TAITI: Miúsica.Revista BRASIL-EUROPA 125. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

O estudo da cultura musical do Pacífico, aqui em particular da Polinésia francesa, apresenta sob diversos aspectos relevância para o Brasil. Para além do interesse genérico sob o aspecto musicológico e de conhecimento de outros povos e culturas, essa região do mundo oferece possibilidades privilegiadas para estudos de processos de transformação cultural desencadeados pela ação européia e norte-americana, em particular daquela de missionários de diferentes confissões.

Mais do que o estudo de instrumentos originais, de expressões que possivelmente remontem a situações anteriores ao contato com os europeus, a atenção se dirige sobretudo à dinâmica das transformações, à detectação de seus mecanismos e às suas relações com outros contextos culturais. Ao contrário do que poderia parecer à primeira vista, não se trata aqui de um universo sonoro totalmente distante daqueles do Brasil, sendo os elos comuns sobretudo derivados da ação colonial e missionária.

Estudo da música do Taiti sob a perspectiva brasileira

A consideração de questões da cultura musical polinésia nesse sentido deu-se primeiramente na unidade correspondente à Oceânia do curso de Etnomusicologia da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo, no início da década de 70, quando se instituiu, de forma pioneira, os estudos musicais transculturais sob a iniciativa do editor desta revista. Esse enfoque foi determinado, na época, pela necessidade de renovação teórica dos trabalhos então desenvolvidos sob o conceito de "aculturação". Foi prosseguida, em cooperação com pesquisadores do Pacífico, no âmbito do Departamento de Etnomusicologia do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos (Alemanha e Roma) também dirigido por A.A.Bispo, a partir de 1977.

Dos trabalhos mais recentes, salientam-se aqueles desenvolvidos no contexto de seminários dedicados à questões de migração, colonialismo e World Music, em universidades européias, e realizados em cooperações com a Academia Brasil-Europa. Os resultados foram apresentados de forma sistematizada e discutidos em curso dedicado à cultura musical da Austrália e Oceânia em contextos globais na Universidade de Colonia, em 2009, também sob a direção do editor desta revista.

Os trabalhos dedicados à Oceânia nas suas relações com o Brasil foram conduzidos nos últimos anos sobretudo sob a perspectiva da renovação dos estudos transatlânticos e interamericanos a partir da consideração de processos transpacíficos. Em 2009, como relatado em número anterior desta revista, realizaram-se estudos in loco em instituições e museus da Austrália e Nova Zelândia.

Dando continuidade a esses trabalhos, a A.B.E. desenvolveu, em 2010, observações em ilhas do arquipélago da Sociedade, em particular no Taiti. Esses trabalhos foram realizados em prosseguimento ao ano "França-Brasil" da A.B.E., de 2009, estendidos agora à Polinésia Francesa, e que abrange não apenas as ilhas Sociedade (e.o. Marquesas, Tuamotus, Austrais, Mangareva).

A atenção foi aqui dirigida sobretudo a desenvolvimentos atuais, considerando-se em particular tentativas de utilização da música e da dança para fins de representação de uma identidade taitiana. Procurou-se comparar tais expressões com aquelas de outras regiões do globo, entre elas de Maurício e do Caribe (Veja textos a respeito em números anteriores desta revista).

Diferenças de situações relativamente ao Brasil

Para o pesquisador brasileiro, uma primeira constatação deve ser feita relativamente à diferença com relação ao patrimônio cultural latinoamericano, primordialmente resultante de uma formação colonial ibérica ainda marcada por um repertório de expressões lúdicas medievais. Não se encontra, nessa região cristianizada por protestantes e em período posterior da história, os folguedos, danças dramáticas e cortejos de cunho imagológico de fundamentação cristã conhecidos de muitos paises latinoamericanos.

Os mecanismos de transformação de identidade diferenciam-se daqueles da esfera católica e neles as expressões simbólicas da lúdica medieval não desempenharam papel relevante no processo performativo. Isso não significa que os nativos não tiveram contato com expressões de dança e representações lúdicas de lutas de remota origem simbóilica através dos marinheiros. Sabe-se que os navegadores inglêses de meados do século XVIII que atingiram o Sul do Pacífico possibilitaram e fomentaram a prática da dança e de folguedos atléticos nos navios com finalidades de recreação, a serviço do exercício físico e como válvula para tensões na tripulação. Ainda que essas expressões tradicionais dos inglêses possuiam remotas conotações simbólicas, não podem ser comparadas na intensidade de sua ação performativa com aquelas dos católicos de três séculos atrás, quando foram praticadas em datas festivas do calendário religioso, nelas integrando os nativos. Exceção são aquelas expressões de ilhas influenciadas pela ação espanhola e pela missão católica, em particular jesuítica. Exemplo é a Danza do Palo Vestido e Desnudo, das Marianas, correspondente a tradições européias das danças ao redor do mastro ou de maio, por exemplo ao dei cordelos da Provença e ao "pau de fita" do Brasil.

Música européia no Pacífico

Sabe-se que mesmo o comandante do Bounty (Veja artigo a respeito) financiou êle próprio um "fiedler" para a diversão de sua jovem tripulação. Os polinésios tomaram assim contato com instrumentos ocidentais antes da ação missionária, em particular com aqueles mais utilizados nas naves, ou seja, instrumentos de arco e corda dedilhada, pífaro e tambor.

Uma particular referência deve ser feita à guitarra e instrumentos afins, e que mais possibilitam aproximações com o universo músico-cultural latino-americano. Seria, porém, pouco fundamentado supor que a difusão desses instrumentos fosse sobretudo produto de contribuições ibéricas, por exemplo através da presença espanhola nas Marianas e outras ilhas, ou posterior imigração portuguêsa para o Hawai. Tudo indica ter sido a guitarra introduzida por via britânica. Assim, sabe-se que Joseph Banks (1743-1820), o naturalista e mecenas que possibilitou a ida de cientistas no empreendimento de James Cook (1728-1779), era guitarrista e até mesmo planejou possibilitar a ida de um conjunto musical na segunda viagem de Cook ao Taiti.

Este capitão, êle próprio sem formação musical, ainda não vendo com bons olhos exagêros da prática musical nas naves, tolerava a sua prática para fins recreacionais, com gaitas de foles, rabeca, pífaro e tambor, necessários para o acompanhamento de country-dances. Conhecem-se alguns nomes de músicos, entre êles o de Philipp Brotherson, violinista, e os gaiteiros Archibald McVicar e Thomas McDonald. Se as expressões de dança de conotação simbólica dos folguedos da cultura católica medieval não podem ser constatados de forma significativa na região, seria necessário pesquisar mais pormenorizadamente uma possível influência do repertório das danças campestres inglêsas na configuração músico-cultural da Polinésia no período posterior ao contato.

A pesquisa mais recente tem salientado que o uso da música no contato com os nativos fêz parte de uma estrategia de ação da própria Royal Society. Assim, Cook recebeu instruções para utilizar a música no contato com os nativos, entretendo-os com "melodias doces":

"This suggests that music was part of the official conception of the Cook voyages and that music, like gift-exchange and trade, was seen as a means of facilitating cross-cultural contact" (Vanessa Agner, "Music, Cook and", John Robson (Ed.), The Captain Cook Encyclopaedia, Auckland 2004, 153-154)

Georg Forster (1754-1794) registrou a impressão dos taitianos perante uma gaita de foles dos escocêses:

"Para o entretenimento de Sua Majestade mandamos que um de nossos soldados do mar, um escocês das montanhas, tocasse gaita de foles; embora a sua música estridente soasse quase que insuportável aos nossos ouvidos, o rei e toda a assembléia indígena tiveram tanto prazer em ouví-la que é difícil de imaginar. A desconfiança que reinara na nossa primeira conversação, desapareceu". (Georg Forster, "Das Idyll von Tahiti", in Wilhelm Bölsche, ed., Neue Welten, Berlim 1917, 57)

Contato com a música da Polinésia na Europa

O contato com o mundo polinésio através das viagens de Cook possibilitaram referências à música do Pacífico na Europa. Artistas que tomaram parte nas viagens, em particular John Webber (1751-1793), deixaram representações de instrumentos musicais. Este pintor inglês de origem suiça, de sólida formação artística, registrou o toque de tambores na histórica cerimônia presenciada pelo Capitão Cook em Otaheito, Taiti, onde ocorreu um sacrifício humano (1777), assim como uma heive, no mesmo local, com a dança de duas mulheres e dois homens, vendo-se ao fundo também tocadores de tambor. Além do capitão Cook, também Anders Sparrman (1748-1820) e Georg Forster, ao lado do astrônomo William Wales (1734?-1798) e tenente James Burney (1734?-1798) deixaram observações sobre a música polinésia. Os europeus ficaram impressionados em encontrar nas culturas da região, práticas harmônicas conhecidas da própria cultura: "These reports were particularly significant because they demonstrated that harmony was not an exclusively European invention, as was believed at the time". (V. Agner, op.cit.)

Entretanto, não se pode esquecer que Forster deixou registrada uma impressão contrária:

"Também aqui não faltou hospitalidade, que encontramos em cada cabana. Ofereceram-nos coco e E-vihs, para matar a sêde, e o velho deu-nos, além do mais, uma prova do talento musical de sua família. Um dos jovens tocou com o nariz uma flauta de bambú, que tinha três orifícios, e o outro cantou. A música era no seu todo, tanto da parte do flautista, quanto do cantor, nada mais do que uma alternância monótona de três ou quatro tons diferentes, que não soavam semelhantes nem aos nossos tons inteiros nem aos semitons e o valor das notas podia ser um meio-termo entre a nossa mínima e a semínima. De resto, não se percebia nem um vestígio de melodia; tão pouco podia-se constatar qualquer tipo de compasso, e por conseguinte ouviu-se apenas um murmúrio sonolento. Nesse modo, a música não podia, de fato, ferir os ouvidos com tons falsos, mas isso era o melhor no todo, pois agradável não era. É estranho que, embora sendo gosto pela música difundido em todos os povos em geral, as noções de harmonia e consonância das diferentes nações defiram tanto. Vimos nessa cabana um quadro de perfeita felicidade do povo." (Georg Forster, "Das Idyll von Tahiti", op.cit. 42)

Lord John Montagu, 4th Earl of Sandwich (1718-1792), influente personalidade na marinha e na política inglêsa, conhecido pelo hedonismo de seu estilo de vida e suas concepções, interessou-se em particular pela música do Pacífico.

A popularidade do Tahiti e da imagem que se tinha de sua cultura musical em fins do seculo XVIII pode ser avaliada pelo fato de William Shield ( ter posto em música, em 1785, texto de J. O'Keele da pantomima Omai, or, a trip around the world, baseando-se nas viagens de Cook e na estadia do polinésio na Inglaterra. Omai tinha vindo em 1774 na nave Adventure por ocasião da segunda viagem de Cook, sendo recebido em audiência pelo rei, acompanhado pelos já mencionados Joseph Banks e pelo Lord John Montagu, retornando em 1776. A peça com o seu nome foi levada no Royal Theatre em 1785. 

Fonte pouco considerada para o estudo da difusão de conhecimentos musicais relativos à Polinésia na Europa do século XIX é a de G. L. D. de Rienzi (Oceanie ou cinquième partie du monde: revue geographique et ethnographique de la Malaisie, de la Micronesie, de la Polynesie, et de la Melanesie, Paris: Firmin Didot Frères,1836-38); Oceanien oder Der Fünfte Welttheil. Welt-Gemälde-Gallerie oder Geschichte und Beschreibung aller Länder und Völker, ihrer Gebräuche, Religionen, Sitten u.s.w. (...) Aus dem Französischen. Oceanien 2. Band. Polynesien, Stuttgart : E. Schweitzerbart's Verlagshandlung, 1837-1839, págs. 22, 80, 270, 302, 356).

Registrando dados de viajantes, Rienzi indica que a música serviu tanto para caracterizar imagens dos polinésios junto aos europeus e, reciprocamente, dos europeus junto aos polinésios. Assim, lembra que Adam Johann von Krusenstern (1770-1846), comandante da expedição russa de circumnavegação do globo, que tinha uma opinião desfavorável dos Nukahivios, procurou traçar uma analogia entre a sua música e o seu caráter. Desses dados Rienzi conclui indica que a música desse povo não deveria ser muito diferente da de outros polinésios: grandes tambores, de grande volume e sonoridade surda; ao percutirem, apoiavam o braço esquerdo no corpo e batiam com a mão direita na esquerda. (op.cit. 356)

Por outro lado, os habitantes das ilhas Natal registraram de tal forma a estadia dos russos que, quando esses voltaram a ali passar, na viagem de retorno, entoaram cantos onde relatavam a primeira visita, referindo-se ao tamanho do navio, a seu conteúdo, às roupas, a nomes e mesmo introduzindo palavras russas. Entoaram segundo uma melodia que soou aos ouvidos dos estrangeiros alegre, mais ou menos respeitosa, acompanhando-se com movimentos dos braços e mãos, os mais rápidos com palmas. Quando cantavam cantos guerreiros, tomavam lanças, movimentando-as, lançando chispas com os olhos, as mulheres juntavam-se aos gritos dos homens, procurando inspirar temor aos outros. (op.cit. 302)

Dos instrumentos descritos pelos viajantes, Rienzi menciona o uso de uma cabaça que lembra ao pesquisador brasileiro a maraca, de tanta relevância para as culturas indígenas, ainda que no caso, percutida. Assim, remonta ao próprio Cook a referência a um dançarino que, ornamentado com um colar de vegetais marinhos e com pulseiras de dentes de cão, trazia na mão direita uma cabaça cheia de pedrinhas, na qual percutia com um cabo seguro na mão esquerda. Comparou-o com as danças grotescas de bobos ou palhaços italianos, ou seja, interpretou o que vivenciou segundo os seus próprios referenciais.

O missionário e pesquisador William Ellis (1794-1872) também registrou o instrumento, aqui sem ser percutido, dizendo que observara um jovem que dansava acompanhado pelo rítmo de uma cabaça e pelos gritos dos espectadores, que entoavam cantos locais. De outros registros, cumpre mencionar aquele relativo a uma dança na qual tomaram parte duas crianças, um menino e uma menina, acompanhada por cinco músicos que tocavam tambores e entoavam louvores aos guerreiros.

A recepção da música européia por parte dos polinésios, segundo os registros coletados por Rienzi, teria sido positiva com relação a instrumentos isolados, de menor volume, melódicos, e a peças musicais menos elaboradas, melodiosas ou cantos populares. Ao contrário, teriam mostrado aversão à música erudita, e sobretudo àquela de conjuntos orquestrais de maior sonoridade.

"Quando essa gente simples ouve a música dos europeus, mostram uma espécie de desagrado para com composções eruditas, ao contrário, gostam da melodia de alguns dos nossos instrumentos, quando tinham ocasião de ouví-los sem todo o barulho de uma orquestra trovejante". (op.cit. 503-504)

Quanto aos europeus, esses se surpreenderam por uma simplicidade da música e dos instrumentos polinésios, pelo cunho suave e melodias quase que murmurantes, sem grande diversidade intervalar, interpretando porém essas características negativamente como sinais de um baixo grau de desenvolvimento cultural.

"Os insulanos não levaram a arte musical a tão alto grau de perfeição como outros conhecimentos. Tocam uma flauta de bambú com três orifícios, que assopram pelo nariz, enquanto outros cantam. A sua música vocal e instrumental consiste em quatro notas, nem tons, nem semitons. Essas notas, sem diversidade e ordem, criam apenas um murmurar monótono, que não ofende os ouvidos com dissonâncias, mas não desperta impressão agradável. É surpreendente que o gosto pela música seja tão generalizado no mundo, enquanto que as idéias de harmonia sejam tão diferentes nos diversos povos. Os taitianos teem também um tipo de tambores que tocam com as mãos e os dedos, em lugar de baterem. Notável é que os insulanos nas suas danças mantém o compasso exatamente como os nossos dansarinos nos teatros europeus." (op.cit. pág. 504-505)

"Lütke não encontrou nenhum instrumento entre êles, nem mesmo um simples tambor. Parece que não possuem muita tendência musical; ouviram com atenção o piano e a flauta dos oficiais, mas nenhum dos dois causou-lhes muita impressão." (op.cit. 270)

Essa simplicidade, essa tendência para o pouco volumoso, o suave, o terno, o melodioso aqui criticado como sinal de pouco desenvolvimento, surge em relatos referentes a contextos mais favoráveis, como fundamento de uma arte altamente refinada, que surpreendeu os visitantes, como nas Ilhas Marianas:

"(...) de pé, sem se movimentarem, entoaram os cantos e contos de seus poetas de modo tão gracioso e correto que seriam apreciados na Europa. A concordância das suas vozes é admirável e não fica atrás de uma música bem exercidade. Nas mãos levam pequenas conchas, que tocam como castanholas, com muito geito. Surpreendente é que apoiam as vozes e vivificam o canto com gestos expressivos e ação tão viva que todo o ouvinte se extasia." (op. cit. 82)

Positivamente foi registrado, por parte dos europeus, que na maior parte das ilhas, os seus habitantes recebiam os recém-chegados com cantos solenes, oferecendo-lhes um ramo como sinal de paz. (op.cit. pág. 22)

Transformação da cultura musical por ação de missionários

A ação transformadora desempenhada pelos missionários protestantes foi muito mais radical do que a dos católicos de séculos atrás no Brasil. Proibição de danças e atividades lúdico-esportivas dos nativos e o desmoronamento do edifício de concepções religiosas desencadeado pelo descrédito para com as divindades tradicionais e os preceitos (tabus) trouxeram perdas de significados de instrumentos e representações, sem que passassem por reinterpretações cristãs com base em sistema de imagens que permite analogias e substituições.

A influência musical por parte dos missionários protestantes foi, porém, determinante. Deu-se sobretudo sob o aspecto musical propriamente dito, com a difusão de hinos religiosos, cantos de assembléia que transmitiram não apenas novos conteúdos religiosos, mas sim também tipos de configuração melódica e formal.

Os missionários trouxeram consigo também práticas de execução de suas respectivas comunidades e regiões, muitas delas de remotas origens britânicas, também tradições de canto a várias vozes, em parte cultivadas espontaneamente. A assimilação de tipos melódicos, de configurações harmônicas e de formas marcou também o repertório de textos não explicitamente cristãos. Para o ensino e a prática do canto, os missionários utilizaram-se de instrumentos de corda dedilhadas do tipo da guitarra, o que também explica a popularidade desses instrumentos nas ilhas.

A influência missionária deu-se também e sobretudo na esfera expressiva. Extremamente rigoristas quanto à moral, os cristãos combateram danças (heiva) e todas as expressões que lhe pareceram indecentes, indecorosas e sensuais. Forçados a abandonar a prática da nudez, homens e mulheres passaram a usar trajes castos, roupas que, embora coloridas, cobrem os corpos até os pés, baseadas em costumes populares anglo-americanos de classes sociais menos privilegiadas dos séculos XVIII e XIX.

Conjuntos de música tradicional no Taiti


Música vocal de pequenos conjuntos de cantores, que se acompanham com instrumentos dedilhados de diferentes tipos passou a determinar em grande parte o "folclore" regional. Torna-se difícil, hoje, - e representa uma relevante tarefa para a pesquisa - saber se a cultura musical anterior à influência cristã apresentava condições particularmente favoráveis para a adoção de uma linguagem tonal e de práticas da harmonia ocidental. As referências mencionadas quanto à predileção dos polinésios pelo elemento melódico e por instrumentos melódicos parece ter favorecido a assimilação de cantos comunitários.

A doçura de muitos dos cantos parece testemunhar a substituição da antiga sensualidade criticada pelos missionários pela sentimentalidade de hinos evangélicos de fins do século XVIII e início do XIX. Esses grupos de cantores instrumentistas, que surgem aos olhos do observador atual como de relativo pouco interesse ou pouco representativos uma cultura polinésia, são, não realidade, testemunhos de uma tradição criada pela profunda transformação cultural por que passou a região no passado. Essa tradição não impede mudanças, sobretudo aquelas causadas por adaptações circunstanciais, como é o caso de instrumentos de fabricação artesanal, entre outros de contrabaixos feitos com materiais improvisados, tendo um receptáculo industrializado como caixa de ressonância.

Expressões atuais com referências à época anterior ao contato

Ao lado desses conjuntos folclórico-tradicionais, o observador constata a existência contrastante de grupos que cultivam a aparência de exotismo, que se utilizam sobretudo de instrumentos de percussão - tambores de diferentes tipos ornamentados com motivos inspirados na tradição polinésia. Que aqui se trata de esforços de reconstruções de um passado já remoto, isso o demonstra a artificialidade dos costumes.

Os componentes desses grupos pertencem em geral a camada social mais privilegiada do que aquela dos músicos dos ensembles tradicionais, são estudantes ou jovens de ambos os sexos receptivos às tendências da moda internacional.
Significativamente, abrem as execuções com o soar da concha (pu), instrumento que no passado era usado em diferentes ocasiões cerimoniais, e em viagens de canoas, e que hoje surge como sinal de uma apresentação "típica". Os seus componentes atuam também como dançarinos, apresentando sobretudo danças que exigem destreza física, entre elas aquela do 'ote'a, com enérgica movimentação de joelhos dos homens.

Os tambores, aqui utilizados, perderam já há muito o significado religioso que possuiram no passado, em particular o pahu, um tambor cilíndrico, tocado verticalmente. Representações dos primeiros europeus que visitaram as ilhas - no relato do Capitão Cook, de 1784 -  mostram que foram utilizados nas áreas sagradas das marae, ou seja, que tinham função de culto ou de simbolismo músico-antropológico, por exemplo no relativo à noção de "comida" espiritual. (Veja imagem no texto, acima) Como no passado, os tambores são percutidos ou com as mãos, ou com baquetas. assim como por tambores, entre êles sobretudo aqueles com couro de ambos os lados (tariparau)

O mesmo processo de "secularização" parece ter passado com o assim-chamado tambor de fenda, de madeira (To'ere). O seu nome corresponde àquele de um tambor de menor diâmetro do que o do pahu e que no passado surgia no contexto de sacrifícios. Atualmente é utilizado para o tambor de fenda, de madeira, que parece ter sido introduzido no Taiti a partir de Rarotonga nos primórdios do século XIX e que hoje é frequentemente utilizado em grupos de dança, mesmo naqueles de maior influência da música popular internacional. Que se procura recuperar instrumentos já esquecidos isso o demonstra o uso de outros idiofones ('ihara).

Também as flautas nasais (vivo) perderam o seu antigo significado religioso, relacionado pelo que tudo indica com a força vital, com o odem, com o maná. É executada às vezes em pares.



Recepção da música popular internacional

Também no Taiti, assim como na Polinésia em geral, a pesquisa musicológica sente-se confrontada com uma extraordinária tendência à recepção da música popular internacional, em particular norteamericana. Observadores presos ainda a concepções convencionais da etnomusicologia e que procuram sobretudo expressões musicais "autênticas" ou com elementos caracterizadores de identidade nacional, regional, étnica ou de grupo na própria linguagem musical na sua realidade sonora, podem ficar decepcionados. Essa situação pode ser vista como um empecilho para os estudos da cultura musical da região, dificultando que pesquisadores se interessem especialmente por essa região. Se a perspectiva for, porém, orientada segundo concepções de uma musicologia antropológica e de uma história da música em contextos globais, como vem sendo defendida desde o início da década de 70 de forma pioneira no âmbito da tradição a que se prende a A.B.E., abrem-se novas perspectivas para as pesquisas. A visão é dirigida aqui muito mais a processos de transformação cultural, ou seja, a estudos inter- e transculturais, como salientado em outros artigos deste órgão com relação a diferentes contextos. Pode-se estudar os pressupostos do processo receptivo, alguns dos quais já foram mencionados acima, seja na própria cultura anterior ao contato, seja através da missão.

A constatação do entusiasmo dos taitianos pela música popular internacional, sobretudo após as facilidades oferecidas pelo disco e pelo filme desde o início do século XX não é recente. Já em 1933, a revista alemã Atlantis publicava um artigo de Walther Neubach, com fotos de Walther Rothe, onde,apresentava-se uma taitiana de nome Tautira, com violão, salientando que ela e suas companheiras quase sempre possuiam um desses instrumentos, com as quais se acompanhavam, conhecendo os mais atuais sucessos de determinados tipos da música popular ("Schlagermusik") da América, do Hawai e mesmo da Europa. (Walter Neubach e Walther Rothe, "Polynesier und Melanesier", Atlantis 1, janeiro de 1933, 14-21)


(terá continuidade)






Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (Ed.). "Música no processo de transformação cultural da Polinésia Francesa em enfoques brasileiros". Revista Brasil-Europa 125/5 (2010:3). www.revista.brasil-europa.eu/125/Musica_do_Taiti.html


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa:
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  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.




 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 125/5 (2010:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
órgão da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2592


©


Música no processo de transformação cultural da Polinésia Francesa
em enfoques brasileiros




De observações na Polinésia Francesa, 2010, em sequência ao curso de Música da Austrália e da Oceânia realizado na Universidade de Colonia, 2009
no âmbito do programa da Academia Brasil-Europa
Atlântico-Pacífico de atualização dos estudos culturais transatlânticos e interamericanos
sob a direção de A.A.Bispo


 






















  1. Fotos A.A.Bispo© . Arquivo da A.B.E.
    No texto: fragmento de reprodução do livro citado de Rienzi.


 

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