Revistas e conceitos essencialistas de nacionalidade. Revista BRASIL-EUROPA. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 
Nos estudos dos processos difusivos de idéias e visões no âmbito das relações bi-laterais, no caso Brasil-Alemanha, deve-se dedicar particular atenção ao papel desempenhado pelas revistas. O significado de órgãos períodicos é visto em geral primeiramente na sua qualidade de veículo de notícias e informações. Consideram-se as revistas como fontes históricas, junto a livros e jornais, sobretudo em perspectivas marcadas pela história das mentalidades e por um interesse pela vida do quotidiano. Esquece-se, frequentemente, que as revistas são, de forma particularmente saliente, expressões de uma determinada época e de um contexto cultural, ou seja, devendo ser elas próprias objetos de estudos e análises.

Revista como objeto de estudos teórico-culturais


Segundo a orientação que determina os trabalhos da Academia Brasil-Europa, vinculando o estudo de questões teórico-culturais àquele dos processos difusivos e das condições em que se efetua a produção do saber e a cooperação intelectual, a atenção deve ser dirigida não tanto primordialmente aos fatos que se encontram documentados em revistas bi-laterais, mas sim às próprias revistas, a seus programas, a suas finalidades, a seus contextos históricos, a seus elos políticos, e sobretudo aos grupos que as editaram e às rêdes em que se difundiram. Apenas após os exames do órgão como veículo e seus pressupostos é que se passa a considerar os fatos nele registrados e a sua difusão.

Esse procedimento surge como necessário, uma vez que muitos desses órgãos compreenderam-se como emissários, não apenas como veículos de difusão e informação. Foram concebidos como representantes de um determinado grupo, para o qual a seleção de artigos e de relatos de ocorrências surge como de significado para a representação do país, de um sistema ou de uma orientação política.

Esse enfoque mostra-se tanto mais necessário quando órgãos apresentam-se como oficiais, fazendo questão de indicar vínculos a ministérios ou outras instâncias e órgãos governamentais e quando são distribuídos através de rêdes consulares ou de entidades e fundações dedicadas ao relacionamento internacional.


Emissários de cultura de "essência" nacional


A exigência de considerar-se a própria revista como expressão de uma época ou cultura torna-se ainda maior no caso de épocas ou sistemas totalitários, onde a liberdade de imprensa e expressão é suprimida ou delimitada por determinações de natureza político-ideológica. Essa foi a situação de vários países dos anos 30 e 40, no caso aqui em questão, da Alemanha.


As revistas foram, nessa época, compreendidas explicitamente como mensageiros da cultura alemã, compreendendo-se este último termo não como de cultura da Alemanha, no seu sentido amplo, mas sim como de cultura "essencialmente" alemã.


Devido ao alinhamento dos órgãos periódicos segundo a ideologia do sistema, evitou-se, em meios acadêmicos, durante décadas, levar em consideração tais revistas, não apenas aquelas da Alemanha nacionalsocialista, mas sim também, entre outros países, a de Portugal salazarista. Esse silenciamento levou a que esses órgãos caíssem em parte no esquecimento e que não fossem estudados e nem até mesmo arquivados. Embora representando um procedimento compreensível nas suas intenções para o período posterior à Guerra, traz em si prejuízos para os estudos histórico-culturais da respectiva época.


Sobretudo os pesquisadores que se dedicam a estudos culturais no âmbito das relações internacionais encontram nessas revistas documentos e textos hoje praticamente desconhecidos, de valor informativo e documental, cuja leitura deve ser acompanhada pela consideração do próprio órgão em que se inseriram e do escopo a que serviram.


A consideração das revistas dessa época é além do mais até mesmo prementemente necessária, uma vez que estruturas e mecanismos do processo difusivo podem ter tido continuidade e vigorar de forma pouco refletida ou percebida na atualidade. O silenciamento das ocorrências e dos órgãos dos anos trinta teria aqui consequências prejudiciais, obscurantistas para a análise de procedimentos e de finalidades nem sempre explícitas de revistas do presente.


Organização oficial dos editores de revistas alemãs e Assembléia de 1935

Uma ocorrência histórica deve ser aqui particularmente considerada no intuito de trazer à consciência o significado do alinhamento político-cultural dos órgãos periódicos. Um momento importante nesse desenvolvimento deu-se em 1935, por ocasião da assembléia anual da "Organização dos Editores de Revistas Alemãs do Reich". Essa organização havia sido estruturada por uma Lei da Câmara de Cultura do Reich (Reichkulturkammergesetz). Em reuniões anuais, essa organização deveria - como sociedades em geral - apresentar relatos de suas atividades, no caso realizadas segundo as tarefas determinadas pela referida instância estatal.


Na assembléia de 1935, porém, os trabalhos foram muito além dessas obrigações estatutárias. O evento transformou-se numa manifestação de convicção ideológica e de prestação de fidelidade política. Os editores surgiam como emissários da vida cultural e veículos de transmissão das intenções do Chefe de Estado e da propaganda de suas obras no Estrangeiro.


"A assembléia anual da organização dos editores de revistas alemãs do Reich, de 1935, realizada na sala de mármore do Jardim Zoológico de Berlim, cumpriu primordialmente as obrigações estatutárias de relatar a respeito do trabalho organizativo da instituição e das múltiplas tarefas específicas a ela colocadas no âmbito da lei da Câmara de Cultura do Reich. Para além disso, porém, essa assembléia, na qual tomaram parte ca. de mil editores de revistas, representou uma impressionante manifestação do alto nível na área da publicação periódica alemã e de sua propaganda no país e no Exterior. Nesse contexto, o Ministerialrat Dr. Jahnke, que transmitiu as saudações do Ministério para o Esclarecimento do Povo e de Propaganda e do Departamento de Imprensa do Govêrno do Reich, o Ministro Dr. Goebbels, impedido por outras obrigações de serviço, salientou que o Nacionalsocialismo reconheceu o significado da imprensa periódica, a ela reservando uma posição particularmente saliente no Estado nacionalsocialista. Graças à sua apresentação gráfica de mestria e a seu excelente conteúdo, as revistas alemãs sempre haviam gozado um alto renome no mundo. Hoje, estão convocadas como emissários da vida cultural e da criatividade alemã de forma particular a transmitir as intenções e as obras do Führer às outras nações." ("Die deutschen Zeitschriften - Sendboten deutscher Kultur", Durch alle Welt 24, 1935, 31)


Aumento do significado de periódicos sob o sistema totalitário


Nessa assembléia, salientou-se não apenas o papel propagandístico que deveria ter a revista alemã. Ela deveria fazer propaganda de si própria. Deveria ter ainda mais entrada em todas as esferas das atividades e áreas disciplinares, além de ser ainda mais valorizada como veículo de informação em todos os campos do conhecimento e das atividades.


Compreende-se, aqui, a razão do extraordinário valor que se passou a dar a órgãos periódicos em instituições de ensino e de pesquisa, em particular também em centros de língua e cultura dos países de língua portuguesa.


A revista, pela sua atualidade, correspondia de modo muito mais flexível às transformações políticas do que livros e agia de modo muito mais constante na doutrinação política. Através da revista, o interesse por atualidades, de cunho antes jornalístico, penetrou de forma intensa no meio mais propriamente científico. As diferentes áreas disciplinares uniam-se, através das revistas, a um mesmo espírito, aproximavam-se e igualavam-se quanto à visão do mundo, aos conceitos, ao vocabulário e às finalidades da ideário político. O próprio estilo e a linguagem das revista eram distintos daqueles de livros, e a proximidade com o jornalismo fazia com que os assuntos fossem tratados a partir de uma perspectiva da vida do leitor, ou melhor, como esta deveria ser de acordo com as concepções políticas.


"O Dr. Richter, diretor administrativo da Câmara de Imprensa do Reich, lamentou que a imprensa alemã, ainda que fosse ela própria um instrumento da Propaganda, não soubesse fazer propaganda do seu próprio trabalho. O representante do conselho de reclames da economia alemã, Prof. Dr. Hunke, salientou o valor da revista para a especialização em todos os ramos disciplinares e acentuou especialmente o significado da revista como instrumento do reclame no país e no Exterior. Ainda que o mundo das revistas alemãs seja tão diversificado em forma e em conteúdo, torna-se necessário que seja unido no espírito da visão do mundo, salientou sobretudo Weiß, diretor da organização da Imprensa Alemã do Reich. O diretor de editôra Alfred Hoffmann (Berlim), demonstrou em impressiva conferência que a revista, mesmo que trabalhe de forma profunda uma área específica da vida espiritual e profissional, tem as suas raízes no povo." (loc.cit.)


Poder e auto-consciência de editores. A subjetividade assumida


Um outro ponto que obteve particular consideração naquela assembléia disse respeito ao poder representado pelos órgão periódicos. As dimensões consideráveis do labor editorial e que demonstravam a amplidão de sua difusão na sociedade, deveriam fundamentar uma convicção especial dos próprios editôres, conscientizando-os do poder que exerciam. A auto-consciência dos produtores de revistas deveria assim corresponder á magnitude de sua ação de difusão e propagação.


O editor da revista surgia aqui como um representante do Todo, êle próprio como um líder, cheio de auto-consciência de valor e de importância. Esse orgulho e convicção de si, porém, apenas se justificavam se os editores se colocassem totalmente a serviço dos preceitos determinados pelo Estado, colocando toda a sua ação na exclusão de conteúdos "não-teutos" de seus órgãos. Eram assim, conscientemente subjetivos na seleção dos temas que tratavam e na interpretação de fatos e ocorrências. Essa falta de objetividade não era motivo de vergonha, pelo contrário, mas de orgulho: o da subjetividade que garantia o silenciamento de assuntos "não-teutos" e "não-culturais", ou seja, permitia o fomento exclusivo da própria rêde.


"A edição global de todas as revistas alemãs, inclusive das revistas de oficinas e de distribuição doméstica, das folhas de sociedades e de corporações, pode ser calculada em 120 a 150 milhões. Trata-se de um número gigantesco, que permite que se reconheça a amplidão da influência da revista alemã no todo do povo. Tanto maior pode ser a nossa satisfação pelo fato de o Estado nacionalsocialista ter varrido a possibilidade de que através da imprensa chegue ao povo conteúdos não-teutos (Undeutsches), não-intelectuais, não-culturais e imorais. A obrigação à maior responsabilidade do trabalho editorial e redacional, e do uso incondicional de todas as forças para ainda mais intensificar e fomentar esse trabalho, sob todos os aspectos, caracterizam hoje o alto nível da área alemã de revistas." (loc.cit.)


Revística ou Revistologia como área disciplinar


O aumento da consciência de si por parte dos editores de periódicos, deveria ser acompanhado por um aumento do seu renome junto ao público e a pesquisa. Assim, o próximo passo seria dar à atividade uma aura universitária, acadêmica, elevando a atividade editorial a disciplina de curso superior. A procurada nobilitação profissional não se deu, assim, através da integração de pesquisadores e cientistas devidamente formados e habilitados na direção e configuração desses órgãos, mas sim na titulação acadêmica a posteriori de jornalistas, e na elevação da ação editorial determinada pela ideologia política à matéria de nível superior. Foi nesse contexto, assim, que se defendeu a instituição de uma área disciplinar específica, a da Revística ou Revistologia (Zeitschriftenwesen).


"O diretor da Organização do Reich dos editores alemães de revistas, Willi Bischoff, que no início do evento se ocupara, em exaustivas exposições, com a construção organizativa da entidade e com as últimas determinações da Câmara da Imprensa do Reich, defendeu, com razão, a criação de cátedras de Pesquisa de Revista em escolas superiores alemãs que incluem o Jornalismo. Isso não apenas favoreceria os futuros profissionais, mas também mostraria mais claramente à publicidade o valor do trabalho realizado nas revistas e pelas revistas. Com esse escopo, a organização dos editores de revistas do Reich pedira ao Ministério de Educação do Reich e o Ministério de Propaganda que tomassem a si essa questão e que a concretizasse tão logo quanto possível. A realização do sugerido pode ser esperada para breve, sobretudo devido ao fato de que a organização alemã de pesquisa do jornalismo ter incluido agora o estudo das Revistas como curso principal e obrigatório no currículo do Jornalismo há pouco autorizado pelo Ministro das Ciências do Reich." (loc.cit.)


Revistas como espelhos da "essência nacional"


A assembléia teve o seu ponto alto numa manifestação de lealdade de todos os editores alemães ali reunidos a A. Hitler como Guia e Chanceler do Reich, dirigindo-lhe um telegrama. Nesse telegrama, garantiam que a tarefa primordial da revista alemã era a de ser um "espelho" límpido da "essência alemã" no país e no mundo. Mais uma vez surgia aqui, portanto, o conceito que definia o trabalho jornalístico na área de orientação ideológica: o da "substância" ou "essência" nacional da cultura.


'Mil editôres alemães de Revistas, que hoje se reuniram em Berlim para a sua assembléia anual, lembram em admiração do seu Führer e prometem-lhe fielmente segui-lo. Que a revista alemã sempre atue como um espelho claro da essência alemã em todo o mundo, isso é visto pela imprensa de revistas alemã como a sua tarefa primordial."


Em resposta, chegou o seguinte telegrama da Chancelaria presidial:

"À organização dos editores alemães de Revistas do Reich agradeço pela saudação de fidelidade a mim transmitida telegraficamente, que retribuo da forma mais cordial com os mais sinceros desejos para o seu trabalho. Adolf Hitler." (loc.cit.)


Pontos a serem particularmente considerados


Do relato dessa assembléia pode-se tirar alguns subsídios para a análise de procedimentos de  revistas da época, inclusive daquelas de relevância para os estudos culturais do mundo de língua portuguesa. Sabe-se que o método empregado para a tomada de posse de determinada área disciplinar foi o da criação de grupos através de rêdes criadas de "homem para homem", ou seja, à revelia de estruturas legítimas (Veja artigo sobre a inauguração do Instituto Português-Brasileiro, nesta edição). A revista passou a servir a esse procedimento de alcance e manutenção de poder, uma vez que, com a sua declarada subjetividade, tinha a possibilidade de silenciar os representantes das várias disciplinas devidamente habilitados e promover escritores sem qualificação específica, mas de mesmas concepções políticas ou a elas servindo. Ao mesmo tempo, procedeu-se a uma nobilitação a posteriori dos escritores envolvidos, assim como o de suas atividades. Esse alcance de títulos, porém, apenas servia para selar situações criadas de fato, mantendo-se elos de dependência dos assim graduados. A revista fazia questão de estar vinculada à esfera política, sendo uma questão de prestígio contar, entre os membros das rêdes que as editavam, funcionários de ministérios e outros órgãos governamentais. Orgulhavam-se de ter um cunho oficioso, atuando, assim, como emissárias e agentes.


(...)


(Grupo redatorial sob a direção de A.A.Bispo)



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.



 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 124/10(2010:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
órgão da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos interculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2569




"Revista alemã"
Problemática da revista como mensageira e emissária

Periódicos e visão essencialista de nacionalidade na década de 30



Ciclo "Berlim à luz" - Ano da Ciência 2010. Reflexões após 75 anos da oficialização de centros de estudos portugueses e brasileiros na Alemanha. Retomada de trabalhos de Seminário sobre Estudos Culturais e Política realizado na Universidade de Colonia (2008)
sob a direção de A.A.Bispo

 

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