Séga. Revista BRASIL-EUROPA 123. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

Na diversidade étnica e cultural que caracteriza a Ilha Maurício, a dança e a música desempenham importante papel sob o aspecto da identidade cultural e da imagem do país que se emancipou politicamente há relativamente poucos anos.

O Séga é considerada como expressão por excelência da cultura de Maurício, tratada como patrimônio cultural pelos seus habitantes, colocada a serviço da representação e do turismo e vista no Exterior como marca emblemática do país. Desempenha, para a Ilha Maurício, um papel sob muitos aspectos similar àquele do fado para Portugal, do samba (e do choro) para o Brasil, da morna para Cabo Verde, do mandó para Goa e de muitas outras expressões musicais consideradas como características de determinadas nações e regiões.

Já essa situação indica visões e conceituações de cunho placativo, explicáveis em parte por intuitos de afirmação nacional e de criação de retratos no Exterior de fácil apreensão para fins pragmáticos, de projeção individual, de grupos e instituições, de propaganda e comércio. Embora em si um fenômeno apto a ser analisado sob a perspectiva teórico-cultural, o emprêgo de formas e gêneros nesse sentido não corresponde à diversidade e à transformabilidade de expressões culturais. Trata-se de uma redução de complexos culturais, como se esses se cristalizassem em determinadas configurações etno-nacionais típicas. Trata-se, sobretudo, de uma perda da perspectiva histórica. A consideração de processos histórico-culturais, porém, é de particular importância para países marcados por diversidade cultural e até mesmo por uma multiculturalidade derivada de passado colonial e imigratório, como é o caso da Ilha Maurício.

O Séga, ainda que identificada em especial com Maurício, ocorre em outros países e regiões. É popular em La Réunion, nas Seychelles, em Rodrigues, em Chagos, e também conhecida no repertório atual de Madagascar. Em Kenya há conjuntos denominados de Sega-Sega e Sega Matata Band. As dificuldades para o estudo do fenômeno cultural designado como Sega, porém, são muitas. No âmbito de estudos voltados à "World music", constata-se a aplicação do termo a expressões musicais das mais diversas, sendo difícil reconhecer elementos identificadores comuns, sejam êles rítmicos, melódicos, formais, de prática de execução ou outros.

Em apresentações de dança sob essa designação na própria Ilha Maurício, o observador é surpreendido não apenas pela diversidade de expressões musicais mas também pela variedade coreográfica e de trajes, alguns deles sugerindo elos com a África, outros lembrando folclore antilhano de origem ibérica ou mesmo espetáculos de cunho internacional e shows. Os instrumentos, embora apresentados como originais, são das mais variadas procedências, em geral de produção industrial. Não são os instrumentos mencionados nos documentos históricos. Assim, tambores de tronco de árvore do passado são substituídos por membranofones adquiridos em casas comerciais ou mesmo instrumentos de origem indiana.

Singularmente, constata-se, em alguns desses grupos, o intuito de oferecimento de uma amostra do Séga tradicional, "antigo", numa primeira parte das apresentações. Aqui, as suas origens africanas são salientadas musicalmente, na apresentação semi-nua dos participantes e na coreografia. Iniciando-se em geral como uma entoação do cantor, acompanhado por um grupo de instrumentos percussivos, entra em cena uma protagonista, seguida posteriormente por um dansador masculino; de começo com gestos e atitudes reservadas, os protagonistas sugerem uma intensificação gradual do relacionamento emocional e físico, o que tem a sua correspondência na intensificação agógica e dinâmica da música.

O observador não pode deixar de ter a impressão de tratar-se aqui de uma encenação de cunho histórico, uma vez que é precedida muitas vezes por explicações relativas à história do Séga e da própria ilha, em particular da época marcada pela escravidão africana. Levanta-se a questão, naturalmente, se tal demonstração quase que teatral do Séga antigo não é resultado de reconstruções por parte de folcloristas, bailarinos ou organizadores culturais, como se conhece em vários outros países, também no Brasil e no Caribe. Essa impressão torna-se mais forte quando os participantes incluem uma demonstração dos instrumentos empregados, de suas supostas origens e significado, de cunho quase que didático. A segunda parte dessas apresentações, em geral, é dedicada então ao Séga "moderno" e que manifesta relações com as mais diversas expressões da cultura popular internacional.

Sob a ação de tais impressões, o observador procura naturalmente levantar as fontes nas quais se basearam os reconstrutores de tais encenações. Ainda que as fontes documentais sejam poucas e os estudos relativos ao Séga pouco desenvolvidos, surpreende-se em constatar que dessas próprias fontes se depreende a existência, no passado, de um conteúdo teatral ou de encenação nessa expressão cultural. A reconstrução do presente representaria assim uma encenação de encenação, inserindo-se até mesmo numa série complexa de múltiplas encenações. Pertenceria, assim, a uma tradição de mecanismos encenatórios que até mesmo tiraria o caráter de artificialidade das atuais reconstruções.

Uma obra que considera os dados históricos relativos ao Séga foi publicada recentemente na série Mauritiana (Emmanuel Richon, Séga, Témoignages anciens & récents, Chemin du Vieux Moulin, Grand Baie, Ile Maurice: Christian le Comte/Blue Penny Museum, 2009). Na sua introdução, o autor salienta a parca biografia referente ao assunto, salientando, entre os trabalhos mais recentes, os de Jacques K. Lee (The Mauritian Folk Dance, Londres 1985), além de textos de Ti-Frère e Serge Lebrasse.

Por ocasião da exposição Ki Fer Ti Frer? no Blue Penny Museum de Port Louis, conhecido sobretudo por filatélicos por conservar exemplares dos mais antigos sêlos de Maurício, surgiu a idéia de se publicar paralelamente ao evento um livro com referências históricas e atuais sobre o Séga que possibilitasse aos leitores tirar os seus próprios julgamentos a respeito da dança e de seu significado. A escolha do Séga deveria induzir à constatação que essa música, essa dança, essa cultura "autenticamente regional" havia chamado a atenção de numerosos escritores, estrangeiros ou mauricianos. Um folclore que impressionou tantos escritores "mérite en soi de faire réfléchir à l'importance du rôle identitaire de cette musique dans la création de nos nations respectives et par delà, dans notre civilisation créole indian-océanique" (pág. 10)

Quanto ao termo, o autor sugere provir do swahili "sega", com um sentido de arregaçar as mangas, um gesto que seria constatável na atitude da mulher que dança. Coloca a hipótese de o Séga ser originário do século XVIII, pois somente assim poder-se-ia explicar a existência do mesmo termo em todos os creolos. O acento dado á sexualização do Séga e a crítica de sua lascividade seriam produto do século XIX, do período vitoriano com a sua severa moral e seus preconceitos (pág. 12)

Seguindo o intuito do autor, os textos históricos oferecidos, publicados sem comentários, foram considerados sob o pano de fundo das discussões anteriores relativas a uma História da Música de orientação teórico-cultural em contextos globais. Nesse sentido, os dados foram examinados não apenas na sua contextualização na esfera do Índico, mas sim, de forma muito mais ampla, em processos histórico-culturais que incluem o Brasil. Essa leitura proporciona não apenas melhores elucidações dos registros históricos referentes a expressões regionais de Maurício. É também de utilidade para os estudos brasileiros, uma vez que proporciona informações a respeito de expressões similares constatáveis no Brasil provenientes de autores pouco ou não considerados pelos pesquisadores de língua portuguesa. Ao mesmo tempo, além de contribuir à solução de enigmas, salienta o significado de uma pesquisa musical e coreológica de orientação teórico-cultural em contextos supra-nacionais e supra-regionais.

J.-H. Bernardin de Saint-Pierre (1737-1814): O arco musical e "tam-tam" em Maurício

Em primeiro lugar, considera-se na documentação de interesse histórico-musical um autor que assume particular significado para Maurício e sua projeção internacional: Jacques-Henri Bernardin de Saint Pierre (1737-1814). A sua breve referência adquire relevância para os estudos músico-culturais em contextos globais por inserir a música e a dança da ilha em contexto da história das idéias marcado por concepções de reconscientização da natureza e do amor em tradição rousseauniana, e que influenciaram também a imagem do Brasil.

A obra Voyage à l'Ile de France, de Saint-Pierre, publicada em Paris, em 1772, registra o grande entusiasmo dos habitantes pela música e pela dança. "Eles gostam apaixonadamente da dança e da música. O seu instrumento é o tam-tam; é uma espécie de bastão ao qual é adaptada uma cabaça. Deles tiram uma espécie de harmonia doce, ao qual acompanham os cantos que compõem: o amor é sempre tema. As mulheres jovens dançam ao canto de seus amantes; os espectadores batem o compasso e aplaudem." (cit. pág. 15)

Desse registro, constata-se que o instrumento conhecido no Brasil em geral como berimbau era largamente difundido nas Ilhas Maurício. O nome que o autor comunica, tam-tam, poderia ser interpretado como indício de ser o instrumento percutido e que produzir dois tons. Trata-se, assim, do arco musical conhecido de várias regiões africanas, também na África Oriental.

O registro de Bernardin de Saint-Pierre indica assim o significado da prática musical dos escravos africanos na lúdica da Ilha de França de fins do século XVIII. O conteúdo dos cantos dizia respeito ao amor e, como menciona, os participantes eram ou desempenhavam o papel de amantes, sugerindo assim, com essa observação, o cunho sensual dos atos encenados e da géstica. A participação entusiástica dos espectadores indica a natureza lúdica do dança.

O termo tam-tam parece, além do mais, resultar antes de uma denominação indiferenciada, antes aplicável a membranofones utilizados juntamente com o arco musical, não explicitamente citados. Sugere, assim uma natureza percussiva do todo, no qual o bater surge como fator determinante, também no sentido metafórico e simbólico do termo.

Diferenciações de expressões culturais segundo grupos étnicos e sociais

Referências sobre expressões culturais de Maurício tornaram-se conhecidas na Europa Central de língua alemã sobretudo pela tradução do relato de viagem de J. G. Milbert (J.G. Milbert, Voyage Pittoresque à l'Ile-de-France, au Cap de Bonne Espérance et à l'Ile de Ténériffe, Paris 1812), realizada por Joh. Georg Ludolph Blumhof, de Giessen, publicada em Frankfurt, em 1825 (Milbert's Reise nach Isle-de-France, dem Vorgebirge der guten Hofnung und der Insel Teneriffe). (Veja artigo nesta edição)

"Alguns atores atam guizos nas pernas, ou pequenos pedaços de madeira ou tubos de bambu; pulando, os agitam, e acham muito prazer nesse ruído.

O seu instrumento é um tambor feito de um tronco de árvore ôca, ou também um velho barril sobre o qual esticam uma pele de cabra. Seguram o tambor entre as suas pernas e os batem com os punhos. Certos músicos possuem como violino um instrumento muito similar àquele de nossos momos que percorrem as festas de mercado. É tão simplesmente um fio de metal esticado sobre um longo bastão com uma cabaça que faz o papel de cavalete; o músico bate sobre a corda com um bastãozinho de madeira muito dura, ou com um pequeno triângulo de ferro. Esse som ácido e discordante marca a cadência, e lhes agrada muito; os assistentes, por sua vez, batem o compasso batendo as mãos e dando gritos de alegria.

Os dansantes batem violentamente os calcanhares contra a terra e dos punhos contra as suas ancas; aproximam-se uns dos outros, se batem, recuam girando e agitam os seus corpos de uma maneiro muito lúbrica. Frequentemente cantam nas suas festas louvações de seu patrão e de sua família, sobretudo quando possuem a generosidade de fazer distribuir um pequeno copo de arak. (...) Fazem gestos de uma lascividade extrema e que não podem deixar nenhuma dúvida. Executam de preferência as danças mais libertinas. A sua paixão por mulheres é extrema..." (op.cit. 15-16)

O autor oferece, nesses registros, uma descrição do arco musical similar àquela de Bernardin de Saint-Pierre, porém mais pormenorizada, correspondendo também aqui ao conhecido berimbau do Brasil. Menciona que os sons produzidos são "discordantes". Entretanto, insere o instrumento mais claramente no contexto da dança.

A sua descrição faz lembrar o batuque praticado no Brasil, inclusive com a menção da "umbigada". Entretanto, o arco musical surge aqui em contexto não mais conhecido no Brasil, uma vez que hoje surge mais como instrumento da capoeira e não do batuque. Também na tradição brasileira do batuque conhece-se o atabaque feito de tronco escavado (em geral a fogo), o tambu, colocado entre as pernas ou, no instrumento maior, percutido com o tocador sobre êle sentado. Entretanto, a descrição sugere já transformações culturais: fala da substituição de troncos de árvore por barrís vazios.

A menção anterior do uso de guizos nos pés por parte de atores pode ser vista como testemunho da prática de folguedos de origem européia na ilha. O fato de reconhecer uma similaridade do arco musical com o instrumento utilizado por momos nas festas camponesas da França levanta questões e sugere a inserção de práticas de origem ou conotação africana num repertório lúdico relacionado com concepções simbólico-antropológicas européias.

A possibilidade de reinterpretação de instrumentos, danças e gestos segundo imagens do homem no seu estado corpóreo ou sensual da tipologia do "homem velho" das tradições lúdicas cristãs em determinadas ocasiões do ano, sobretudo em festas do Natal, de Páscoa e de São João pode elucidar a permanência de instrumentos e práticas, ainda que transformadas, de períodos anteriores à cristianização de escravos trazidos da África. Permite também compreender a lógica do uso de outros materiais na confecção de instrumentos ou mesmo de sua substituição.

Sentido da dança representativa do ato sexual. Jules-Sébastien-César Dumont d'Urville (1790-1842)

Outro testemunho da primeira metade do século XIX, o de Dumont d'Urville (1790-1842) (Voyage de la Corvette L'Astrolabe 1826-1829, Paris 1832), além de oferecer novos dados, permite corroborar essa interpretação. O autor iniciou a sua descrição salientando que a atmosfera de Port Louis se transformava à noite. Os trabalhadores negros tinham cessado com o seu canto monótono. Uns, agrupados em círculo nos cantos das ruas, terminavam o seu jantar frugal de milho ou mandioca, outros se comprimiam á porta de vendas de aguardente para tomar um trago no balcão. O arak era o rum dos negros; era obtido também da fermentação da cana de açúcar.

A importância do relato de d'Urville reside no fato de transmitir a informação por êle ouvida de que a dança que descreve seria proveniente de Moçambique.  Foi executada num sábado à noite por um bando de escravos agrupados em círculo num dos cantos do Campo de Marte, grande área aberta da cidade, e assistida por africanos que trabalhavam no porto.

"A festa começa. Elevado sobre uma espécie de montinho de terra, um velho cafre, de cabelos brancos, de olhos sanguinolentos, coloca entre as suas pernas uma espécie de tambor, lamlam, sobre o qual toca com os seus punhos. Perto dele, um segundo músico coloca em jogo uma singular harmonica, composta de um simples fio de arame estendido sobre um bastão, dele tirando sons desagradáveis com um bastão resistente. Ao mesmo tempo, cinco ou seis vozes entoam um canto africano doce, lacrimoso e melancólico.

À chamada dessa orquestra, um negro e uma negra, semi-nús, se precipitam. Os seus primeiros passos foram sem caráter; aproximam-se um do outro, molemente, com despreocupação; depois se afastam piruetando-se sobre si mesmo... Mas, pouco a pouco, como se um magnetismo gradual agisse sobre os seus sentidos, as suas faces ternas e murchas tornam-se expressivas e caracterizadas. É, agora, a primeira fase de uma paixão: a languidez nos traços, o gesto tímido e insinuante, a pose ainda casta e amaneirada; depois, quando o encanto agiu, todo esse pudor se esvai; a atitude se torna menos decente, os movimentos mais lascivos, as poses mais licenciosas. A música seguia essa progressão. No último paroxismo, quando o casal dansador se aproxima do ponto no qual os joelhos batem um contra o outro, e que as respirações se confundem, perpassou nessa multidão de escravos uma energia convulsiva, com batidas de pés, gritos e contorsões. O contágio de posturas havia ganho os espectadores: as saturnais dos antigos haviam revivido." (op.cit. 17-18)

A expressiva descrição de d'Urville descreve a dança moçambicana que culmina com a batida de joelhos como uma encenação da conquista amorosa, das transformações de sentimentos, expressões posturas no decorrer de seu desenvolvimento até atingir o ato sexual estilizado. Uma leitura tão elucidativa e coerente de um "batuque" não se conhece da literatura mais antiga brasileira. O próprio nome batuque ganha, nesse contexto, assim como o uso dos instrumentos de percussão, possibilidades de interpretação de sentido.

O Tschiéga e as "pernadas" na Estatística de Marie Claude Antoine Marrier, Baron d'Unienville (1766-1831)

Mais um testemunho histórico da primeira metade do século XIX considerado, as estatísticas da Ilha Maurício e suas dependências, do Barão d'Unienville, propicia conhecimentos elucidativos de expressões músico-culturais no seu desenvolvimento respectivo no Índico e no Brasil. (Baron D'Unienville, Statistiques de l'Ile Maurice et ses Dependances, Paris 1838).

Segundo o autor, os crioulos situavam-se em situação social mais elevada na diversificada população formada por indianos, moçambicanos e aqueles provenientes do Madagascar. Os criolos preferiam os cantos e as danças dos europeus. De todas as danças das nações africanas, não empregavam outra que aquela muito lasciva conhecida sob o nome de Tschiéga, e mesmo esta dançavam apenas ocasionalmente e como forma de divertimento extraordinário e passageiro. Em todas as suas reuniões, dançavam as contradanças e as valsas, ao som do violino, instrumento que muitos deles tocavam muito passavelmente como ménéstriers, ou seja, como músicos de festas campôneas.

Tudo, na música e na dança do Moçambique exprimia a liberdade e a força de grotescas pernadas. Movimentos de uma extraordinária leveza e de uma lascividade mais ou menos escandalosa constituiam as suas danças, que não cessavam a não ser por excesso de fadiga. Possuiam ouvidos extremamente aguçados e seus cantos, acompanhados por um bombre, "uma espécie de guitarra" a uma só corda, tensa por um arco amarrado a uma cabaça vazia, e de um tam-tam, espécie de tambor percutido com as mãos, eram de uma cadência perfeita e muito harmoniosos.

Os moçambiques, homens e mulheres, fariam pouco se não guiados por cantos, nos quais as palavras eram compostas na hora, ou seja, improvisadas, sobre assunto que os ocupava, ou aquele proposto pelo mestre da música, ao qual todos respondiam em coro.

As noites do sábado ao domingo seriam particularmente empregadas pelos escravos para a dança ao ar livre ou na casa de um comandante ou chefe de oficina. Cada casta se reunia separadamente. Os creolos, na casa daquele que havia preparado o músico de festa e a refeição; os moçambiques, de preferência ao ar livre. As danças destes eram acompanhadas por batidas de mãos e frequentemente interrompidas por gritos de alegria, a qual não se poderia fazer uma idéia sem os tê-los ouvido.

Na descrição do Baron D'Unienville, tem-se assim referências sobre a função da música nas diferentes esferas sociais e étnicas da Ilha Maurício, o que até mesmo denomina de "castas".

O autor distingue claramente a esfera dos criolos, dos habitantes de origem européia e mestiços, na qual testemunha o cultivo de formas de dança européias da época mais recente. Oferece, assim, um importante testemunho da música criola do Índico na primeira metade do século XIX, marcada pela propagação da quadrilha, da valsa e da polca.

De particular significado é, porém, a sua menção de que os criolos também utilizavam-se de uma forma de dança dos africanos, apenas de uma e em ocasiões determinadas. Nessa esfera social mais privilegiada, consciente de seus elos com a Europa, utilizava-se justamente a expressão cultural mais sensual representativa da vida dos trabalhadores africanos, o Tschiéga.

Essa informação indica, assim, que o Tschiéga surgia aqui não como dança praticada por escravos, mas sim como dança de conotação africana cultivada por criolos. Uma tal recepção poderia ser explicada por uma tendência de imitação do que seria considerado de grotesco e rústico no contexto de concepções simbólico-antropológicas relacionadas com determinadas épocas do ciclo das festas religiosas cristãs.

O emprêgo assim de formas de dança, música e instrumentos do "povo" nas práticas culturais de círculos sociais mais privilegiados obedecia, nessa época, a mecanismos antropológico-culturais e não tinha nada a ver com intuitos de formação de uma cultura nacional, como muitos vezes tem-se a tendência de considerar de forma excessivamente indiferenciada - e mesmo ideológico-nacionalista - no Brasil.

Representaria até mesmo uma expressão imagológica de atitude pouco respeitosa e preconceituosa relativamente ao desenvolvimento interior dos africanos.

Tratar-se-ia aqui, portanto, não de assimilação ou de um emprêgo respeitoso de elemento cultural africano na prática social de salão, mas sim de seu uso como sinal diferenciador no âmbito do processo performativo de identidades de brancos nascidos no país e mestiços.

D'Unienville não apenas menciona o "berimbau" entre os moçambicanos, mas também o seu uso em práticas caracterizadas por jogo de pernas, o que surge naturalmente familiar aos brasileiros, que aqui se lembram da capoeira.

Salienta, nos movimentos, extraordinária leveza, força e liberdade. Mesmo assim, qualificando tais expressões como grotescas, transmite certamente ponto de vista de brancos ou criolos.

Para o arco musical, registra o termo bombre, que pode ser visto como derivado da designação européia de um instrumento conhecido de expressões culturais tradicionais de antigas origens e vinculadas ao complexo imagológico das concepções antropológicas.

Digno de nota é que o autor, no seu texto, registra a expressão hoje conhecida como sega na forma como a ouviu, ou seja Tschiéga. Esse registro sugere uma outra possibilidade de interpretação da origem de um termo que ainda surge como enigmática e que hoje é de particular significado no complexo cultural do Índico.

Tratando-se de uma expressão de prática cultural de origem ou conotação moçambicana, de africanos já cristianizados e marcados por processos culturais resultantes do contato com os portugueses já de séculos, justifica-se a hipótese de ter-se aqui uma expressão derivada do verbo português chegar, ou seja: Chega!

Como descrito nos textos já mencionados, as reuniões dos moçambicanos em Maurício eram marcadas pela apelação aos assistentes e participantes. Essas apelações poderiam ser no sentido de que se juntassem e se deixassem envolver com a dança e a música, assim como como convite à mulher a que chegasse ao homem, ou mesmo ao chegar no sentido de alcance do ápice do ato sexual simbolizado. No Brasil, conhecia-se o termo "Chegaí" para a designação de dança, testemunhada por Gregório de Matos Guerra em versos ("A um Capitão", Obras V, 1929, p. 325, cit. Mário de Andrade, Dicionário Musical Brasileiro, coord. O. Alvarenga e F. C. Toni, Belo Horizonte/Brasília/São Paulo 1989, 130-131)

Observações de Jacques Étienne Victor Arago (1790-1854)

As referências relativas a práticas musicais de Maurício nas recordações da viagem ao redor do mundo de M. J. Arago assumem particular significado para os estudos mauriciano-brasileiros pelo fato de o autor também ter visitado o Brasil, falecendo no Rio de Janeiro. Arago vivenciou jogos e danças de trabalhadores em galpão dos franceses Rondeaux, Piston e Monneron, proprietários de nada menos de 300 africanos.

A festa teve lugar num sábado, dia em que recebiam salário pela semana e quando se alegravam pelo fato de ser véspera de domingo, dia de repouso. Seria indiscritível, para o autor, a atmosfera criada pela presença de uma multidão de homens, mulheres, crianças e idosos, que se comprimiam no espaço. Compara, singularmente, esse fenômeno de procura de proximidade humana, de gosto do indivíduo de se integrar na massa com aquela dos parisienses:

"Eh bon Dieu! ne sommes-nous pas un peu sauvages aussi dans notre superbe capitale, où nous paraissons souvent prendre plaisir à nous parquer dans une allée poudreuse, quand nous pouvons fouler à côté un frais gazon et respirer un air pur et libre!..." (op.cit. 23)

Essas reuniões em massa sugeriam segundo Victor Arago as mais diversas interpretações ao observador europeu. Os africanos poderiam fazê-lo para recordar de seus países de origem, da liberdade perdida, em preparação de revoltas e de massacre geral de seus patrões, ou mesmo como oração a Deus, o árbitro de todas as coisas. Haveria porém expressões ardentes de alegria, olhos que lançavam chamas, braços que se exprimiam convulsamente como prelúdio de um ato que exprimia por excelência a alegria.

Após um sinal, o autor presenciou a formação de um amplo círculo formado por homens e mulheres, com as crianças à frente. Essas deveriam estar em condições de dar perpetuidade à memória cultural. Estabelecia-se um repentino silêncio e ouvia-se então uma melodia, singular, áspera mas harmoniosa, fraseada, com compasso, cadência, que organizava o caos e a desordem. A música caracterizava-se por um crescendo, abandonando o seu teor inicial. Já não era a voz que desempenhava um papel, mas esse também era compartido pela fisionomia e pelos gestos, pelos braços que gesticulavam, pelos braços que tremiam e pelos pés que batiam o chão como se fervessem.

Essa segunda estação ou fase da dança tinha a sua duração medida segundo o grau de temperatura da atmosfera real. Se o sol tivesse sido forte, se o trabalho tivesse sido árduo, seria uma passagem curta no todo.  A seguir, uma mulher se lançava na roda, girando e agitando o braço, curvando-se e se levantado. Passa em revista os assistentes, lançando sobre uma das presentes o seu delírio frenético. Um homem se atirava então à roda, colocando-se em atitude vitoriosa em face da mulher, e os cantos dos demais protagonistas transformavam-se em gritos ferozes.

Batia-se então nos flancos, sacudia-se a cabeça, mostravam-se os dentes. Para o observador, o quadro lembrava uma malta de lobos caindo sobre um rebanho sem defesa.  Entretanto, tudo era apenas expressão de alegria. Dois homens entravam então em cena, e todos os demais teriam a sua vez. (op. cit. 25-26)

Significado para estudos interculturais

Esses testemunhos do passado comprovam o significado de instrumentos que já não mais podem ser observados nas formas atuais do Séga. O arco musical, não mais existente, surge como instrumento musical de importância, e o conjunto dos instrumentos de percussão, sobretudo o uso de troncos de árvore escavados a fogo pode ser reconhecido apenas de forma longínqua nos membranofones utilizados na atualidade.

A cooperação de estudiosos do Maurício e do Brasil, relacionando os estudos do Batuque com o que se conhece do passado do Séga pode trazer contribuições elucidativas para ambos os lados. Nas formas atuais da dança e da géstica pode-se reconhecer, de forma longínqua, e conhecendo-se os testemunhos documentais, significados que parecem ser intrínsecos a um enrêdo que manifesta concepções antropológicas e que teria sido utilizado no processo de transformação cultural.

É um fato digno de atenção teórico-cultural o significado concedido a uma expressão remontante a um passado colonial remoto, considerando-se a transformação cultural e de identidade por que passa Maurício. Seria o caso de examinar se a função performativa da expressão cultural no passado pode ganhar nova vigência sob circunstâncias totalmente diversas resultantes do aumento da população indiana no país.

(...)

A.A.Bispo


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a utilizar-se de designações similares.

 





  1. Fotos H. Hülskath

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 123/7 (2010:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho científico
órgão de
Brasil-Europa: Organização de estudos teóricos de processos interculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
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Doc. N° 2541


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Presença e mudanças de expressões referentes ao passado colonial: Séga

Retomada de debates relativos a relações Maurício/Brasil do Colóquio Internacional de Estudos Interculturais da Academia Brasil-Europa/ISMPS/IBEM
(São Paulo e Rio de Janeiro 2004),
em sequência a seminários de
World Music e de História da Música de orientação teórico cultural em contextos globais das universidades de Bonn de Colonia. 
Ciclo de estudos na Ilha Maurício, 2009
sob a direção de A.A.Bispo

 

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