Polinésia: Igreja Católica. Revista BRASIL-EUROPA 125. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

Estudos culturais dedicados às relações entre o Brasil e a esfera do Pacífico não podem deixar de considerar a história eclesiástica da Europa à época dos respectivos descobrimentos.

As descobertas de fins do século XV e do século XVI ocorreram em período de ímpetos e movimentos de reformas e profundas transformações na vida religiosa. Nesse complexo contexto, o Brasil, pelas circunstâncias de sua descoberta pelos portugueses, foi marcado na sua formação pelo Catolicismo, que passava a ser alvo de movimentos reformatórios, sobretudo em países da Europa Central. A formação cultura do Brasil foi, assim, marcada por intentos de consolidação, recuperação e expansão da Igreja Romana, de auto-reforma e contra-reforma. A transformação cultural dos indígenas deu-se em grande parte através de ordens religiosas, sobretudo da Companhia de Jesus, instituição nascida dos anelos da própria época e participante de seus impulsos.

Tentativas protestantes de estabelecimento no Brasil permaneceram inicialmente episódicas, tais como o da França Antártica, no século XVI.

Completamente diverso oferece-se o panorama histórico-cultural da esfera do Pacífico. A história dos descobrimentos e da colonização de grande parte do seu mundo insular inicia-se em geral no século XVIII, mais de dois séculos daquela do Brasil, época na qual a configuração religiosa e de poder político da Europa mostrava-se totalmente modificada.

Elos mais intensos com a Europa foram estabelecidos sobretudo através de uma potência não-católica, a Grã-Bretanha. Não apenas o Anglicanismo, mas sim e sobretudo os movimentos protestantes dissidentes ou independentes encontraram nas ilhas do grande oceano frutífero campo de ação, possibilitado pelo vácuo causado pela erosão do edifício de concepções e práticas consuetudinárias.

Principais agentes da transformação cultural polinésia foram pastores protestantes de língua inglêsa (Veja artigo a respeito neste número). A presença católica na região foi representada sobretudo pela França. Ela decorreu, porém, inicialmente, em época crítica da história religiosa francesa, abalada pelas tendências racionalistas e pela Revolução.

Quando, no decorrer da reconscientização religiosa do século XIX, a partir sobretudo da Restauração e em era marcada por ideais românticos voltados à Cristandade medieval, os católicos franceses tiveram a sua visão despertada para a situação no Pacífico, o protestantismo de cunho independente já estava ali em muitas partes estabelecido e os seus ministros ocupavam posições de influência.

Com exceção de poucas ilhas ainda não ocupadas, a ação católica no Pacífico encontrou obstáculos até mesmo maiores do que aquelas encontrados pelos protestantes no Brasil do século XIX.

Os missionários católicos não atuaram tanto em contextos ainda não marcados pelo Cristianismo, como os indígenas dos primeiros séculos do Brasil, mas foram confrontados com uma carga de animosidades decorrentes da história cultural e religiosa da Grã-Bretanha.

As relações entre o Catolicismo e as várias denominações evangélicas no Pacífico foram marcadas por tensões político-culturais entre a França e a esfera de língua inglêsa. No caso do Taiti, a entrada de missionários católicos foi impedida por pastores protestantes que exerciam influência junto à família real, levantando questões internas quanto à orientação do país relativamente à proteção européia.

Onde a França prevaleceu, em particular na Polinésia Francesa, tem-se, assim, a singular situação de que parte considerável da população encontra-se vinculada, sob o aspecto de sua cultura religiosa, a outras correntes históricas do que aquelas subjacentes à história colonial e nacional, transmitidas através da educação escolar, da literatura e da difusão cultural em geral.

Para os pensadores católicos no Pacífico, a questão da prioridade histórica da presença cristã na região assumiu papel relevante. Confrontados com um pioneirismo constantemente salientado da ação missionária evangélica, fundamentado histórico-culturalmente numa prioridade dos empreendimentos de descobrimento e exploração inglêses dos séculos XVIII e XIX, cujos nomes marcam a consciência histórica de várias nações, tem-se procurado, já há muito, trazer à memória que o descobrimento do Pacífico deu-se muito antes, à época das grandes descobertas do século XVI, e que foi levado a efeito por povos e navegantes católicos.

A presença católica teria sido, assim, muito anterior àquela dos evangélicos de fins do século XVIII, podendo o pensamento catóilico remontar à tradição muito mais antiga. Essa preocupação de trazer à consciência acontecimentos mais antigos da presença de católica no grande Oceano tem, naturalmente, conotações histórico-culturais, uma vez que salientam a prioridade ibérica, com profundas consequências relativamente à valoração de nomes e fatos na historiografia e na difusão cultural. Essa correção ou modificação de pêsos e perspectivas traz uma aproximação do mundo insular do Pacífico à América Latina na história cultural.

Terra incognita magallanica

Essa recorrência ao passado leva ao intuito de Colombo em atingir o Oriente pelo Ocidente e ao fato de Vasco Núñez de Balboa (1475-1519) ter deparado pela primeira vez com o Pacífico, tomando posse do mesmo como "Mar do Sul" para o rei da Espanha.

Para além do fato de espanhóis terem percorrido as costas pacíficas do continente americano, traz-se à consciência sobretudo a viagem de circumnavegação de Fernando de Magalhães (1480-1521), a primeira que, em 1522, realizou a passagem do Atlântico ao Pacífico, e na qual o navegador português descobriu a ilha dos Ladrões em direção às Molucas, falecendo nas Filipinas.

O grande continente do Sul do globo, que se supunha existir e cuja descoberta representaria a preocupação de várias nações por séculos, passou até mesmo a levar o nome de Fernando de Magalhães. Assim, o mapa de Willem Blaeu (1571-1638) "India quae Orientalis dicitur, et Insulae adiacentes", inclui, na sua parte inferior, trecho da "Terra dos Papons" ou Nova Guinea, assim como parte do litoral australiano então conhecido pelos holandeses, correspondente à costa ocidental da península do Cape York e pequena parte da costa da Austrália Ocidental.

Esses conhecimentos, de 1635, foram repetidos em cartas posteriores, entre elas no Atlas de Joan Blaeu (1596-1673), de 1662, cartógrafo da Verenigde oost-Indische Compagnie. O mapa de W. Blaeu, Nova totius orbis terrarum geographica ac hydrographica tabula, da obra de Johannes e Cornelis Blaeu Novus atlas (Amsterdam, 1641), inclui a Magallanica ou Terra australis incognita, que quase tocava o sul da América do Sul e englobava grande parte do Pacífico.

Pedro Fernandes de Queirós (1555-1614) e a expansão da América espanhola

O principal vulto na consideração dos elos da esfera oceânica com o mundo ibérico, em particular com o português, é o de Pedro Fernandes de Queirós. Esse navegador, também conhecido por Pedro Fernández de Quirós, chegou a ser cognominado de Colombo da Austrália (Otto Kübler-Sütterlin, Kolumbus Australiens: Das Wagnis des Pedro Fernandes de Queiros, Freiburg: Karl Alber 1956).

Queirós surge como a figura histórica que pode fazer recuar a história dos descobrimentos oceânicos e aproximá-la a um contexto em que se inserem as regiões do Atlântico e os países sul-americanos. Os feitos de Pedro Fernandes de Queirós decorreram à época da União Pessoal de Portugal e Espanha, sendo compreensível, assim, que o seu nome possa ser inserido na história das navegações espanholas e nas portuguesas.

Embora português, tomou parte da segunda expedição de Alvaro de Mendaña de Neyras (1541-1595), que, em 1595, partiu do Peru em direção das ilhas Marquesas e das Salomões (ilhas de Santa Cruz). Com o falecimento de Mendaña de Neyras, assumindo a liderança da expedição, Queirós retornou ao Peru pelas Filipinas.

Em 1605, o navegador português partiu novamente do Peru em direção ao sul do Pacífico, na nave San Pedrico, comandada por Luiz Vaéz de Torres (ca. 1565-1610). Esse empreendimento,  realizado por ordem do Vice-Rei do Peru, levou ao descobrimento de uma série de ilhas (Tuamotu).

No início de 1606, a 10 de fevereiro, descobriu-se a ilha que passou a ser designada por Conversion de San Pablo, mais um testemunho da prática de designação de terras segundo festas do calendário religioso (festa da Conversão de São Paulo a 25 de janeiro). A identificação dessa ilha de São Paulo levantou questões entre os pesquisadores. Supôs tratar-se do Taití, chegando-se, porém, à conclusão que deveria ter sido antes a ilha Anaa. Seja como for, tratando-se aqui também de uma ilha pertencente à atual Polinésia Francesa, recua-se o seu descobrimento e valoriza-se a prioridade das viagens ibéricas e os contextos do Pacífico com a América Latina.

A Pedro Fernandes de Queirós caberia ainda um outro ato pioneiro: o de ter constatado a amabilidade e a beleza do polinésio, precedendo assim àqueles que levariam à difusão, na Europa, da imagem paradisíaca da região, em particular do Taiti. Essa constatação de Queirós pode ser testemunhada pelo fato de ter designado uma das ilhas descobertas pelo nome de  "Gente Hermosa", que até hoje não pode ser identificada com segurança (possivelmente Rakahanga ou Olosenga).

Significado de Queirós na perspectiva histórico-cultural católica

Pedro Fernandes de Queirós estava também à procura do suposto continente da Terra australis. Supôs tê-lo encontrado na ilha que denominou de La Austrialia del Espiritu Santo, alcançada a 3 de maio de 1606, o atual Vanuatu, onde chegou a fundar uma colonia, designada como Nova Jerusalem.

Por essa razão, caberia a êle, de fato, a designação da Austrália, em geral atribuída a Matthew Flinders (1774-1814), o navegador que mais tarde faria a circumnavegação da Austrália. Essa prioridade foi defendida por alguns estudiosos australianos, sendo compreensível que sobretudo os católicos da Austrália tivessem procurado salientar o fato de ser o nome do país não apenas resultante de uma concepção geográfica, mas sim religiosa.

O fato de Queirós ter designado a ilha  encontrada com o nome de Espírito Santo necessitaria ser considerado sob o ponto de vista teológico. A ilha foi descoberta na festa de Santa Cruz, mas esse nome já designava outras ilhas. Tudo indica um vínculo com concepções relacionadas com o Espírito Santo vivas em expressões culturais do período posterior à Páscoa, preparatórias de Pentecostes, intensamente praticadas nas ilhas atlânticas e também pelos marinheiros em viagens transoceânicas. Sob uma perspectiva católica, a Austrália surge, aqui, relacionada nada menos do que com a teologia do Espírito Santo.

Um dos maiores defensores da prioridade e da importância de Queirós foi o Cardeal Francis Moran, Arcebispo de Sydney (1884-1911). Essa valorização de Queirós desempenhou papel singular na história cultural sob a perspectiva católica da Austrália, dando origem a expressões literárias, entre elas o poema "Captain Quirós", de James McAuley (1917-1976). Como já mencionado, essa valorização de Queirós possibilitava fundamentar historicamente a precedência do Catolicismo na história da Austrália, dando raízes mais antigas à presença católica no Pacífico.

Indícios de uma história missionária ibérica

Em 1668, a ação sistemática de missionários teve o seu início com o jesuíta D. L. de Sanvitores S.J., nas ilhas Marianas. Tentativas da Companhia nas ilhas Palau e Carolinas, assim como de Franciscanos espanhóis em Taiti (1772-1776) não tiveram sucesso duradouro. Entretanto, a irradiação religiosa a partir de postos portugueses no Oriente necessitaria ser mais pormenorizadamnenbte estudada.

Não se pode esquecer que Georg Forster (1754-1794) registrou, quando da sua estadia no Taiti, que espanhóis já ali haviam estado. Assim, o Taiti não teria sido descoberto nem pelos franceses, nem pelos inglêses, mas sim pelos espanhóis.

"Êle pediu alguns cocos e começou a falar de Pahie no Peppe ou do navio espanhol do qual Tuahau nos tinha dado a primeira notícia. Segundo o que contou, o navio esteve cinco meses antes em Whai-Urua, ali permanecendo 10 dias. Acrescentou que o capitão mandou enforcar quatro de seus marinheiros, um quinto, porém, conseguiu fugir. Perguntamos por longo tempo a respeito desse europeu, que chamavam de O-Pahutu, mas nada conseguimos dele tirar, e como finalmente os cortesãos de Sua Majestade perceberam, que procurávamos informações sobre esse homem de forma tão precisa e receiosa, asseguraram-nos que êle estava morto. Mais tarde soubemos que à mesma época dada pelos indígenas, Don Juan de Langara Y Huarte, de Callao, no Peru, havia sido enviado e visitara o Taiti; nada se sabe, porém, até agora dos pormenores de sua viagem." (Georg Forster, "Das Idyll von Tahiti", in Neue Welten, ed. W. Bolsche, Berlim 1917, pág. 55)

Picpusianos e a espiritualidade do Sagrado Coração

A história missionária do século XIX do Pacífico está estreitamente vinculada à ação da Congregação dos Santíssimos Corações de Jesus e Maria (Congregatio Sacrorum Cordium Iesu et Mariae necnon adorationis perpetuae Ss. Sacramenti altaris - SSCC). Essa congregação passou a ser conhecida pelo nome da rua onde possuía a sua casa principal, a Rue de Picpus, em Paris. Na Alemanha, os seus membros também são designados de "Padres de Arnstein", cidade situada às margens do rio Lahn.

Através dessa congregação, a história do Catolicismo implantado na Oceânia relaciona-se, assim, com contextos e expressões da história religiosa francêsa do século XIX em sequência à Revolução Francesa. Remonta sobretudo à ação piedosa de uma senhora de origem aristocrático-rural, Henriette de la Chevalerie Aymer (* 1767-1834) de Poitiers, que, por proteger religiosos durante a Revolução, chegou a ser encarcerada pelos Jacobinos. Após a sua libertação, passou a dedicar-se de forma fervorosa à adoração dos Corações pela remissão dos pecados e à presença divina, consciente dos êrros da Revolução contra a Igreja e a vida religiosa.

Henriette de la Chevalerie Aymer fundou, em 1800, juntamente com Marie-Joseph Coudrin (1766-1837), também de Poitiers, sacerdote consagrado secretamente durante a Revolução e constantemente perseguido, a Congregação dos Santíssimos Corações. A espiritualidade de H. de la Chevalier Aymer e de M.-J. Coudrin era marcada por intensa dedicação à penitência e remissão, à diligência de cunho heróico na procura de uma reedificação da vida religiosa abalada pelos revolucionários e pelo espírito do tempo, por esforços de reinstituição de um ensino católico da juventude e da formação do clero segundo princípios severos. Esses intuitos incluiam a ação missionária junto ao povo e previam também a atividade junto a povos não-cristãos.

O fervor, a diligência e o zêlo extremado de seus fundadores impregnaram o espírito da congregação, que experimentou considerável desenvolvimento, sobretudo após a Restauração francesa. Confirmada por Roma em 1817, e consciente de que a Polinésia se achava entregue aos protestantes, a congregação enviou os seus primeiros missionários ao Hawai, em 1826. Seriam alvo de perseguições, sendo expulsos em 1831.  Em 1873, Damian Deveuster (1840-1889) partiu para Molokai, onde dedicou-se à cura de leprosos, passando a ser conhecido como Apóstolo dos Leprosos.

"A missão católica do Mar do Sul, até a terceira década do século XIX retida pelo entorpecimento do Catolicismo europeu, é um produto específico dos tempos mais recentes e essencialmente uma filha do Romantismo, por isso impulsionada pela esperança de levar também para o distante mundo insular a forte corrente de conversão que então aproximava-se do seu zênite na terra natal. Atirou-se, sob Gregorio XVI, com fogo do zêlo nessa área de missão, recebendo apoio no poder militar francês e auxiliando-o por outro lado a alcançar poderio colonial. Por consequência, foram sobretudo franceses que correram a esse campo missionário, primeiramente (desde 1827) os Picpusianos e depois os Maristas (...)"(J. Schmidlin, Katholische Missionsgeschichte, Steyl 1924, 502)

Sob esse pano de fundo, compreende-se que a expansão dos Picpusianos na América Latina deu-se sobretudo a partir da costa do Pacífico. Em 1834, fundou-se a sua casa em Valparaíso, que tornar-se-ia centro da difusão de missionários pelo continente. Ao mesmo tempo, fundou-se um seminário para a formação de missionários em Löwen, na Bélgica.

A ação missionária católica na Oceânia foi, em princípio, dividida em duas grandes áreas e que seriam em grande parte marcadas pela atividade de missionários de duas principais congregações a dos Sagrados Corações e a dos Marianos. Em 1833, fundou-se a Prefeitura Apostólica da Oceânia, dividida em Oceânia Oriental e Ocidental.

A partir de 1834, os Picpusianos atuaram nas ilhas Gambias, a partir de 1838 nas Marquesas. Em 1848, fundou-se o Vicariado Apostólico das Ilhas do Taiti, com sede em Papeete. Os primeiros três missionários vieram do Chile, em 1834, desembarcando nas ilhas Gambias (Akena, Akamaru e Taravai), a seguir em Mangareva. Em 1836, os missionários tentaram penetrar no Taiti, sendo expulsos por instigação de pregadores protestantes atuantes junto à família real. Somente a intervenção da França, em 1838, possibilitou o alcance da liberdade religiosa e o início da missão. A rainha do Taiti pediu o Protetorado da Inglaterra; sendo recusado, em 1842, passou ao protetorado francês.

"Mas apesar da dedicação heróica e dos rápidos sucessos iniciais, as esperanças da missão católica do Mar do Sul apenas foram realizadas de modo fraco, não apenas pelas particulares dificuldades no objeto, por um lado pela dispersão espacial e pela distância das ilhas, por outro pela multiplicidade de idiomas da população, mas sobretudo também por ter-se expandido demasiadamente com o apoio do Protecionismo francês e seguindo as suas canhonheiras, o que mais tarde teria não raro que pagar amargamente (...) " (J. Schmidlin, loc.cit.)

Honoré Louis Jacques Laval (1807-1880)

Embora o Apóstolo dos Leprosos, Pe. Damian, seja atualmente o vulto da história eclesiástica da Polinésia mais intensamente venerado, uma atenção particular cabe, sob o aspecto histórico-cultural, a Honoré Louis Jacques Laval. Nascido em região rural da França, fêz a sua profissão de fé na Congregação dos Sagrados Corações, em 1825. Deu continuidade a seus estudos de teologia, sendo ordenado sacerdote em 1831.Com a ampliação da esfera missionária da congregação, em 1833, e com a nomeação do Mons. Etienne Rouchouse a Vigário Apostólico da Oceânia Oriental, Laval para lá se dirige, acompanhado por François d'Assise Caret, e outros dois religiosos, em 1834. Após uma estadia em Valparaiso, três dos missionários dirigiram-se às ilhas Gambias, a bordo da nave La Peruviana.

A imagem de Laval apresenta traços de ambivalência, sendo a sua ação sobretudo reconhecida e valorizada pela sua congregação, que também salienta a sua contribuição etnográfica (Mémoires pour servir à l'histoire de Mangareva 1. Ere paienne 2. Ere chrétienne 1834-1871", publicada em parte em 1936, com notas de A. Métraux). Alguns estudiosos, porém, criticam a atuação de Laval como uma das mais questionáveis manifestações da influência européia no universo polinésio, de trágicas consequências.

"Ambos os livros [Robert Lee Eskridge, Mangareva, The Forgotten Island: Indianopolis, 1931 e diário de Honoré Laval), são diametralmente opostos. Para John Eskridge, o Padre Honoré Laval é um fanático louco, desde o início. Um homem de fé extremamente rígida e estreita, totalmente responsável pela quase que total extinção dos Mangarevanos e de habitantes de outras ilhas do Arquipélago. Entretanto, os dados sobre a população de Eskridge e de Laval são muito diversos. O religioso supõe, no início da missão, para todo o arquipélago, menos da metade de pessoas e vê, no fim, que restaram um quarto. Segundo Eskridge, ao contrário, apenas três por cento sobreviveram à ação criminosa do missionário. O Père Laval sente-se, no seu interminável relato, não apenas livre de êrros mundanos, mas sim também como um salvador de almas, despreendido, um benfeitor e agente cultural do grupo insular. Se, à sua época, muita gente morreu, a culpa foi de outras influências, externas. Para mais, teria sido a vontade de Deus, e não cabe ao cristão opinar a respeito" (Hans-Otto Meissner, "Notre Dame de Mangareva", Inseln der Südsee, Munique 1979, 124-153, 125).

As concepções e a obra de Laval não podem ser adequadamente analisadas sem a consideração das condições em que surgiu e se desenvolveu a missão dos Picpusianos na França. Somente a diligência extremada, o zêlo fervoroso, o espírito de dedicação, de trabalho incansável pela edificação, pela reforma de costumes, a penitência e a procura de remissão dos pecados, compreensíveis pela situação francesa da Restauração, podem explicar o trabalho insano e o extraordinário anelo construtivo e reformador que Laval desenvolveu em Mangareva.

Somente assim pode-se compreender que, após a conversão do rei local e a consequente erosão das concepções e das práticas de culto tradicionais, Laval haja conseguido arregimentar a população para a consecução de um plano de construções de grandes dimensões, desproporcional para as necessidades locais, incluindo uma igreja que se diz inspirada na Catedral de Notre-Dame, uma basílica de três naves, de 62 m de comprimento, 21 metros de largura, 32 metros de altura, com 20 colunas e um altar ornamentado de pérolas negras.

Além do mais, Laval construiu edifícios paroquiais e conventuais, oficinas várias, mosteiros masculinos e femininos, pensionado para meninas, escolas, e, para o rei, palácios, casas de campo e pavilhões. Levou a que fossem abertas estradas e construído um porto. Para o alcance de meios financeiros, desenvolveu ao extremo o trabalho na coleta de pérolas. Essa atividade construtiva desmesurada foi acompanhada pelo entristecimento, enfraquecimento e extermínio de quase toda a população. A essa mortandade contribuiram doenças trazidas pelos europeus, às quais os nativos não eram imunes.

Em 1855, Honoré Laval tornou-se superior da missão dos Gambias. A partir de 1857, com a morte do rei Maputeoa, e em situação que se tornava cada vez mais difícil e insegura, Laval passou a atuar como representante da França, como delegado do governador, agindo como se fosse um soberano de um pequeno reino, em si reunindo as mais diversas tarefas numa espécie de teocracia missionária. Por essa razão, o arquipélago tornou-se conhecido como o Paraguai da Polinésia, constituindo uma espécie de nova edição da "república jesuítica" paraguaia do século XVII. Afastado por fim da direção da missão, transferido ao Taiti, Laval viu a sua obra cair em ruínas..

Sob o aspecto histórico-cultural, ter-se-ia nesse trágico desenvolvimento um testemunho de defasagens, de profundos mal-entendidos condicionados por diferentes pressupostos culturais. A recuperação da vida espiritual, contemplativa, de adoração preconizado pelos Picpusianos levara, nas condições francesas, à necessidade de um zêlo construtor, de diligência, de trabalho, de devoção à causa. Transplantado para a Polinésia, parece ter levado, porém, justamente a resultados opostos. Não a vida ativa tornou-se subordinada à vida contemplativa, mas, ao contrário, a atividade assumiu uma extraordinária preponderância, transformando a vida dos polinésios em escravização ao trabalho e à consecução de trabalhos de construção, ou seja, de organização e configuração do mundo material. Pressupostos já existentes à preconizada vida espiritual na própria cultura polinésia foram assim destruídos, levando ou contribuindo ao aniquilamento da cultura e da própria população.

Tendências recentes nas relações entre Igreja e cultura

Assim como no Brasil - e em outras partes do mundo - o desenvolvimento das últimas décadas do Catolicismo na Polinésia Francêsa tem sido marcado por esforços de "inculturação". Esse complexo conceito, que pode ser genericamente compreendido como o de implantação do Evangelho em culturas locais, dando-lhe corpo cultural e cristianizando as respectivas culturas, vem sendo discutido há décadas relativamente à sua concepção teórico-cultural e a seus procedimentos.

Sem ser possível, neste contexto, retomar essa discussão, cumpre aqui sobretudo salientar o papel que desempenha a Polinésia no âmbito das discussões relativas às relações entre a Igreja e a cultura à luz das condições especiais derivadas das circunstâncias da sua história.

Grande parte das preocupações que fomentaram as discussões das últimas décadas foi resultado da constatação de que a ação de missionários do passado teria sido por demais marcada pela transplantação de elementos culturais europeus, pela construção de igrejas em estilos da arquitetura européia da época, pela prática da música sacra por êles conhecida, pelo cultivo e difusão, enfim, de expressões culturais às quais estavam acostumados nos seus países natais.

Essa constatação é justificada sobretudo através da história missionária desenvolvida no século XIX em regiões então alcançadas de forma particularmente intensa pela expansão colonial e imperial de nações européias. A crítica - e a auto-crítica - tem-se voltado sobretudo a fatos e decorrências em determinadas regiões africanas. A Polinésia, porém, é a região do mundo cuja transformação cultural foi mais determinada por circunstâncias e correntes do século XIX. Trazê-la ao centro das atenções pode aguçar a sensibilidade para determinados aspectos menos considerados relativamente a outros contextos, contribuindo, assim, para a discussão dos problemas da relação entre a Igreja e a cultura no seu todo.

A Polinésia francesa apresenta, na ação de Honoré Laval, que marca importante fase inicial de sua história cultural católica, um exemplo altamente expressivo da complexidade do tema e de seu tratamento diferenciado e justo.

Mesmo os pesquisadores que salientam as trágicas consequências da obra de Laval, não podem deixar de reconhecer o seu idealismo e boas intenções. Êle não deixou de interessar-se pela cultura local, aprendeu a sua língua, escreveu catecismo no idioma, recolheu e registrou fatos históricos e etnográficos da tradição oral. A monumental catedral que fêz construir não dispensou o emprêgo de elementos locais, tendo-se sempre salientado uso de madrepérola e pérolas das ilhas na ornamentação do seu altar. Foram trabalhadores da sua ilha, já então de população que se ia reduzindo, que colaboraram na construção de uma outra catedral, a de Papeete, que deveria vir a ser também monumental, de maiores proporções do que aquela construída e que constitui a atual Notre Dame de Papeete.

O exemplo de Laval chama a atenção ao fato, assim, que o problema das relações entre a Igreja e a cultura não diz respeito a insuficiente interesse por questões etnográficas, ao emprêgo de materiais e elementos de expressão nativos na arquitetura, nas artes e na música. O problema, hoje, não pode ser solucionado apenas com o revestir de figuras da história sagrada com trajes polinésios, como na via-sacra da catedral taitiana, nem com o uso simbólico da fruta-pão, nem com o enfeitar de imagens com colares de flores à moda polinésia.

Esses elementos podem ter significado como indicativos de uma intenção, constituindo também um fenômeno cultural a ser estudado, a própria Polinésia, porém, mostra que uma mais profunda análise do problema das relações entre a Igreja e cultura necessita considerar não supostas características culturais, "típicas", externas, mas sim processos, entre êles o da inserção dos seus religiosos em contextos e correntes do pensamento europeus.

A Polinésia ensina, através sobretudo de Laval, que boas intenções não bastam. Foi justamente o excesso de zêlo, de diligência, de força de convicção, de ímpeto missionário e educativo, em mixto de anelos restauradores, construtores e expansionistas explicáveis por pressupostos histórico-culturais europeus do século XIX que levaram ao desencadeamento de processos dramáticos.

O estudo desses pressupostos culturais dos agentes da transformação assume significado transcendente, pois foi justificado teologicamente e na tradição filosófica do cultivo das virtudes, em particular naquelas designadas como heróicas.

A atenção se dirige, assim, à dimensão ética, e a discussão estética não pode ser dela separada. A Polinésia ensina, através da ação de Laval e suas consequências, que um dos principais mal-entendidos foi o do reducionismo da ética a questões de costumes, de trajes, da nudez, de moral sexual. Foi sobretudo através do transplante de normas de uma moral no sentido superficial do termo, determinadas culturalmente e justificadas teologicamente também segundo o espírito do tempo, que a cultura tradicional parece ter sido mal-compreendida nos seus fundamentos.

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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (Ed.). "Aspectos histórico-culturais do Catolicismo no Taiti em paralelos e relações com o Brasil". Revista Brasil-Europa 125/8 (2010:3). www.revista.brasil-europa.eu/125/Igreja_Catolica_na_Polinesia.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa:
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  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.





 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 125/8 (2010:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
órgão da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2595


©


Aspectos histórico-culturais do Catolicismo no Taiti
em paralelos e relações com o Brasil




Do programa da Academia Brasil-Europa Atlântico-Pacífico de atualização dos estudos culturais transatlânticos e interamericanos
Ciclo de estudos na Polinésia Francesa e no Hawai, 2010
sob a direção de A.A.Bispo

 












Papeete 2010

Fotos H. Hülskath. ©
Fotos A.A.Bispo

 

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