Alemães no turismo cultural. F. Riemer (anos 30). Revista  BRASIL-EUROPA. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

O interesse por viagens constatado na Alemanha dos anos 30, e que teve tão profunda repercussão na difusão de conhecimentos sobre o Brasil, pode ser considerado na sua inserção em edifícios de concepções e imagens sob o pano de fundo do ideário político da época. (Veja outros artigos nesta revista)

Nem todos os produtos do jornalismo cultural daqueles anos, porém, manifestam explicitamente elos políticos ou a transmissão de idéias ou visões nacionalsocialistas. Com a sua inclusão em revistas de larga divulgação, porém, ao lado de matérias de reclame de eventos e empreendimentos do partido, contribuiam para a configuração de um conjunto transmissor de imagens que vinha de encontro a tendências oficiais.

Um dos motivos que justificavam viagens era o da aproximação entre os alemães e descendentes de alemães de todo o mundo. Os seus modos de vida no estrangeiro deviam ser conhecidos, os cidadãos de nacionalidade alemã deviam ser alinhados à política nacionalsocialista, aqueles de sangue alemão, mas sem a cidadania, precisavam ser aproximados. Todos deveriam ser unidos numa "comunhão de vivências", guiados pela "essência" da nacionalidade.

Compreende-se, assim, o interesse não apenas pelas regiões de antiga imigração, mas sim também pelas colonias alemãs das grandes cidades e das localidades e regiões com elas relacionadas.  Essa era o caso, por exemplo, de cidades serranas e de regiões de paisagens privilegiadas nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Uma delas era a de Itatiaia, procurada por alemães do Rio de Janeiro e por visitantes. Entende-se, assim, que essa região entre São Paulo e Rio de Janeiro haja despertado particular atenção na época.

Um exemplo de textos que contribuiram para difundir essa região na Alemanha é o relato de uma viagem ao Itatia de Friedrich Riemer, publicado na revista "Através de todo o mundo", de 1935 (Friedrich Riemer, "Auf dem Itatiaya", Durch alle Welt 11, 20-21). O texto vinha de encontro também ao interesse que reinava na Alemanha por questões de vias de comunicação e de ferrovias (Veja outros textos nesta revista).

Estação do Norte em São Paulo: "idílio brasileiro"

A reportagem de Riemer apresenta sob diversos aspectos interesse histórico-cultural. Oferece, em primeiro lugar, um documento histórico de situações, edifícios e paisagens que muito se transformaram, desde aquela época. Inclui quatro fotografias tiradas pelo próprio autor.

"Na Estação do Norte, em São Paulo, quando, no dia 11 de fevereiro me encontrava em meio das minhas duas malas cheio de vontade de viajar, veio-me á lembrança a fisionomia das grandes estações européias. A Estação do Norte é a estação paulistana da Estrada de Ferro Central do Brasil, que liga São Paulo ao Rio de Janeiro. Apesar do significado sob o ponto de vista da técnica de transportes, é um idílio brasileiro, sem receio de concorrrência e sem ambições desmedidas com relação a encontrar-se a serviço dos clientes; placas brancas, limpas, mostram aos viajantes da Europa o caminho para o gasto de dinheiro. Aqui vigoram boa vontade, cordialidade e espírito de ajuda, caso algo não dê certo; e dá sempre certo: Paciência! Sempre com calma!" (op.cit.)

Um quadro pitoresco: viagem pela Central do Brasil através do Vale do Paraíba

O tom do relato de viagem de F. Riemer é marcado por uma simpatia para com o modo de vida e os costumes do Brasil. Há aqui a mesma preocupação por uma narração amena, cheia de humor e divertida que se encontra em outros textos de jornalistas alemães da época, e que seguia os preceitos do jornalismo cultural. (Veja artigo a respeito da "Revista alemã", nesta edição). Cria quadros pitorescos, pintando paisagem e a vida quotidiana. A leve ironia que perpassa o texto salienta a boa vontade do observador condenscentende, uma certa superioridade daquele que contempla.

"E assim vejo-me sentado por mais de meio dia no vagão que balança e galopa, na primeira classe, entre crianças pequenas e grandes, e malas, enquanto que passa a paisagem brasileira, bonita, cheia de paz, pelas janelas em parte sem vidro. De nuvens pesadas de temporais, preto-azuis, claros raios de sol iluminam os campos de arroz de leve verde, assim como plantações de café e bananas; sempre bastante ondulado, o terreno, rico, se estende até as montanhas escuras da Serra coberta de florestas, que, na direção do Rio, se eleva de forma cada vez mais ousada da planície e esconde os seus inumeráveis picos e colinas no cinza chuvoso, em fiapos de neblina e na névoa branca das nuvens. O ar é abafado e cheio de pó. Aqui e alí, o trem para em povoados maiores e menores. Gente sobe e desce. Pequenos moleques oferecem, fazendo-se de importante e gritando, bananas, laranjas, peras, mangas e outras frutas, jornais e bilhetes de loteria são colocados sob os nossos narizes, e tudo é divertido e animado. E às duas e meia da tarde, finalmente, chegou para mim a hora da libertação dessa confusão de viagem, alegre, mas bastante fatigante." (op.cit.)

A pousada alemã como instituição: Repouso Itatiaya

O texto de F. Riemer comunica a seus leitores a existência de uma pousada conduzida por alemães na serra de Itatiaia, visitada sobretudo por alemães e seus descendentes residentes no Brasil. A existência do Repouso Itatiaya vinha de encontro às correntes alemãs que preconizavam o retorno a um modo de vida mais próximo à natureza.

"A Serra atinge, ao redor da Estação Barão Homem de Melo, a sua maior altura. A mais elevada altitude, a Itatiaia com os seus 2931 metros é o meu objetivo de excursão. As malas são colocadas sobre a paciente mula do interior do Brasil, o velho Ford, sobrecarregado, e alegremente nos pomos a subir em direção a nosso abrigo. Num vale situado pitorescamente entre montanhas e florestas, um alemão criu aqui uma magnífica pousada para os moradores cansados da cidade grande, o Repouso Itatiaya.

Também aqui em cima, a cerca de 850 metros de altitude, a vegetação é naturalmente típica brasileira, mas o amplo panorama das serras azuis do outro lado alivia a pressão da planície. A casa grande, amiga, está localizada entre árvores frutíferas carregadas em meio de uma área verde, e os rostos morenos e contentes de todos os presentes mostram que aqui em cima, sob palmeiras, que aqui se pode passear ao ar livre, escalar montanhas e cavalgar, sem deixar de se ser castigado, ou melhor presenteado pela natureza." (op.cit.)

Contemplação da natureza e o problema do costume

A instituição dos repousos ou pousadas no Brasil foi, assim, em movimento amplo e diversificado de uma aproximação à vida natural, com as suas implicações relativas a uma condução saudável da vida. Trazia em si a idéia do redescobrimento da contemplação da natureza.

Um ponto central no texto de F. Riemer diz respeito à questão da percepção da beleza natural. Lembra da necessidade de uma constante renovação de uma atitude de eterno descobrir, de contínuo intento de repetir primeiras impressões. O acostumar-se à beleza representaria um grande problema. Com o costume, aquele que contempla perde a fascinação e o entusiasmo das primeiras impressões. Aqui residiria não apenas um problema para o visitante de fora, mas também para aquele que vive no meio ambiente, com graves consequências para a própria natureza. Esta, não mais adequadamente valorizada por aqueles que se acostumaram com a sua beleza, se deteriora gradativamente.

"Aquele que chega recentemente ao Brasil, pelo menos nas regiões civilizadas da costa, fica sempre entusiasmado com a beleza das paisagens que visita. O estrangeiro que aqui já vive há mais tempo, acostuma-se de regra rapidamente a ela, e passa a ver as belezas do país como algo natural. Nenhuma dessas atitudes faz justiça aos fatos. A embriaguez do primeiro entusiasmo é na maior parte dos casos bastante superficial, e o costume obtuso é naturalmente ainda muito menos apto à vivência profunda da paisagem.

Quem, porém, através dos anos, vive de olhos abertos no Brasil e viaja, esse aprende a amar de fato o país pela beleza diversificada de sua natureza. Ele jamais poderá esquecê-lo e, como estrangeiro, permanecerá sempre com saudades silenciosas e fiel para com êle, também e sobretudo se o seu detino o levar a uma outra região do mundo! O Itatiaia é mais próximo do Rio de Janeiro do que de São Paulo. Por essa razão, pode-se aqui encontrar mais visitantes do Rio de Janeiro do que de São Paulo. Em primeiro lugar, alemães e brasileiros." (op.cit.)

Significado da Botânica e da preservação natural para a imagem do Brasil

O relato de F. Riemer salienta as intenções científicas e preservacionistas das autoridades responsáveis pela região do Itatiaia. O seu texto representa um dos mais positivos de todos aqueles que se referiam ao Brasil na Europa. Como poucos, o seu relato transforma-se quase que como um veículo de reclame, transportando uma imagem altamente favorável do Brasil. O trabalho aqui realizado pelas instituições botânicas do Brasil surge como muito mais eficiente para a promoção do país no Exterior do que empreendimentos ministeriais de propaganda cultural da época.

"O meu companheiro e eu passamos vários dias em excursões pequenas pelas montanhas cobertas de florestas. Por trilhas arriscadas alcançamos a cascata de Maromba, cujas névoas brancas caem brilhando sobre as pedras ensolaradas à sombra negra e refrigerante da mata luxuriante. E finalmente iniciamos também uma certa manhã, ao levantar o sol, a nossa subida ao Itatiaya propriamente dito. Sobe-se horas a fio, em serpentinas intermináveis. Ainda que medianamente íngremes, o sol queima, e o chão é uma lama pedregosa, pissada e pegajosa. Costuma-se em geral cavalgar no Itatiaya, mas não conseguimos cavalos, e, assim, andamos per pedes. Devagar, mas continuamente, a floresta se torna mais clara. Cada vez mais se amplia a vista dos altos do caminho sobre o vale, onde ainda aglomerados de nuvens se empurram mutuamente."

A região do Itatiaia encontra-se sob a proteção do Jardim Botânico do Rio de Janeiro; aos pés da montanha fundou-se uma estação biológica que, ao lado de observações científicas, dedica-se também e sobretudo à conservação da grande região de florestas. Durante todo o caminho, até o cume percebe-se o sucesso desses esforços. Ninhos saúdam das árvores de forma colorida e flores da floresta ornamentam o caminho. Vai-se cada vez mais alto sob ruídos jubilosos de pássaros e do murmurar incansável e misterioso de inumeráveis fontes e riachos escondidos no verde das folhagens. Por fim, a floresta se afasta. O caminho se dirige mais diretamente a seu objetivo, íngreme em direção ao cume que ainda se oculta. O chão torna-se mais pedregoso, pedregulhos espalham-se pelo campo, e um vento fresco sopra sobre as encostas de grama e flores. O vale azul-verde jaz nas profundidades, com manchas escuras devido às muitas nuvens, e tudo o que a mão do homem fêz na paisagem parece longínquo e pequeno: povoados, ruas, roças e jardins. Um homem do norte, transplantado da Europa por mão mágica, não poderia imaginar-se no Brasil." (op.cit.)

Proporcionando sensações de descobrimentos: Agulhas Negras

A subida às Agulhas Negras possibilitava ao estrangeiro vivenciar sensações de descobrimento da natureza e de aventuras. Tendo criado imagens a partir sobretudo de uma literatura de viagens de exploradores e descobridores, imbuído de desejos de experimentar sensações desses pioneiros, o visitante entusiasmava-se com a possibilidade que lhe era oferecida em Itatiaia. A subida das montanhas possuia, além do mais, conotações emocionais e vinha de encontro a um espírito do tempo, marcado por intuitos de ascensão, de provas de força de vontade no alcance de alturas, também no sentido figurado do termo.

"Logo achamos também aqui no alto o sítio que costuma acolher a todos os que sobem o Itatiaia. Fomos bem recebidos e nos refortalecemos com um almoço reforçado e abundante: caldo, arroz e feijão, galinha, carne sêca, verduras e café. Quando, após a comida, saímos da cassa para um pequeno passeio, sentimos frio: as névoas que vinham de todos os lados das encostas das montanhas adensavam-se cada vez mais, a luz do sol tornou-se pálida e um vento frio maltratou o nosso corpo acostumado ao sol. Na planície abaixo domina nessa época do ano o verão brasileiro, que queima, com uma temperatura frequentemente de 40 graus Celsius à sombra! Quando então começou a chover, decidimos revigorar-nos aqui dormindo para a subida do cume propriamente dito, a 500 metros mais alto, as Agulhas Negras. Aqui em cima fica-se grato pelas três cobertas pesadas, de lã, uma sôbre a outra.

A manhã seguinte já nos vê em pé antes do nascer do sol. O tempo é bom, apenas lá embaixo, no vale, esprai-se o mar de nuvens branco-cinza até o horizonte. Após o café quente e biscoitos frescos  colocamo-nos a caminho.

O filho da nossa hospedeira, de quinze anos, mostrou-nos o caminho, que aliás é indicado claramente com marcos vermelhos até o mais alto pico da montanha.

Para além de colinas mais baixas cheias de pedras chegamos a um pequeno vale de montanha, de cuja base se eleva o rochedo cheio de rugas e brechas das Agulhas Negras. Apenas em poucos cantos protegidos do vento conseguem aqui viver algumas árvores retorcidas. De resto, o chão preto, úmido, é coberto com um capim alto, rijo, com inumeráveis flores. O silêncio soleno é interrompido aqui e ali pelo rugir à distância de uma tempestade no vale, por um pio de pássaro ou pelo falar de uns poucos boiadeiros que conduzem um pequeno rebanho através do vale ao lugar de pasto. O nosso caminho leva-nos primeiramente a um trecho de uma encosta de pedra moderadamente íngreme e desemboca num caminho cuja transposição é cansativa mas sem maiores problemas. Passam-se assim mesmo ca. de três horas até alcançarmos a plataforma mais elevada. Não permanecemos muito tempo lá no alto, pois já é quase meio-dia, e o céu se escurece novamente.

Após uma última vista a partir desse cume mais alto do Brasil desce-se novamente. Do outro lado das Agulhas Negras levanta-se um grupo de rochas mais baixo, as prateleiras, que, porém, com os seus blocos demasiadamente lisos é muito mais difícil de ser escalado do que as Agulhas. Enquanto o meu acompanhante e um morador do local empreenderam mais essa subida desse grupo de rochas, voltei calmamente e devagar através do vale elevado à nossa pousada. Como o nosso tempo era escasso, tivemos que nos por a caminho após uma comida reforçada e um pequeno descanso. Queríamos alcançar ainda no mesmo dia a nossa estação do vale, o Repouso Itatiaia." (op.cit.)

(...)

(Grupo redatorial sob a direção de A.A.Bispo)


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.




 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 124/13 (2010:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho
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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2572




"Comunhão de vivências" e alemães na história do turismo cultural no Brasil


Friedrich Riemer: No Itatiaia - 75 anos



Ciclo "Berlim à luz" - Ano da Ciência 2010. Reflexões após 75 anos da oficialização de centros de estudos portugueses e brasileiros na Alemanha. Retomada de trabalhos de seminário sobre as relações entre Estudos Culturais e Política realizado na Universidade de Colonia (2008)
sob a direção de A.A.Bispo

 

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