Pe. Willibrord Heckenbach OSB. Revista BRASIL-EUROPA. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 


Faleceu, a 10 de maio de 2009, Prof. Dr. Willibrord Alfons Heckenbach O.S.B., monge da Abadia Beneditina de Maria Laach, especialista em Canto Gregoriano e responsável, desde 1964, pela vida musical daquele mosteiro, renomado centro sacro-musical da Alemanha.

Cumpre à Academia Brasil-Europa recordar o seu nome, em gratidão pelo muito que fêz por várias décadas pela instituição, também como conselheiro do seu Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS e.V.). Além de ter participado, como conferencista, em eventos da A.B.E., possibilitou a realização de simpósios no seu mosteiro, com solenidades emolduradas por execuções musicais de alto nível qualitativo. Possibilitou, sobretudo, a realização de várias edições do Forum Brasil-Europa da A.B.E., orientando-os em questões filosóficas e teológicas, sobretudo aquelas relativas a interpretações de sentido de expressões culturais de fundamentação religiosa praticadas no Brasil.

Nascido em 1931 na cidade de Trier, ali obteve a sua formação escolar e ginasial, desenvolvendo desde cedo as suas aptidões musicais. Destacando-se como pianista, pensou em seguir a carreira musical. Entretanto, a sua vocação religiosa prevaleceu, e com apenas 20 anos entrou para o mosteiro de Maria Laach. Sem abandonar a prática do piano, que manteve durante toda a sua vida, dedicou-se a partir daí sobretudo a estudos teológicos e à vida monacal. Em 1958, foi consagrado sacerdote.

Paralelamente, deu continuidade a seus estudos musicais, uma vez que a abadia, que já possuía extraordinário renome como centro de estudos e prática do Canto Gregoriano, necessitava, para a continuidade dessa tradição, de um monge devidamente formado e especializado. Assim, em 1964, passou a estudar na Escola Superior de Música de Colonia, ali assistindo, entre outros, cursos de regência, de leitura de partituras e de música sacra. Paralelamente, assistiu a cursos de Musicologia na Universidade. No âmbito do seu doutoramento, desenvolveu trabalho relativo ao Canto Gregoriano no período medieval tardio, considerando os seus elos com a cultura regional (Das Antiphonar von Ahrweiler: Studien am Codex 2 a/b des Pfarrarchivs Ahrweiler (um 1400), Colonia: Arno Volk 1971). Em 1984, foi convidado a ministrar um curso de Canto Gregoriano na Escola Superior de Música, atividade que desempenhou por muitos anos.

A aproximação a temas relacionados com o Brasil e Portugal deu-se a partir de 1975, através de contatos com A.A.Bispo e Maria Augusta Alves Barbosa, então empenhados, no Instituto de Musicologia da Universidade de Colonia, no desenvolvimento europeu da instituição fundada em 1968 e que hoje constitui a Organização Brasil-Europa. Nesses encontros, lembrou-se da tradição que unia a Abadia de Maria Laach ao Brasil, sobretudo através da personalidade de Basilius Ebel O.S.B.. Pediu-se, então ao Dr. Heckenbach que auxiliasse na revivificação dessa tradição.

Com a instalação, em 1977, do Instituto de Estudos Hinológicos e Etnomusicológicos em edifício pertencente ao Instituto Abt von Herwegen, dedicado a pesquisas litúrgicas, e compreendendo o instituto uma seção dedicada à Gregorianística, nas suas relações com os estudos comparativos e etnomusicológicos, nada pareceu mais próximo do que uma cooperação entre o Departamento de Etnomusicologia, conduzido por A.A.Bispo, com o Dr. Heckenbach, que assumia então a direção musical do mosteiro. Desde então, Pe. Dr. Heckenbach tornou-se parceiro de encontros com estudiosos brasileiros que visitavam a Alemanha e participavam de encontros. Desenvolveu-se, assim, trabalho relativo ao Canto Gregoriano no âmbito da discussão relativa a estudos paleográficos e à renovação de práticas interpretativas com Sr. Eleanor F. Dewey, responsável então por questões referentes à Semiologia e aos estudos medievais em geral da A.B.E..

Para além de suas contribuições aos estudos e pesquisas, o Dr. Heckenbach sempre se empenhou no incentivo de músicos e estudantes de música. Além de grupos locais, como o Grupo Coral de Werner Lohner, o Dr. Heckenbach sempre colocou-se à disposição para aconselhar jovens músicos em viagem pela Europa, também vários brasileiros. Transformou a Abadia de Maria Laach, independentemente da prática coral nos ofícios e celebrações litúrgicas, em centro de concertos, sobretudo de órgão, coros e orquestras, tendo organizado acima de 600 apresentações. Em várias oportunidades empenhou-se na execução de obras de compositores brasileiros e portugueses.

Dentre os vários eventos que o Dr., Heckenbach possibilitou e co-orientou, deve-se salientar a sessão realizada no auditório da abadia, em 1989, no âmbito do primeiro colóquio de estudos euro-brasileiros dedicado ao complexo temático "tradições cristãs brasileiras e sincretismo", e que contou com a presença de vários representantes dos estudos culturais do Brasil. Com os seus conhecimentos teológicos e, sobretudo, da línguagem simbólica da mística, Dr. Heckenbach muito contribuiu ao desenvolvimento dos estudos hermenêuticos de expressões culturais a partir de princípios de interpretação adequados e fundamentos científicamente.

Contribuiu, em várias sessões de estudos, ao estudo da linguagem figurada de tratados teológicos e de mística da Idade Média sob o aspecto da aplicação à análise de significado de tradições ainda praticadas em países de formação cultura católica. Assim, para o congresso de abertura do triênio da A.B.E. realizado por motivo dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, em 1999, tomou a si a organização de sessão efetuada no auditório da Abadia de Maria Laach e que contou com a participação de especialistas representantes de instâncias diplomáticas, universitárias e pontifícias. Após a realização, no auditório do Centro de Informações local, de sessão dedicada à imagologia nas expressões culturais de fundamentação religiosa no Brasil, o Dr. Heckenbach dirigiu a sessão que considerava antes a simbologia numerológica e alfabética innerente ao antigo patrimônio judaico-cristão, em particular de correntes místicas.

Com essa sua especialização relativa ao significado de números e de letras, ou seja, matemático e gramatical, o Dr. Heckenbach complementava os esforços teóricos e interpretativos desenvolvidos pela Academia Brasil-Europa e que se orientavam mais por análises de imagens visuais.

A contribuição do Dr. Heckenbach para os 500 anos do Brasil foi publicada sobre o título de "Meditação: Figuras e imagens, números e letras" ("Meditation: Zeichen und Bilder, Zahlen und Buchstaben", A.A.Bispo (ed.), Brasil-Europa 500 anos: Música e Visões, Colonia: A.B.E./I.S.M.P.S. 2000, 360-366. Para além das concepções teóricas que aqui transmite, Dr. Heckenbach deixa transparecer, no seu texto, pensamentos pessoais que podem ser vistos como caracterizadores de sua vida e visões:

"Eis aqui alguns pensamentos relativos a números e letras, no campo de tensão entre a mnemotécnica e o profundo simbolismo. A Ratio pode sorrir, a fantasia pode tentar desenvolver tais relações. Isso é muito mais humano do que o pensamento materialista e funcional que hoje domina, que devide o dia em trabalho e tempo livro, o ciclo do ano em tempo de trabalho e de férias, a semana em dias de trabalho e fim de semana, uma concepção do mundo no qual a música já não tem função no ciclo temporal e vida própria, mas que se encontra à disposição do uso arbitrário, e por isso também não impregna a vida. Nesse mundo da arbitrariedade, perde-se também o valor de vivências tais como a felicidade, a alegria, a realização, sufoca-se pensamentos sobre infelicidades, doença e morte, ofusca-se a visão para o sobrenatural.

Para aquele, porém, que tem como evidentes a natureza e a supra-natureza nas suas relações, esses pensamentos podem abrir uma visão do mundo que o familiarizam com o céu e a terra, o tempo e o espaço, com o ciclo dos dias e das semanas, dos meses e do ano.

Nas celebrações, que se desenvolveram do sentimento religioso de inúmeras gerações, pode-se encontrar essa sensação de terra natal, que abrange céus e terra, Deus, o homem, a grandiosa Criação e o pequeno Eu, que sabe estar a seguro no íntimo desses ciclos. Os hinos litúrgicos do ciclo diário, da semana e dos tempos festivos sempre nos lembram que a natureza e o sobre-natural se relacionam: o despertar pascoal na manhã nos hinos das laudes, o completar a obra dos sete dias nos hinos da véspera, o ciclo da páscoa, que se vincula ao 14 Nisan, ou seja, ao primeiro dia de lua cheia da primavera, o ciclo natalino, que resignifica o dia natalício romano do Sol invictus como o nascer do Sol Verdadeiro.

Notker de S. Gallen, Balbulus, como se designava, nos aproxima desses pensamentos na sua sequência para o Aleluia de Natal "Dies sanctificatus", que desejo apresentar-lhes por fim no texto original e numa tentativa de transcrição. Ela é um exemplo da profundidade teológica das antigas sequências, das quais infelizmente poucas se salvaram na atual liturgia:

Natus ante saecula,
Dei Filius
invisibilis, interminus,
per quem fit machina
caeli et terrae,
maris et in his degentium,
per quem dies
et horae labunt
et se iterum reciprocant,
quem Angeli
in arce poli
voce consona semper canunt,
Hic corpus
assumpserat fragile
sine labe
originalis criminis
de carne Mariae virginis
quo primi parentis culpam
Evaeque lasciviam
tergeret.

Hoc praesens diecula loquitur
praelucida,
adaucta longitudine, quod sol verus
radio sui luminis vetustas mundi
depulerit genitus tenebras.
Nec nox vacat novi sideris luce, quod
magorum oculos terruit scios.
(...)"


A.A.Bispo
com a colaboração de Liane Müller
Fotos: L. Müller

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 124/27 (2010:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
órgão da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos interculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -

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Doc. N° 2586


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In memoriam


Pe. Dr. Willibrord Alfons Heckenbach O.S.B. (1931-2009)

 

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