Brasileiros no Pacífico. Revista BRASIL-EUROPA 125. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

A história cultural dos países alcançados pelos europeus à época dos grandes Descobrimentos é estreitamente ligada à história das viagens marítimas. Nomes de grandes navegadores surgem como vultos de primeira grandeza na história das várias nações e naquela das relações entre povos, culturas e continentes.

Sejam Vasco da Gama, Cristóvão Colombo, Pedro Álvares Cabral, Fernando de Magalhães, capitães de navios piratas, ou de navios de descobrimentos tardios e de exploração científica, como J. Cook, o estudo das relações entre as culturas e de uma história cultural da humanidade em contextos globais não dispensa vultos referenciais.

Somente aos poucos, porém, é que se passa a considerar os muitos nomes de profissionais das diversas áreas que viajaram nos navios, de artistas que registraram em mapas, desenhos e pinturas locais de interesse para a navegação e para a ciência, de médicos que cuidaram da saúde física daqueles que viajavam, de músicos que contribuiram para o equilíbrio psíquico das tripulações, de sacerdotes que cuidavam do seu socorro espiritual e muitos outros representantes das mais diversas profissões.

Não apenas os cientistas naturais que participaram dos grandes empreendimentos navais do passado são merecedores, assim, da atenção especial de uma história cultural em contextos globais que reconheça a necessidade de não se limitar aos nomes transmitidos por uma historiografia marcada apenas por oficiais. Também e sobretudo aqueles que não participaram diretamente dos objetivos dos empreendimentos navais, mas que atuaram no dia-a-dia da vida a bordo, exercendo as suas profissões, surgem como de relevância.

Esse significado não diz respeito apenas a uma história cultural do viver nas naves, mas sim também à do contato com outros povos, uma vez que também esses profissionais desciam nos portos e, de retorno, traziam impressões que transmitiam a seus. Foram, assim, mediadores culturais, talvez até mesmo mais influentes do que os representantes da oficialidade. Com a sua especialização profissional, mais próximos a questões práticas, transmitiram a outros povos conhecimentos, técnicas e usos. Sendo que poucos nomes desses profissionais do passado foram transmitidos ao presente, a sua recuperação e valorização representam tarefas para os estudos culturais.

Viagens interoceânicas na atualidade e tripulação internacional

O desenvolvimento das viagens interoceânicas das últimas décadas foi acompanhado por uma intensa internacionalização das tripulações dos navios. Ainda mais do que no passado, a consideração dos inúmeros profissionais das várias nações que trabalham nessas naves surge como uma tarefa para os estudos culturais.

Também muitos brasileiros encontram-se entre os representantes dos diferentes países que constituem tais tripulações multinacionais. Alguns têm a oportunidade de atuar na sua própria área profissional, outros exercem atividades outras, nem sempre à altura de suas qualificações.

Encontrando-se em contato com passageiros de diversos países, ganham não apenas novos conhecimentos e impressões de diferentes mentalidades e usos, mas surgem também como representantes dos seus respectivos países, transmitindo, acentuando ou corrigindo imagens.

Os seus colegas são provenientes também das mais diferentes nações, sujeitos também à experiências similares e desempenhando função análoga de mediação. Sobretudo a língua faz com que os provenientes de cada nação se aproximem, criando um sentimento de grupo determinado pela origem.

Vindos de diferentes regiões e estados, também os brasileiros distinguem-se aqui por diferenças culturais entre si. As relações entre fatores definidores da unidade e caracterizadores da diversidade no grupo e nas relações de seus componentes com os demais grupos nacionais da tripulação e com os passageiros surge como promissora tarefa para observações.

Da Pós-Graduação aos mares: Cristiane de Abreu Elias

Nascida em São Paulo, no bairro do Jabaquara, Cristiane de Abreu Elias teve a sua formação escolar no Colégio Magno e, parte do curso ginasial e colegial, no Colégio "Emilie de Villeneuve".  A sua primeira meta profissional foi a Medicina. Apenas em segunda opção passou a estudar Fisioterapia, área disciplinar na qual encontrou a sua realização pessoal.

Formou-se pela UNESP, em 2003, realizando Pós-Graduação em Fisioterapia desportiva pela UNIFESP, em 2004. Paralelamente, atuou na área dos esportes, sobretudo na do basketball, do volleyball e do atletismo. No departamento de Fisioterapia do Centro Esportivo do Ibirapuera, de 2000 a 2003, teve a oportunidade de travar conhecimento com vários membros da Seleção Brasileira de Atletismo, que ali tinha o seu centro de treinamento.

Após a sua Pós-Graduação, desenvolveu uma intensa atividade profissional. De 2004 a 2008, atuou na qualidade de fisioterapeuta da CIA Atlética, continuando sempre a trabalhar na área do esporte de alta performance. Atingindo os limites de sua resistência física, caiu em profundo esgotamento, adoecendo.

Caminhos imprevistos: de São Paulo a uma vida em viagens

A mudança de seu caminho de vida deu-se a 12 de junho de 2008. Nessa data, que não esquece, entrou em contato com senhora que atuava como recrutadora de uma emprêsa vinculada a cruzeiros marítimos. Nos três meses que se seguiram, tomou conhecimento das possibilidades de uma atuação em navios, um direcionamento de vida em que nunca havia cogitado.

Concorrendo à seleção, a 7 de setembro, data que quase que simbolicamente marcaria o caminho de sua independência, recebeu após duas semanas a resposta positiva. Apenas no último momento informou à sua mãe da partida, com a qual vivia e que, como previa, não viu a sua decisão favoravelmente. Apesar disso, em novembro de 2008 já se encontrava em Londres, onde devia receber preparação em centro de treinamento da emprêsa.

Sentiu aqui o seu primeiro impacto cultural, passando a ter a convicção que o clima influencia a cultura dos habitantes de um país. Foram semanas difíceis, pelo tempo hibernal que encontrou e pelo seu deficiente conhecimento do idioma. A maior parte de seus colegas tinha o inglês como língua materna ou como primeira língua estrangeira. Entre êles, havia escoceses, holandeses, americanos, croatas e búlgaros. Apoio encontrou sobretudo numa portuguesa, que com ela morava, em duas colegas brasileiras e numa chilena.


Do Mediterrâneo ao Brasil, agora em viagem

Logo, porém, teve a oportunidade de partir em viagem. Havia, na época, grande procura de brasileiros, uma vez que os navios que se dirigiam às costas do Brasil deviam apresentar um número de brasileiros correspondente a 2/3 da tripulação. Assim, após um treinamento de apenas duas semanas, passou a atuar em cruzeiro pelo Mediterrâneo. Dessa atividade, guardou boas recordações, uma vez que a maior parte dos passageiros era de origem espanhola e os tripulantes latinos. A seguir, partindo de Barcelona, tomou parte de uma viagem em direção a Santos. Por quatro meses participou da temporada brasileira e que incluia também Buenos Aires, e Punta del Este, além de Itajaí e Santos. Nessas viagens, grande parte dos passageiros era constituída por brasileiros.

Caribe e a esfera norte-americana

Em março de 2009, foi transferida novamente a Londres, onde passou duas semanas, que decorreram agora de forma mais positiva, uma vez que já possuia melhor domínio da língua. A sua próxima atuação deu-se no Caribe. Teve a oportunidade, aqui, de conhecer Los Angeles, New York, Miami, Cartagena de las Indias e, sobretudo o sul do Caribe e o Panamá.  Também tomou parte em viagens que partia de Fort Lauderdale e que levava a Kay West, ás ilhas Caimans, a Cosimel e Belize.

Teve a oportunidade não apenas de aperfeiçoar-se no inglês, mas também em conhecer mais de perto os norte-americanos, sua cultura e hábitos. Sentiu uma grande diferença na atmosfera e no contato pessoal relativamente aos europeus, ganhando a impressão de serem os americanos mais amigáveis, muito mais próximos aos latinos do que os europeus não-latinos, que sente como frios.

Transformações pessoais, novas visões e sentimentos paradoxais

Após o período de trabalho na esfera norte-americana, que durou até fins de agosto de 2009, teve a oportunidade de passar longo período de férias no Brasil. Já aqui, porém, constatou a mudança interior por que passara com a sua experiência nos mares. Apenas após um mês em São Paulo já sentia de novo a necessidade de partir.

Procurando analisar essa sua própria transformação, constata uma mudança que surge quase que paradoxal. Antes da sua aventura no Exterior, era mais rigorosa no direcionamento de sua vida, mais atenta á segurança material no presente e para o futuro. 

Agora, constatava que a vida não podia ser apenas guiada pela necessidade, muitas vezes não real, mas imposta pelo próprio estilo de vida da metrópole.

Passou a ver que a vida não pode ser apenas a de escravização ao trabalho e à procura de segurança material, mas deve ser também lúdica, aberta à aventura dos caminhos, em liberdade.

Sentiu que a expansão cultural que vivenciou, o dominío de idiomas e o conhecimento de outras mentalidades e lugares abriram-lhe os olhos também para a necessidade de dar valor à vida, de não cair novamente na servitude cega ao trabalho e que já a levara ao esgotamento. Perdeu em parte a síndrome da segurança e o mêdo ao risco. Constatou novamente a agitação da vida paulistana, o trânsito contínuo nas ruas, o clima de trabalho que tudo envolve.

Assim, imersa em sentimentos contraditórios, resolveu abandonar por curto prazo São Paulo, dirigindo-se a Salvador, uma vez que admira e aprecia o modo de vida baiano. Ao retornar, já ultrapassado o impacto inicial, teve nova impressão de São Paulo, reaproximando-se de seu meio familiar.

A sua experiência no Exterior também teve consequências na sua família. Assim, a sua irmã mais nova passou a participar de um intercâmbio, vivendo na Austrália. A vida em região distante também marca o destino de sua irmã mais velha, que reside em Epitaciolândia, no Acre.

O Brasil à nova luz

Apesar dos impactos culturais que sentiu, a experiência no Exterior levou-a a ter uma nova imagem do Brasil, singularmente ainda mais positiva do que aquela que anteriormente possuia no próprio país. Constata que o brasileiro, apesar das dificuldades e o fato de ser incomparavelmente mais trabalhador do que muitos europeus, mantém-se alegre, cordial, amigo de festas, de boa índole. Quando vivia em São Paulo, esteve sempre tão imersa no trabalho e tão inserida na vida de luta do quotidiano que não tinha a distância necessária para ver as altas qualidades positivas do brasileiro e sua cultura. Sempre tinha naturalmente sentido profundos elos afetivos pelo país e pela cidade - agora, porém, passou a admirá-los. Parece-lhe surpreendente que, apesar da faina diária e da laboriosidade que transformam a vida de muitos brasileiros em desgastante roda viva, hajam mantido qualidades humanas que constituem pré-condição para uma vida mais digna, marcada pela contemplação e pela liberdade. Espera que essas altas qualidades não se percam com a crescente orientação materialista que por todo o lado se observa.

Entretanto, a mudança que sente estar ocorrendo em si não a deixa fazer planos concretos para um retorno. Ainda pretende, de forma abstrata, retornar e até mesmo viver em São Paulo. Entretanto, com a nova coragem ao risco e ao imprevisto, adquirida com a sua experiência no Exterior, sente-se mais aberta a novidades, a novas possibilidades que possa encontrar. Sente em viagem pelos mares e em viagem pela vida, e que poderia acostumar-se muito bem em várias cidades do mundo, tendo uma especial preferência por Barcelona. Também guarda uma impressão excelente da Austrália.

Vida de tripulantes brasileiros nos navios

Sente, sobretudo, a vida nos navios como sendo muito instigante, apesar da intensidade do trabalho e do exiguo espaço que dispõe. Na nave na qual cruza o Pacífico, tem como colegas na tripulação representantes de várias nações, sobretudo filipinos e indianos. Estes, porém, vivem mais fechados no seu respectivo grupo, cultivando os seus traços culturais, os seus hábitos alimentícios, celebrando festas nacionais e pouco se misturando com tripulantes de outras nacionalidades. O contato entre os brasileiros, em número de quinze, é excelente. Reunem-se sempre que podem e, em fevereiro de 2010, chegaram a organizar uma festa brasileira no navio.

Constatação da imagem unilateral do Brasil

Quanto aos contatos com os passageiros das diferentes nações, Cristiane Elias vê diferenças culturais significativas, ainda que dependentes da idade. Como brasileira, sente-se frequentemente confrontada com a imagem do Brasil que os passageiros trazem de sua respectiva nação. Lamenta que, quando se fala no Brasil, apenas se pense no carnaval do Rio de Janeiro. Apesar do fascínio e da beleza do carnaval carioca, procura transmitir aos estrangeiros a noção da diversidade cultural brasileira, salientando que mesmo o carnaval apresenta diferenças nas várias regiões.


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Indicação bibliográfica para citações e referências:

Bispo, A.A. (Ed.)."Profissionais e tripulantes na história cultural das navegações. Brasileiros em navios que cruzam o Pacífico. Cristiane de Abreu Elias." Revista Brasil-Europa 125/19 (2010:3). www.revista.brasil-europa.eu/125/Brasileiros_no_Pacifico.html

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 125/19 (2010:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
órgão da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2606


©

Brasileiros no Exterior


Profissionais e tripulantes na história cultural das navegações

Brasileiros em navios que cruzam o Pacífico


Cristiane de Abreu Elias



 




  1. Cristiane de Abreu Elias. Fotos: Arquivo A.B.E.

 

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