Paul Gauguin. Revista BRASIL-EUROPA 125. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

O Taiti encontra-se presente na História da Arte sobretudo através da obra e da personalidade de Paul Gauguin (Paris 1848 - Fatu-Iwwa 1903). Devido à sua obra e à influência que exerceu em outros artistas, o Taiti passou a ser considerado na literatura especializada, desempenhando um papel relevante nas interpretações estéticas. Numa perspectiva que acentue a necessidade de uma condução da História da Arte em contextos globais, superando reduções à área geográfica da Europa, Gauguin adquire necessariamente uma posição  de especial relevância.

No Brasil, o mérito de ter chamado a atenção ao significado de Gauguin para estudos que relacionam a História da Arte aos estudos culturais cabe a Marco Antonio Guerra, que em 1978 a êle dedicou o seu trabalho de mestrado (O universo tahitiano na obra de Paul Gauguin, São Paulo: Escola de Comunicações e Artes da USP, 1978).

No Taiti é constantemente lembrado, surgindo como um de seus grandes vultos, ao qual é dedicado o museu que traz o seu nome. Também é lembrado nas Marquesas, em Hiva-Oa, na localidade de Atuona, onde se encontra um museu com cópias de suas obras. Uma reconstrução de sua casa e o local onde jaz pode ser visitado. Esse espaço memorial foi inaugurado por ocasião do centenário da morte do artista, em 2003, data marcada por eventos diversos, exposições e publicações, na Polinésia e na França, e que salientaram os múltiplos aspectos que tornam a sua obra particularmente relevante.

Uma das possibilidades promissoras para os estudos atuais se refere à análise de sua personalidade, de sua obra e de suas concepções sob o ponto de vista mais especificamente teórico-cultural, para além das considerações histórico-culturais e etnográficas já levadas em conta na literatura da História da Arte. Apesar de todos os pontos em comuns, esse deslocamento da atenção permite abrir novos caminhos para a análise diferenciada de processos culturais vigentes na sua época e do papel que neles desempenhou. Essa perspectiva teórico-cultural permite que se reconheça e se valorize as relações entre a América Latina, a Europa e o Pacífico na vida e na obra de Gauguin.

Inserção de Gauguin em contextos euro-latino-americanos

Os elos de Paul Gauguin com a América Latina não são apenas decorrentes da recepção posterior de sua obra nos países do continente, mas sim fundamentados na sua própria ascendência familiar e na sua infância. A atenção deve ser dirigida aqui á sua avó materna, a escritora Flora Tristan Moscoso, casada com o litógrafo e pintor André Chazal. Através dela, cuja família desempenhara um papel na história colonial do Peru, os pais de Gauguin - o jornalista Clovis Gauguin e sua esposa, Aline Chazal - possuíam familiares naquele país andino.

Com a tomada de poder de Louis Napoleón, em 1851, inaugurando o período do novo Império bonapartista, o seu pai decidiu emigrar para o Peru. Falecendo durante a viagem, a família foi abrigada junto a um parente da família, em Lima. Paul Gauguin passou, assim, os seus primeiros anos de infância no Peru, retornando a Paris já com sete anos de idade. Insere-se no rol dos artistas e intelectuais franceses que tiveram a sua formação marcada por mudanças de continentes e de culturas. A França da segunda metade do século XIX contou com várias personalidades advindas de outras regiões do globo, de colonias ou não, trazendo consigo experiências de outras culturas. Migrantes ou retornados, foram marcados por problemas de identidade, de integração e reintegração, com fases de distanciamento e aproximação cultural de ambos os lados, de labilidade e de anelo de reconhecimento, com consequências sobretudo na esfera das expressões artísticas . Em números anteriores desta revista foram consideradas algumas dessas personalidades situadas entre mundos e que tiveram a vida marcada por complexos performativos determinados por migrações e reimigrações.

Paul Gauguin teve novo contato com a América do Sul na  juventude. Após obter formação escolar em escola religiosa de Orleáns, - uma formação espiritual que exerceria um papel significativo na sua personalidade - Paul Gauguin entrou na Marinha. Como marinheiro, visitou o Rio de Janeiro e Salvador.

Da ascensão material ao anelo artístico

Abandonando a carreira da Marinha em 1871, após a morte de sua mãe, a vida do jovem Paul Gauguin foi marcada inicialmente por uma fase em que procurou e alcançou sucesso material e social. Poder-se-ia interpretar esse período de sua vida sob o pano de fundo do observado na vida de muitos retornados, que procuram testemunhar a sua diligência, capacidade de trabalho, de inteligência e de integração social, demonstrando e gastando a acumulada fortuna de forma a chamar a atenção. Trabalhando junto a um capitalista em Paris, que tirava os seus lucros de negócios baseados em empréstimos, Paul Gauguin viveu anos sem preocupações financeiras, em estreito contato com uma sociedade guiada por interesses econômicos e marcada pela ação de banqueiros e agiotas. Expressão dessa fase de sua vida, na qual comprovava a sua capacidade de ascensão e integração na sociedade burguesa foi o casamento com Mette Sophie Gad, dinamarquesa, da qual teve vários filhos.

A transformação que ocorreu na vida de Gauguin, e que representou uma tragédia existencial para a sua mulher, que julgara poder conduzir a sua vida em situação de solidez e progresso material, poderia ser interpretada sob a perspectiva da instabilidade comum a situações de mudança cultural e suas extravazões artísticas. Levado por um amigo, Emile Schuffenecker, também bancário, que se dedicava à pintura nas suas horas livres, Paul Gauguin experimentou a transformação de vida causada pelo descobrimento da arte.

Abandonando de forma riscante a sua posição no mundo das finanças para dedicar-se totalmente à pintura, em 1883, passou a ter uma vida marcada pela insegurança e necessidade material. Após a tentativa de viver junto à família de sua espôsa, em Kopenhagen, onde não se adaptou, retornou a Paris com o seu filho predileto, passando por agruras materiais.

O caminho da arqueocultura: Bretanha

Em 1886, Paul Gauguin transferiu-se para uma aldeia da Bretanha, Pont-Aven. Essa mudança representou um passo importante na sua procura de libertação do mundo marcado pelo capitalismo quase que sem contrôle que conhecera em Paris, pela desejo de enriquecimento material, avidez e ambição sem escrúpulos que levara à superficialidade da "civilização" que criticava. Assim como o seu pai abandonara a França no início do novo Império napoleônico, também êle retirava-se de uma sociedade que se orientava pelo poder econômico e que era marcada pela luta pelo enriquecimento, pela representação de poder material e pelos preceitos da sociedade burguesa.

A Bretanha significava, na França da segunda metade do século XIX, a região por excelência da permanência de monumentos arqueológicos, de antigos costumes, de cultivo de tradições, de vigência de substratos culturais e espirituais remotos, uma região que despertava a atenção de estudiosos que se preocupavam com origens e com a sobrevivência de concepções e práticas arcaicas nas tradições dos povos, da própria França e de regiões extra-européias, em particular do Oriente.

Gauguin inseriu-se aqui em contexto histórico-cultural francês de extraordinário significado para a história das idéias e das disciplinas culturais: com a Bretanha vinculam-se vultos exponentes da etnografia e do folclore, como Paul Sébillot, da história da religião pelo despertar da consciência para os valores espirituais na cultura e pela ciência comparativa das religiões, como Renan. (veja artigos em números anteriores desta revista)

A Bretanha, no isolamento de suas aldeias, possibilitava a introspecção daqueles que procuravam o original e o verdadeiro fora do mundo sentido como superficial e exteriorizado de Paris, compreendendo-se assim que ali ocorreram casos de conversão pessoal e de missionários que abandonaram a Europa para regiões longínquas, como Laval. (veja número anterior desta revista)

Também Paul Gauguin experimentou na Bretanha um aprofundamento da procura que encetara ao abandonar a sua vida do mundo dos negócios e da sociedade estabelecida. A Bretanha passaria a exercer um papel relevante nas suas concepções e mesmo na temática de sua obra, até o fim de sua vida (a sua última obra, criada no Taiti, seria uma paisagem bretã sob a neve).

A influência mais profunda da Bretanha, porém, foi a de fomentar a pesquisa interior, a de aguçar a sensibilidade para imagens remotas vigentes em si próprio. Essa atenção às origens no próprio interior teria levado que nele se levantassem imagens da infância passada no Peru e das impressões ganhas no Brasil. O papel desempenhado pela América Latina no desenvolvimento de Gauguin deve ser procurado, assim, não tanto em aspectos exteriores de sua obra, mas sim no próprio processo cognitivo que fundamentaria a sua ação criadora e as suas concepções. O hierático de suas figuras poderia sugerir por último elos vagos com a arte indígena andina, o seu fascínio pelos trópicos vestígios de impressões brasileiras.

À procura da origens das imagens

A viagem de procura das origens das imagens de origem, iniciada e determinada introspectivamente, manifestou-se externamente com a sua decisão de retornar ao continente americano, onde passara os seus primeiros anos. Também aqui, o rumo tomado por Paul Gauguin inseriu-se no contexto histórico de sua época. O interesse pela política Exterior na França - e sobretudo os meios bancários e políticos - era então marcado sobretudo pelo empreendimento do Canal do Panamá (veja número anterior desta revista). Esse projeto, prejudicado por dificuldades humanas, econômicas e políticas, possuia diversificadas conotações, e a dominância do interesse econômico e de poder político deixava-se entrever por detrás de justificativas idealistas, de ligação do Pacífico ao Atlântico, de aproximação de culturas do Oriente e do Ocidente. Essa atualidade do Panamá no debate francês da época deve ser levado em consideração quando se constata que foi para esse país que Paul Gauguin se dirigiu, em 1887, em companhia de seu amigo Charles Laval. Ali, porém, deparou-se com o maior problema que prejudicava a consecução do projeto, o sanitário, assim como com os problemas humanos e sociais do empreendimento.

Vendo-se obrigado a abandonar a zona do Panamá devido à eclosão de uma epidemia, transferiu-se à Martinique, uma mudança que seria de grande significado para o seu desenvolvimento. Ao contrário da situação no Canal, determinada pelos efeitos de uma civilização orientada segundo o poder material que procurava superar, Paul Gauguin encontrou na colonia francêsa uma paisagem paradisíaca e uma vida comunitária insular que surgia como que impregnada de simplicidade, paz e felicidade. Vivenciou ali uma nova experiência interior, desta vez marcada pela natureza e pelas condições de insularidade: a redescoberta do universo luxuriante da vegetação tropical. A procura de regiões distantes, Bretanha, Panamá, Martinique e posteriormente Taiti, por assim dizer a Martinique da Polinésia, correspondia à sua procura de países onde supunha existir a vigência de aura de um paraíso original,  onde pensava encontrar uma atmosfera e um meio de vida totalmente diferentes da civilização que conhecera e que abandonara.

Da vivência em Martinique à Bretanha

Por motivos econômicos obrigado a retornar à França, ali reencontrou o ambiente de animosidade e incompreensão que já o levara ao retiro da Bretanha. Alguns autores têm procurado salientar características problemáticas de seu caráter, manifestadas mais plenamente nesse período, e que seriam marcadas por uma forte auto-consciência, por vontade indomável, por impulsos dominadores apesar de toda a magnanimidade, causadores de dificuldades que se somavam àquelas derivadas de acusações e intrigas movidas pela sua mulher e que lhe atestavam egoísmo monstruoso e falta de responsabilidade paterna. Paul Gauguin mostrava-se excêntrico, assim como a sua avó havia sido conhecida pela sua excentricidade. Sentia-se objeto de perseguições, intrigas e conspirações. Tais constatações, porém, necessitariam ser reconsideradas sob o ponto de vista teórico-cultural, levando-se em conta o complexo processo identificatório em que se inseria.

Havia encontrado na Martinique uma paisagem que evocava condições paradisíacas e um universo visual marcado por cores fortes, contrastes, grandes massas e contornos. Esse (re-) descobrimento do mundo tropical é que o teria levado a definir mais precisamente a sua orientação estética, abandonando, em 1887, o Impressionismo, as cores e linhas esmaecidas, recusando o caminho de um Monet ou Pissarro. Passou a defender a "Síntese", uma orientação doutrinária que parece remontar a Emile Bernard. Os princípios teóricos que marcaram as suas idéias, amadurecidas novamente na Bretanha, foram sobretudo aqueles referentes às formas em massas e simplificadas, ao emprêgo de cores em planos e superfícies, a separação das formas através de contornos escuros (técnica de Cloisonnée), à abstração quanto a à percepção da natureza na sua aparência externa. Esses princípios foram ainda mais desenvolvidos com o contato com a arte japonesa em Arles, através de Van Gogh.

Na Bretanha, em 1889 e 1890, Gauguin criou importantes obras (Cristo Amarelo, A pastora de porcos, As jovens bretãs), dedicando-se também à cerâmica, à escultura e à pintura mural. Os pintores que a ele se associaram criaram o que se designou como "Escola de Pont-Aven", a êle se associando também os Nabis. O seu direcionamento estético foi reconhecido, em Paris, sobretudo por Stephane Mallarmée e Octave Mirbeau.

Da Bretanha ao Taiti, do Taiti à Bretanha

No início de 1891, com a quantia obtida através do leilão de suas obras, transferiu-se para o Taiti. As suas impressões de Papeete foram, porém, decepcionantes, uma vez que a localidade já apresentava, na época, profundos traços da influência européia. Papeete era marcado pela importância de seu porto, visitado pelos navios que se dirigiam da Austrália ao continente americano.

A situação modificou-se quando passou a residir em Mataiea, onde sentiu descobrir o mundo puro e original que procurava e que o permitia superar a influência negativa da civilização. Durante esse período, criou várias obras (Vahiné com a Gardenia; Otahi; Mulheres na praia; I raro te oviri; Quando vai-te casar?, Arearea).

Entretanto, Paul Gauguin experimentou, no seu refúgio, problemas similares àqueles vivenciados pelos muitos fugitivos da civilização que até hoje procuram um suposto paraíso no Mar do Sul. Passados os primeiros tempos, tais retirantes passam a se defrontar com problemas práticos, sobretudo materiais e de diferença de mentalidades. Esgotado e doente, Paul Gauguin retornou à França, onde, com uma pequena herança que recebeu, pôde gozar de tranquilidade algum tempo, com estadias nas aldeias bretãs. Manifestando mais uma vez a instabilidade e o desejo de representação explicáveis pelo processo identificatório em que se inseria, o seu atelier em Paris tornou-se centro de encontros festivos, de forte colorido exótico e tropical, com a participação da javenesa Anne, de um papagaio e de um macaco. Em 1893, apresentou as obras produzidas no Taiti, sem maior sucesso, exercendo, porém considerável influência em outros artistas, entre êles Bonnard, Vuillard e aos Nabis.

Retorno definitivo ao Mar do Sul

Retornando à Polinésia, chegou ao Taiti em julho de 1896. Em 1897, em difícil período existencial, criou obras significativas, tais como "De onde viemos, quem somos, para onde vamos?" e "Nunca mais". Na Europa, a Revue Blanche publicou o seu texto "Noa-Noa".

Esses anos foram marcados por uma tentativa de suicídio, procura de trabalho, problemas com órgãos burocráticos. Em 1901, transferiu-se para a ilha Fatu-Iwa, continuando a desenvolver diversificada atividade criadora e a escrever textos. As dificuldades que obscureceriam os últimos anos de sua vida parecem ter resultado sobretudo de suas tentativas de integração, de identificação cultural com os polinésios. Tomando partido dos nativos contra a exploração dos brancos, foi condenado a três meses de prisão e a pagamento de multa.

A obra "De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?"

A obra mestra de Gauguin nessa fase final de sua vida pode ser considerada sob a perspectiva do processo de sua integração cultural no universo Taitiano (D'où venons-nous? Que sommes-nous? Où allons-nous? Taiti 1897, 96x130cm, Boston, Museum of Fine Arts, Tompkins Collection). Essa obra tem sido vista muitas vezes de forma superficial, como se apenas refletisse o fato de Gauguin apenas procurar sentido para a sua vida através das cores, da criação de mundos virtuais que irradiassem felicidade e vitalidade.

Segundo tais interpretações, quando o artista se preocupava com questões existenciais, como aquelas relativas às origens, ao homem e seu destino, para não se entregar ao desespêro, tratava-as de modo a dar às suas obsessões uma expressão. Essa e outras obras desse período testemunhariam essa luta interna e o seu esforço de refletir o drama da alma humana, as suas dúvidas e impulsos para além do racional. Forneceriam imagens simbólicas que por vezes pareceriam citações literárias, por vezes levando a um excesso decorativo (Gauguin, Fabbri Meisterwerke 18, Hamburg 1990, pág. 32).

Uma perspectiva teórico-cultural, porém, que dirija a sua atenção a processos de formação e transformação de identidades, sugere outros caminhos de aproximação e leitura dessas obras. Procurando integrar-se no universo Taitiano, de ver a realidade a partir de sua perspectiva, o que demonstra o fato de passar para o lado nativo inclusive em situações de risco pessoal perante as autoridades coloniais francêsas, Gauguin parece ter tido contato íntimo com práticas culturais tradicionais, de cunho visionário, voltadas ao mundo ancestral e das origens, de natureza religiosa. Integrando-se na cultura espiritual dos portadores do edifício de concepções do mundo e do homem consuetudinárias, o seu ato criador tomou novos fundamentos, distintos daqueles da arte européia de sua época.

Que a sua criação não deveria ser considerada sob critérios europeus, isso o manifestou expressamente em carta de março de 1889, dirigida a André Fontainas. (Lettres de Paul Gauguin à André Fontainas, ed. André Fontainas, Paris: Librairie de Fance 1921; alemão in: Paul Gauguin, Briefe, Berlin: Rembrandt, 1960, 180-184; Kunsttheorie im 20. Jahrhundert I, ed. Ch. Harrison & P. Wood, Ostfildern-Ruit: Hatje Cantz 2003, 30-32) Nessa carta, Paul Gauguin responde à argumentação desse crítico, que, comentando a obra "De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?" afirmara que abstrações não podem ser representadas através de imagens concretas, a não ser que tenham sido anteriormente configuradas em alegoria no espírito do artista e que a elas conferem vida. No seu painel, porém, nada revelaria o sentido das alegorias.

Na sua réplica, Paul Gauguin salienta que essa sua obra seria resultado de um ato criador totalmente diverso daquele do pensamento que cria abstrações e as expressa em forma de alegorias. A leitura dessa obra a partir do conceito de alegoria seria assim totalmente inadequada, e a sua denominação - as três questões colocadas - não representaria um título, mas antes uma meditação a posteriori de uma experiência vivida, uma espécie de assinatura. O observador não deveria, contemplando a obra, tentar nela ver representações alegóricas das questões colocadas. Deveria vê-la como visões interiores, como um sonho.

Sonho e visões no processo criador

A elucidação que Gauguin oferece a respeito do seu processo criador desperta a atenção de todo o pesquisador familiarizado com estudos antropológico-culturais, em particular com culturas indígenas onde se conhece a obtenção de conhecimentos e inspirações em sonhos, e com movimentos de cunho sincrético baseados em visões.

Gauguin descreve como, na sua cabana taitiana, envolto por profundo silêncio, perceberia harmonias selvagens nos perfumes embriagadores absorvidos da vegetação. Caindo em estado inebriado, era tomado por uma noção do Tremendo, de uma Sacralidade perante a qual o homem desaparece e que, provinda das mais esquecidas e remotas eras, preenchia a sua alma de encantamento. 

Essa experiência de Gauguin, assim descrita, sugere uma vivência mística, de cunho sinestésico, uma exaltação baseada em imagens de origens em estado criado pela absorção de fluxos advindos da vegetação. Saindo desse estado, voltaria a respirar "o perfume da alegria" no presente. Cairia, assim, num estado eufórico, de prazer feliz, passando a ver imagens: figuras atraentes, que falavam aos sentidos, porém esculturais, imóveis como estátuas. No rítmo de seus gestos, mesmo na sua imobilidade, manifestavam algo remotíssimo e elevado. Gauguin designa expressamente o manifestado como Religião.

Nesta sua descrição chama a atenção a referência a aromas e ao respirar. O artista absorvia, respirava por assim dizer o odem sagrado que perpassa a vida, no caso a vegetal. As suas palavras sugerem concepções que talvez tenha assimilado na sua formação em escola religiosa referente ao Espírito vivificante e vivificador, sobretudo quando salienta o entusismo de que era tomado após o primeiro estado de inebriação. A sua menção explícita de que aqui se trataria de Deus, oferece uma chave para a interpretação da imobilidade de suas figuras, sobretudo daquela central do seu painel "De onde viemos...". Trata-se de uma visão fugidia do Imóvel que tudo move, do Deus infinito e imutável, ainda que manifestado em formas que subiam aos olhos visionários do artista. As figuras por assim dizer estáticas da obra de Gauguin - e sobretudo a central, tal qual eixo - devem ser assim entendidas de forma muito mais profunda do que frequentemente acontece. Trata-se de visões fugidias de uma imobilidade que possui em si a potência de toda a mobilidade.

Após essas visões, Gauguin afirma que caia num entorpecimento, uma espécie de noite. Fechando os olhos, não queria compreender racionalmente o que acontecia ou o que se manifestara, o Sagrado, mas sim apenas visualizar ou contemplar, ver o sonho do Infinito, que dele fugia.

Música, côr e o odem sagrado na Natureza

O texto de Gauguin demonstra o estreito elo entre a música e a côr no ato criador. Embora sendo o relacionamento entre a música e a pintura uma preocupação constante na estética do século XIX, a argumentação de Gauguin dirige a atenção a fenômenos e concepções diversos daqueles da reflexão européia.

Revidando crítica de que as suas obras se caracterizariam por monotonia e arbitrariedade no uso das cores, nos seus diversos tons, concorda com o fato de haver, na sua obra, sempre repetições de tons, sempre os mesmos acordes na música das cores. Gauguin procura justificar a monotonia no tratamento das cores com a monotonia que os europeus sempre sentiram na música de determinadas culturas.

Gauguin lembra que esse cunho repetitivo na pintura corresponderia aos cantos do Oriente, entoados com voz estridente, cujo acompanhamento, contrastando, vibraria de forma obtusa, salientando assim a impressão causada pelo canto. O que lhe importava, portanto, nessa analogia, era o de salientar a necessidade de uso de critérios outros àqueles que apenas se baseavam na variedade e na mudança de acordes, musicais ou de cores.

A sua argumentação, porém, dirigida que era a um crítico europeu, não se baseava porém apenas na música oriental, mas sim também na do Ocidente. Menciona, aqui, de forma surpreendente, L. van Beethoven, então em Paris altamente considerado, e cuja obra afirma conhecer muito bem. Gauguin insere-se, assim, em determinada corrente da estética musical francêsa da época, caracterizada pelo fascínio pela arte alemã. Para êle, Beethoven fizera amplo uso do recurso por êle defendido, citando, como exemplo, a sonata Pathétique. Também na pintura francêsa esse recurso seria comum. Menciona Delacroix, que repetiria sempre acordes colorísticos sob fundo escuro marrom-castanho, acentuando a dramaticidade da concepção da obra. Esse recurso não seria novo na História da Arte, e Gauguin lembra aqui de Cimabue.

Para Gauguin, a côr desempenharia um papel de natureza musical de alta importância na pintura moderna. A côr, na sua vibração, seria capaz de expressar, como a música, o que na Natureza seria o mais geral, o mais difícil de ser compreendido, ou seja, a força que a movimentaria no seu interior. A côr, movimentando-se e movimentando, expressaria assim o Sagrado.

Lembra Mallarmé, que afirmara que uma execução musical não necessitaria de um Libretto. A essência de uma obra de arte, imaterial, para além do espaço e do tempo, residiria para Gauguin justamente naquilo que não expressa. Ela residiria de forma oculta nas linhas. Não necessitaria de cores, nem de palavras. Ela não seria compreensível materialmente. Lembra que Mallarmé teria dito perante as suas obras que seria inacreditável como alguém pudesse ocultar tanto mistério em cores tão iluminadas.

Sonhos - não alegorias!

Gauguin, revidando as observações do crítico, afirma que o seu sonho não pode ser compreendido. Esse sonho, porém, não queria ser de forma alguma alegoria. A imagem da Divindade no seu painel não significaria representação de cunho literário, verbal. Ele não pensara num conceito e procurara representá-lo figurativamente. Essa imagem seria uma estátua, não sensual, pois tomaria forma apenas no seu sonho. Na realidade, porém, "à frente de sua cabana", seria una com a Natureza, ou seja, através do hálito divino.

O Divino no substrato da alma seria uma imagem que consola o homem nos seus padecimentos, um sofrimento inconcebível perante o mistério da origem e do futuro do homem. Tudo isso soaria de forma dolorosa na alma do artista e na sua visão.

Ao despertar, e vendo a sua obra realizada, ocorreu-lhe então as questões: De onde viemos? O que somos? Para onde vamos? Essas questões representavam assim uma meditação a posteriori, que não mais pertence à obra, transpostas em palavras no muro que a envolve. Para o artista, o significado de palavras abstratas ou concretas pode ser encontrado em léxicos, na pintura, porém, não pode ser representado. Gauguin procurara representar no painel o seu sonho como ato de criação, sem utilizar-se de meios literários, com os recursos de sua arte.

Gauguin procurava, com as suas próprias palavras, liberdade com relação às receitas da arte acadêmica, representada pela École des Beaux Arts. Para isso, estava disposto a enfrentar falta de reconhecimento e a pobreza. A coibição da liberdade era também fomentada pela crítica contemporânea, que procurava ditar uma determinada forma do pensar e do sonhar, o que seria uma escravização do artista. Essa crítica estava por demais prêsa à literatura, à qual pertencia. Perdia, assim, a pintura de seus olhos. Assim, o crítico, segundo as palavras de Mallarmé, seria um homem que se ocupa com coisas que não lhe dizem respeito.

Reflexões teórico-culturais

Diferentes autores têm salientado que Gauguin não procurou na Polinésia o exótico ou o pitoresco, mas sim uma pureza original e o inconsciente, o esquecimento de si, a solidez e a universalidade da arte, as fontes originais da inspiração. A imobilidade de suas figuras, a estarrificação das faces e a seriedade dos gestos denotam uma proximidade ao arcaico, à grandeza do "primitivo", à ancestralidade que lembra a arte antiga de Creta ou do Egito. Libertou-se do intuito de modelar figuras através de sombras e luz, da perspectiva linear, da graduação de valores e superfícies, o que confere monumentalidade às obras. Simplicidade nobre e grandeza silenciosa surgem nas suas obras como uma nova expressão de critérios do clássico, do modelar, do exemplar, apesar de ter superado meios de composição e de expressão do Classicismo. As suas obras, em particular as esculturas, prepararam os europeus para a apreciação dos valores da arte das culturas não-européias.

Já em 1978, Marco Antonio Guerra, no seu mencionado estudo pioneiro, constatava:
"É bem verdade, que a formação de Gauguin e européia, e que também existe uma tentativa de se universalizar o universo taitiano. Mas a vivência do pintor é tão profunda e tão abrangente que le lenta e gradualmente vai rompendo cânones, modificando conteúdos numa busca contínua dessa cultura, até se fixar novo referencial: o Taiti." (op.,cit. 2-3)

O pesquisador que dirige as suas atenções sobretudo a questões teórico-culturais, tem a possibilidade de abrir novas perspectivas de leitura da sua obra e, ao mesmo tempo, detectar caminhos para a avaliação de seu significado para o presente. O pesquisador brasileiro fica surpreendido em ver aqui analogias com o que conhece do estudo das culturas indígenas, onde o sonho desempenha papel relevante, também e sobretudo no processo de "invenção" de cantos. Surpreende-se também de constatar analogias com o que conhece de movimentos espirituais relacionados com a "união" ou "comunhão" com o Vegetal. Um estudo mais aprofundado da obra de Gauguin pode aguçar a sensibilidade para a consideração mais aprofundada da experiência visionária e visionário-musical tanto no universo indígena como naquela dos movimentos atuais do "Santo Dai-me" e correlatos, como discutido no simpósio dedicado a dimensões religiosas do tema "Música e Visões do Congresso de abertura das comemorações dos 500 anos do Brasil, em 1999, organizado pela Academia Brasil-Europa em cooperação com várias outras instituições.

A importância de Gauguin para o Brasil não se resume, assim, na constatação de influências diretas ou indireta de sua arte em pintores brasileiros cujas obras também apresentam por exemplo formas em massas e simplificadas, emprêgo de cores em planos e superfícies, separação de formas através de contornos escuros e abstração quanto a à percepção da natureza.

Para o analista cultural, a réplica de Gauguin pode ser vista como uma lição e advertência. A leitura da linguagem visual de expressões culturais não pode partir apenas da alegorese, ou seja, o da interpretação de imagens como representações alegóricas de concepções. Essas imagens podem ser símbolos, signos, sinais, emblemas e.o., devem porém sobretudo ser entendidas na sua inserção na temporalidade, ou seja, em desenvolvimento processual. As figuras podem referir-se a diferentes contextos, a memórias e atualizações, assim como as de Gauguin trazem referências a outras culturas e obras de outros artistas. Assim, a figura do eixo central do seu painel remonta a um estudo da escola de Rembrandt.

Da leitura de Gauguin às marae do Taiti

O mais relevante nas observações de Gauguin para o analista cultural é a menção do Imóvel na mobilidade fugidia. Com isso tem-se também caminhos para uma compreensão mais profunda do próprio universo taitiano. As marae, os locais sagrados de culto dos antigos polinésios têm sido analisadas e sistematizadas quanto à sua localização, forma, funções sociais e de culto aos antepassados, como monumentos de um universo religioso extinto. Pouco se tem considerado a função da pedra, que tanto marca esses monumentos. Sejam as pedras à beira do mar, sejam os pátios e muros de pedras junto a fontes em florestas, o rijo da rocha se defronta com o corrente da água. Após uma leitura sensível de Gauguin, o visitante de um desses sítios arqueológicos do Taiti sente-se transportado a um universo no qual a pedra - a pedra da Bretanha, a pedra da marae - manifesta o seu significado como expressão do Fundamento, da Origem e do Fim, do Imóvel que tudo movimenta, da base de postes e eixos, também daqueles do cosmo e do interior do homem.

"Os insulanos passavam a sua vida em grande tranquilidade e com trabalho leve. Levantavam com o raior do sol; e lavavam-se num rio ou numa fonte; passavam a manhã com trabalhos ou com passeio, até que o calor atuasse sobre êles. Então recolhiam-se, ou descansam à sombra de uma árvore; ali passavam o tempo trançando o cabelo, passando óleo no corpo, ou tocando flauta ou ouvindo o cantar dos pássaros. Pelo meio-dia, comiam; após o almoço tomavam de novo os seus afazeres ou divertimentos domésticos, podendo-se perceber a afeição recíproca e a cordialidade de todos. Frequentemente os viajantes puderam apreciar esses espetáculos de alegria e felicidade. As inventivas divertidas e ingênuas, os contos simples, a dança alegre e uma alimentação frugal contribuia para essa alegria. Por fim, lavavam-se mais uma vez no rio, e encerram assim o dia sem intranquilidades e aborrecimentos. Compara-se essa vida selvagem com a dos povos civilizados, que contraste! Aonde se pode encontrar a verdadeira felicidade? Deve-se ainda decidir. Sobre esse ponto, Montesquieu diz: 'Os índios creem que a tranquilidade e o nada são o início e o fim de todas as coisas, por isso veem a falta de ação como o estado mais perfeito e a finalidade de seus desejos; ao Ser superior dão o cognome de o Imóvel. (...)" (G. L. D. de Rienzi, Oceanien oder Der Fünfte Welttheil. Welt-Gemälde-Gallerie oder Geschichte und Beschreibung aller Länder und Völker, ihrer Gebräuche, Religionen, Sitten u.s.w. (...) Aus dem Französischen. Oceanien 2. Band. Polynesien, Stuttgart : E. Schweitzerbart's Verlagshandlung, 1837-1839, pág. 434)


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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (Ed.). "'De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?' Música, visões e a questão da alegoria na análise cultural. Paul Gauguin (1848-1903) no contexto Taiti-Europa-América Latina". Revista Brasil-Europa 125/3 (2010:3). www.revista.brasil-europa.eu/125/Paul_Gauguin.html




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa:
    http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.




 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 125/3 (2010:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
órgão da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos interculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2590


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"De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?"


Música, visões e a questão da alegoria na análise cultural

Paul Gauguin (1848-1903) no contexto Taiti-Europa-América Latina



Reflexões na marae Ahu O Mahine (Moorea) em sequência ao colóquio sôbre Música e Artes Visuais no Wallraff-Richartz-Museum de Colonia (Universidade de Colonia e A.B.E.)
sob a direção de A.A.Bispo


 



















Ahu O Mahine (Moorea)
Fotos: A.A.Bispo
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