773), botânico na viagem de Louis-Antoine de Bougainville (1729-1811), de 1766 a 1769, assim como de Joseph Banks (1743-1820). Foi uma imagem marcada sobretudo por cientistas, não tanto por navegadores, que tinham interesses mais pragmáticos. Em parte, parece ter sido preparada por concepções já existentes na Europa, ou seja, representavam expectativas dos observadores, que teriam sido logo superadas, como salientam alguns autores. Entretanto, não se pode negar que o fascínio despertado pela alegria, cordialidade, naturalidade e liberdade dos taitianos manteve-se em contatos posteriores, marcando em parte até o presente a imagem do homem do Mar do Sul.

Taitianos na Europa

Com a vinda dos primeiros taitianos à Europa, trazidos pelos navegadores, onde serviram como intérpretes e testemunhos - como havia sido o caso dos indígenas no século XVI - a imagem foi fortalecida. Bougainville trouxe consigo à França o irmão do chefe Ereti, Ahu-toru, que foi apresentado à corte em Versailles. O taitiano alcançou grande popularidade, sendo recebido pelo rei e apresentado à sociedade francesa pela duquesa de Choiseul. A época de Étienne-François de Choiseul d'Amboise (1719-1785) foi marcada por um especial interesse pelas regiões extra-européias, também pelas colonias francesas nas Antilhas, entre elas por São Domingos. O taitiano frequentou a Ópera e o meio aristocrático de Versailles. No retorno à sua terra, em 1770, contraiu varíola na Île de France (Maurício) e faleceu em Madagascar. Repetiu, assim, uma experiência já conhecida desde início da época dos Descobrimentos, quando o primeiro representante nobre da África Ocidental, trazido à Portugal, onde foi recebido com festas e homenagens, tomando contato com a cultura ocidental, falecera na viagem de retorno. Tudo indica que a vinda do irmão do chefe taitiano a Versailles correspondeu a similar intuito de formar um agente de divulgação das grandezas e do poder da cultura européia na sua própria terra.

Na segunda viagem de J. Cook, em 1773, veio à Grã-Bretanha o taitiano Mai, de Huahine, a bordo do Adventure. Também êle foi alvo de grande interesse e atenções em Londres. (J. Robson, The Captain Cook Encyclopaedia, Auckland, 2004, 163-164)

Revisão crítica das impressões da época

Os pesquisadores têm procurado relativar as impressões positivas da época relativamente aos taitianos, lembrando que os europeus cairam em muitos mal-entendidos. Não correspondia à realidade, por exemplo, que os taitianos constituíssem uma unidade política e que haveria um chefe de toda a ilha, não reconhecendo que a sociedade era sobretudo organizada por famílias , não existindo um só líder que controlasse todos os grupos. Lembra-se que organização era dada sobretudo por relações matrimoniais e alianças assim constituídas, determinando os ari'i sacralizados no cimo da estrutura social; próximos em importância se encontravam os tahu'a, os líderes espirituais; à base da pirâmide social encontravam-se os manahune, o povo comum.

Lembra-se, nessa crítica, que os tahitianos não viviam em absoluta paz, mas estavam envolvidos em guerras e conheciam sacrifícios humanos. Assim, pouco antes da chegada de Cook, Raiatea e Huahine haviam sido capturadas por Puni de Bora Bora, o que levara à transferência a Taíti do culto de Oro de Taputapuatea e vários tahu'a a Taiti, tornando-se conselheiros de Puni. Em 1773, ao retornar ao Tahiti, Cook encontrou a ilha devastada por uma guerra. Chefes nativos procuraram o apoio de europeus para o combate de seus inimigos, tendo To'ofa pedido a Cook ajuda para atacar Moorea. (J. Robson, The Captain Cook Encyclopaedia, op.cit., 163-164)

Essas observações, que procuram salientar que a sociedade taitiana estaria longe de ser ideal e que, portanto, os europeus ter-se-iam equivocado em considerá-la à luz da concepção do noble sauvage, representam elas próprias expressão de mal-entendidos. O conceito não significava que o "nobre selvagem" viveria em contínua paz, sem guerras, em estado paradisíaco. Significava uma situação de homem intermediário, cuja vida era marcada pelo impulso à liberdade. A recuperação do impulso da vontade do estado natural, o ímpeto fogoso, que até mesmo explicava a guerra, pertenceria a esse estado. Entretanto, não era bárbaro. Ao contrário de muitos europeus, não seria dominado pela ganância e poder material, dirigindo as suas forças racionais  ao contrôle da natureza para fins de enriquecimento e de alcance de ambições, não sendo escravizado à vida de trabalho. Já tempos antes Michel de Montaigne (1553-1592), no seu "Dos Canibais" (1587), referindo-se ao canibalismo dos indígenas do Brasil, lembra que os europeus se comportavam de forma mais bárbara quando, em nome da religião, queimavam pessoas vivas.

Difusão da imagem do polinésio na Europa do início do século XIX

Obra relevante para o estudo da difusão da imagem do polinésio na Europa do século XIX é a de G. L. D. de Rienzi (Oceanie ou cinquième partie du monde: revue geographique et ethnographique de la Malaisie, de la Micronesie, de la Polynesie, et de la Melanesie, Paris: Firmin Didot Frères,1836-38); Oceanien oder Der Fünfte Welttheil. Welt-Gemälde-Gallerie oder Geschichte und Beschreibung aller Länder und Völker, ihrer Gebräuche, Religionen, Sitten u.s.w. (...) Aus dem Französischen. Oceanien 2. Band. Polynesien, Stuttgart : E. Schweitzerbart's Verlagshandlung, 1837-1839). O autor dedica longo texto à caracterização do polinésio, partindo da descrição da vida feliz do homem no meio ambiente paradisíaco das ilhas do Pacífico:

"No meio desse anfiteatro de verde, nesses hortos regados de água fresca e pura, vê-se o homem do povo feliz que colhe cantando das árvores que o alimentam, caminhando todo o dia sobre ervas perfumadas, à noite iluminando a sua cabana com ceras aromáticas" (...)

Nas suas reflexões, Rienzi relativa a crítica européia de que os polinésios seriam avessos ao trabalho. Para êle, também o europeu não trabalharia de forma tão árdua se vivesse em condições tão favoráveis como o polinésio. Assim, sugere a necessidade de uma diferenciação da noção negativa do ócio como origem de todos os males.

"Os polinésios são suaves, simples, hospitaleiros, alegres e sem preocupações, e parecem apenas viver para estarem sem nada fazer. Nós, orgulhosos de sermos europeus, que tudo criticamos que não seja como nós, vemos esse ócio como falta de virtude, origem de todos as demais faltas; se nos alegrássemos com um clima tão ameno, se recebessemos como êles alimentação, roupa e moradia sem esforço, seria então o amor ao trabalho também a nossa virtude principal? E - olhando para a nossa Europa - os napolitanos e os sicilianos também não vêem como a maior felicidade o Dolce far niente, o doce não fazer nada? Os polinésios amam as suas mães e amigos, respeitam os idosos e seguem os seus conselhos; independência é tudo para êles: virtudes que faltam a muitos europeus. Um amadurecimento precoce leva nesses países de noites e dias iguais, que parecem ser a pátria natural da humanidade, a uma cedo aproximação de ambos os sexos. Amor e mais ainda lascividade é a sua ocupação constante. O homem procura agradar à mulher pela sua coragem e destreza. A mulher oferece todos os atrativos, todos os meios que a natureza e a arte proporcionaram para prender os seus amados; e já na juventude vêem-se os pais renascidos numa numerosa descendência. Povos felizes, aos quais a natureza foi pródiga na saúde, na alegria, na abundância em tudo que diz respeito à alimentação, à vestimenta, à moradia do homem, essas três primeiras necessidades do homem; onde o céu, o chão, produtos, habitantes, enfim tudo se harmoniza para satisfazer a pequena somatória de suas necessidades. Tudo os livra das dificuldades sob as quais o europeu deve-se submeter para ganhar a sua vida." (pág. 4)

Já se exagerou a inocência e a felicidade que desfrutam os habitantes das ilhas da Polinésia. Felicidade e inocência são raras em todo o lugar, mesmo nessas partes sorridentes da Oceânia. O despotismo dos chefes, a crença no tabu e outras superstições, a guera das tribos entre si e o destino lamentável dos prisioneiros trazem mais sofrimento a grande parte dos habitantes dessas ilhas do que a nós. Não se deve crer que os polinesios, que permaneceram no estado selvagem, sejam tão mansos e hospitaleiros como aqueles entre os quais já despontou a aurora da civilização.  Não se pode mais esperar em encontrar entre êles figuras de Apolo, Hercules, Venus e Psyche, apesar de assim serem descritos nos relatos de Bougainville, Cook e outros navegantes. Essas imagens são tão inexatas como a descrição sem gosto da ilha Tinian de Anson. (...) (5)

A ilha do pacífico como oáse de amenidades no grande oceano

A obra de Rienzi testemunha a função que as ilhas do Pacífico adquiriram na história das navegações do século XIX. Conhecidas pelas suas amenidades, transformaram-se em pouso esperados e bem vistos dos marinheiros, locais de divertimentos e de aventuras. Esse desenvolvimento, porém, trouxe consequências desastrosas para as respectivas populações.

"Dá a Polinésia, porém, os seus bens apenas aos filhos da terra, não tem nada a dar aos europeus? A Providência parece ter colocado essas ilhas encantadores no meio do grande oceano para colocar os seus habitantes na posição de dar hospitalidade aos marinheiros que o atravessam. Elas oferecem, de parada em parada, pouso onde podem tomar ar, mantimentos, refrescar e divertir-se; êles encontram nos infinitos desertos do mar aquilo que os caminhantes cansados encontram nos oásis dos desertos arenosos da África. Os primeiros navegantes europeus foram recebidos pelos nativos da Polinésia como deuses ou reis. Pela sua confiança e pelos seus presentes, que deram de forma inocente, receberam apenas as faltas de virtudes e raramente as benfeitorias da nosssa civilização, amaldiçoando agora a sua hospitalidade sem fronteiras que nos deram os seus pais, menos inteligentes do que os chineses. As nossas armas, necessidades artificiais e reais malfeitorias, doenças vergonhosas e numerosas sementes de discórdia que plantamos entre esses homens naturaus os dizimaram; também creem agora, quanto vêem um navio europeu, que dele escorrem todo tipo de pragas, para tomá-los e martirizá-los na sua existência." (5)

Civilização como "desenvolvimento da inteligência"

Apesar de suas referências positivas quanto ao polinésio, Rienzi reconhece o processo civilizatório. Para isso, baseia-se em critérios "materialistas", ou melhor, das ciências naturais.

(...) Os sentidos dos polinésios são mais perfeitos do que os nossos, pois são mais exercitados. Os seus exercícios ginásticos os fizeram mais destros e fortes do que nós; mas a sua inteligência não se compara com a nossa, nem também possuem constância. (7)

"Sem querermos nos estender sobre a diferença entre povos selvagens e civilizados, (...) apenas uma frase é suficiente, para combater todo o sofisma. Para colocar-se a situação do selvagem acima do social, dever-se-ia primeiramente destruir a única característica que diferencia o homem do animal: a capacidade de aperfeiçoamento do gênero humano, imensa, mas não ilimitada. Passará muito tempo, até que os selvagens se equiparem a nós em civilização. Os conhecimentos vão passo a passo entre os homens; as idéias dos polinésios começam a se desenvolver; mas a ciência ainda não tirou as folhas que escurecem os seus olhos, enriquecidas pela herança de séculos. (....) Os princípios do materialismo não devem ser aqui desconsiderados. O desenvolvimento da inteligência orienta-se segundo o desenvolvimento, que se dá com o desenvolvimento do cérebro, de pais para filhos. A idéia moral atua no físico e o melhora, e o físico melhorado se modifica com a adoção de outras idéias. Observe-se aqui apenas os selvagens da Tasmania e da Austrália, que preferem ser exterminados ou morrer de fome do que assimilar um único costume dos europeus, que se tornaram seus senhores, e também as tribos americanas, que desde 300 anos desaparecem das colonias européias em lugar de se misturarem.

O Taitiano como "tipo ideal do homem original"

A transformação do edifício de conceitos da antropologia de fundamentação bíblica nos séculos após o Descobrimento necessita ser considerada quando se dirige a atenção às referências relativas ao homem nos escritos de cientistas naturais. A concepção, fundamental à antropologia filosófico-teológica, da perda de uma situação original, paradisíaca, pela queda num estado marcado pela vida de trabalho, cuja complexidade ainda era acrescida pela posição anti-tipológica do Cristianismo, deu lugar a um pensamento orientado segundo um desenvolvimento evolutivo.

O conceito de "noble sauvage" experimentou, nessa sua transformação uma mudança de significados e, em parte, uma perda de profundidade e diferenciação.

Um exemplo dessa transformação de concepções pode ser visto na referência de Charles Darwin (1809-1882) aos taitianos. O jovem cientista, impressionado com os taitianos e seu modo de vida, neles viu o "tipo ideal do homem original".

"Como uma imagem ideal do homem no estado original e em paisagem original surgiam os taitianos nús, tatuados, com as cabeças enfeitadas de flores." (Charles Darwin, Ein Naturforscher reist um die Erde, ed. C. Vollmer, Leipzig: Brockhaus 1968, pág. 268)

A perda da "nobreza selvagem" e a queda na barbárie pela ação européia

No conjunto das concepções antropológicas em que se insere a idéia do "noble sauvage", a queda do estado intermediário se faz com a perda da liberdade, com a escravização ao trabalho e à submissão à vida material. Segundo esses critérios, a queda dos taiitianos do estado intermediário, caracterizado pela maior felicidade possível de ser alcançada na situação atual, deu-se com a chegada dos europeus e, paradoxalmente, com a ação dos missionários.

Assim como no Brasil dos séculos XVI e XVII, a história cultural da Polinésia no século XIX foi marcada pelo esforço sistemático dos europeus em acostumar os seus habitantes a uma vida de trabalho regular, ao cultivo da agricultura para fins de excedentes, à abertura de estradas, à construção de casas sólidas, ao desenvolvimento tão eficiente quanto possível da extração de riquezas materiais para o aumento do poder, à intensificação máxima do corte de madeira para a exportação, à colheita de pérolas, ou seja, foi marcada pela arregimentação de todas as forças para o progresso material, para o desenvolvimento e para o enriquecimento.

Ao mesmo tempo, coibiu-se na medida das possibilidades à liberdade quanto a folguedos, danças, práticas rituais e musicais e a tudo que surgisse como moralmente questionável aos olhos dos missionários. Fomentando-se a racionalização do trabalho e da vida, promoveu-se ao mesmo tempo fixação escrita da língua e o ensino segundo critérios europeus.

Esse predomínio da racionalização e a escravização ao trabalho - em nome da vida espiritual - podem ser vistos como um paradoxo na história cultural. As suas consequências já foram estudadas de forma expressiva por diversos autores: perda da alegria de vida, enfraquecimento geral, mortandade coletiva. Um dos mais impressionantes casos desse desenvolvimento tem sido visto o de Mangareva (ilhas Gambia) sob a ação do missionário católico Honoré Louis Jacques Laval (1808-1880) (Veja artigo a respeito nesta edição).

Em 1836, Laval escreveu um texto que bem exprime essa mudança, ainda que não percebida pelo missionário como queda, mas sim como progresso:

"Os nossos insulanos levantavam-se antes ao redor das três horas da manhã; comiam, passeavam ao fresco até às 11 horas e voltavam a dormir até às quatro horas da tarde; levantavam-se para jantar e passavam a noite a correr daqui para ali, até à meia-noite, suposto que a claridade da lua sucedia imediatamente ao dia. Se isso não tinha lugar, dormiam de novo, após terem jantado, até a lua surgir.

Era uma via puramente animal. Hoje, levantam-se no raior do dia, recitam as suas orações, tomam o seu popoi, assistem à missa e à instrução, e se põem a trabalhar. A mulher, auxiliada por suas crianças, fazem o tecido para as suas vestes; o marido faz as plantações, prepara o tioho, vai à pesca, ou ainda toda a família se reune para tirar a erva que cresce aos pés das árvores-pão.

Não se vê mais nudeza entre êles: todo mundo se cobre com cuidado. Se alguns ainda se esquecem é que o hábito se transformou numa segunda natureza; assim que nos o vemos, correm a suas vestimentas, como o soldado corre às suas armas à vista de um oficial. Nossos exemplos e nossos conselhos os levaram bem docemente ao amor da agricultura... Num canto vizinho de nossa casa, tentamos aclimatizar as plantas mais úteis dos nossos países da Europa: a batata, as couves, as vagens, as ervilhas, as cebolas, os rabanetes, os nabos, etc...

Gostaria que todos aqueles que acusam a religião de ser tirana fossem testemunhos do que aqui se passa. Eles compreenderam talvez que o cristianismo não faz escravos e que essa deferência de nossos neófitos é o efeito natural do amor filial, pelo qual respondem ao amor verdadeiramente paternal que por êles sentimos".

(...)


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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (Ed.). "Taiti e Brasil na história das concepções antropológicas: a questão do 'Noble sauvage' e suas expressões atuais na representação cultural". Revista Brasil-Europa 125/2 (2010:3). www.revista.brasil-europa.eu/125/Noble_sauvage.html



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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 125/2 (2010:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
órgão da
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- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

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Doc. N° 2589


©


Taiti e Brasil na história das concepções antropológicas: a questão do "Noble sauvage"

e suas expressões atuais na representação cultural




No âmbito do programa Atlântico/Pacífico de renovação dos estudos atlânticos e interamericanos da A.B.E. 
sob a direção de A.A.Bispo

 




  


  


  


  


  


  



  1. Fotos H. Hülskath©
    Centro Cultural da Polinésia, Hawai.

 

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