MAURÍCIO. Revista BRASIL-EUROPA 123. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 
A presente edição inclui trabalhos desenvolvidos em seminários, conferências, aulas e ciclos de estudos da Academia Brasil-Europa realizados em cooperação com universidades da Europa e do Brasil e que foram agora reestudados e rediscutidos no contexto de ciclo de estudos levado a efeito nas ilhas Maurício, em novembro e dezembro de 2009.

Com esses estudos na região, concretizou-se, após cinco anos, decisão tomada na sessão dedicada às relações culturais entre Maurício e o Brasil no Colóquio Internacional de Estudos Interculturais realizado em São Paulo, em 2004, em cooperação com o Centro Cultural São Paulo e com a Universidade de Bonn, Alemanha. Nessa ocasião, a pesquisadora mauriciana Indira Busse salientou o significado de uma consideração de ambos os países nos estudos culturais, as suas dimensões e, sobretudo, a necessidade de intercâmbio e de realização de sessões de estudo in loco nos diferentes contextos geográfico-culturais envolvidos.

As reflexões encetadas em Maurício puderam basear-se em trabalhos desenvolvidos desde então em outras regiões e em outros contextos internacionais relacionados com o Índico. Em particular, deu-se sequência aos estudos desenvolvidos na Índia, em 2007, retomando várias das questões euro-indianas então discutidas e sobre as quais esta revista forneceu relatos na edição que abriu o ano de 2008. (Veja número 111 (2008:1) Os trabalhos inseriram-se sobretudo no âmbito do Programa Atlântico-Pacífico da Academia Brasil-Europa, dedicado à atualização dos estudos culturais transatlânticos, e cuja fase atual está sendo marcada pela realização de ciclos culturais em diversos países, em particular no contexto das ilhas atlânticas e do Norte da África (100 (2006:2), da América Central (121 (2009:5 ), 118(2009:2), do Sul (112 (2008:2), 113(2008:3) e do Norte (93 (2005:1), assim como na Austrália e Nova Zelândia (número 120 (2009:4)).

Os trabalhos que focalizaram os estudos interculturais relacionados com o Índico a partir de Maurício foram guiados pelo escopo da Academia Brasil-Europa de atualização de perspectivas como exigência das novas situações criadas pela União Européia. Esse processo interno europeu tem repercussões nos estudos de processos interculturais e de estudos culturais nas relações internacionais uma vez que traz à consciência a necessidade de superação de visões por demais determinadas por um desenvolvimento histórico do pensamento e do intercâmbio cultural-científico de natureza bi-lateral entre as várias nações.

Os trabalhos em Maurício foram desenvolvidos à luz da discussão de questões relacionadas com concepções antropológicas e de Estado sob especial consideração da Estética e da Ética motivadas pelas comemorações do Ano Schiller (Veja textos no número anterior desta revista e na presente edição). Sob o pano de fundo desses debates e sob a perspectiva dessas concepções simbólico-antropológicas dirigiu-se a atenção a questões de imagens no relacionamento entre as culturas de Maurício, cotejando-as com fatos e processos estudados no Brasil e analisando-as nas suas repercussões para as reflexões teóricas em contextos globais. Esses estudos foram voltados sobretudo à Natureza nas suas relações com processos culturais e com a Ética, escopo que faz parte do Programa "Cultura/Natureza" da Academia Brasil-Europa e que se insere na sua tradição relacionada com uma Ética de respeito à vida segundo correntes de pensamento marcadas por Albert Schweitzer (1875-1965) (Veja 120 (2009:4)).

Nesse sentido, estudos mauriciano-brasileiros surgem como particularmente promissores. Maurício e Brasil, ambos situados no Hemisfério Sul, marcados por natureza pródiga, por diversificada flora e fauna, tiveram as suas imagens durante séculos marcadas pela exuberância da vida vegetal e animal, em ambos os casos com conotações paradisíacas. Entre ambos os países houve, além do mais, no decorrer dos últimos séculos, singular intercâmbio de espécimes vegetais. Assim, o mauriciano no Brasil e o brasileiro em Maurício são surpreendidos por uma certa similaridade paisagística, de luz e de cor, e que parece ser mais acentuada do que aquela com regiões tropicais de outras latitudes. Essa sensação de familiaridade com a paisagem, que não é sentida, por exemplo, na Austrália e Oceânia, oferece uma base comum que aproxima pesquisadores de ambos os países. A partir desta sensação de estar em ambiente natural conhecido, que não causa estranheza, o observador tem condições de constatar similaridades e sobretudo diferenças na configuração que o homem deu à natureza em ambos os contextos. A sua atenção é dirigida assim de forma muito mais crítica ao uso que foi feito do patrimônio natural nos dois casos e ás suas relações com as respectivas situações sócio-culturais.

Como foi levantado pela conferencista mauriciana no Colóquio de São Paulo, em 2004, o observador de Maurício impressiona-se não tanto com a paisagem, para êle familiar, mas sim com os contrastes sociais mais acentuados no Brasil, o que se manifesta também na existência de esferas privilegiadas da sociedade em muito maiores dimensões e de repercussões nas instituições culturais e científicas. Pode-se, em contraposição, dizer que o observador brasileiro, em Maurício, impressiona-se em constatar que a natureza que lhe parece tão conhecida se encontra reduzida a áreas relativamente pequenas, que, apesar de o país continuar a ser decantado no Exterior como paraíso natural, apresenta-se em avançado estado de delapidação do seu patrimônio natural. Tal situação pode ser explicada pelas dimensões relativamente pequenas da ilha, comparativamente ao Brasil.

O cotejo, assim, dá oportunidade para o aguçamento da sensibilidade quanto à ação destrutiva do homem em poucos séculos de história e suas consequências para o presente e o futuro, fatos menos sentidos no Brasil devido à sua extensão territorial. Parece ser significativo que Maurício possui, como uma de suas principais imagens emblemáticas, um animal extinto no século XVII no decorrer dos contatos com os europeus, reproduzido hoje em figuras e bonecos de expressões sentimentalmente carinhosas, um fato que constantemente relembra, de forma nostálgica e triste, a tragédia da extinção de espécies ocorrida nos poucos séculos da história mais recente. Esse animal-emblema de Maurício poderia tornar-se, assim, um sinal para todos os países envolvidos nesse desenvolvimento bárbaro da história do homem e um apelo para a mudança de atitudes e de critérios de pensamento relacionados com concepções de cultura.

Sob a perspectiva de contextos determinados por processos históricos, Maurício e o Brasil apresentam elos muito mais estreitos do que inicialmente poder-se-ia supor. Em primeiro lugar, pertencem, ambos, a uma história comum da expansão européia à época dos Descobrimentos. Também Maurício, parte das ilhas Mascarenhas, denominada segundo Dom Pedro de Mascarenhas, a cuja área nacional pertence hoje também a ilha Rodrigues e outras, tem o início de sua história moderna marcado pela ação dos portugueses. Se Maurício não é considerado hoje no âmbito dos estudos dedicados aos países de língua lusófona, pelo fato de ali não se falar o português, mantendo posições de simples observação, situação explicável pelo desenvolvimento histórico, isso não significa que essa inserção inicial no movimento expansionista português possa e deva ser menosprezada.

Etapa seguinte quanto aos paralelos históricos com o Brasil é aquela representada presença holandesa nessas ilhas a partir de 1598, marcada sobretudo pela economia açucareira. A própria designação do país da época e da atualidade, lembrando Maurício de Nassau (1567-1625, nascido em Dillenburg - não confundir com J. Maurício de Nassau-Siegen 1604-1679), manifesta a ponte histórico-cultural com os Países Baixos e explica a similaridade de regiões de Maurício com várias zonas da cultura do açúcar do Brasil, em particular do Nordeste. Os holandêses ali estabeleceram uma povoação como porto da Companhia Holandesa das Índias Orientais.

Os elos com o mundo da presença portuguesa, porém, mantiveram-se sobretudo através da vinda de mão de obra escrava da África, em particular de Moçambique. Aqui reside um outro fator elucidativo de similaridades em expressões culturais.

A fase seguinte, a da presença francesa, é aquela que marcou de forma duradoura a formação cultural da ilha. Se os franceses haviam procurado criar a França Antártica no Rio de Janeiro, e estabelecer-se no Maranhão, conseguiram fixar-se em Bourbon (hoje La Réunion) e por muitas décadas na Île de France, hoje Maurício.

O desenvolvimento colonial da ilha foi primordialmente devido aos franceses. O seu direcionamento, porém, voltou-se à India, onde a França procurava ampliar a sua esfera de ação, sobretudo em Madras. Estudos globais das relações franco-inglêsas, portanto, não podem deixar de considerar a Île de France. Não apenas à época do Ancien Régime, mas também sob Napoleão a Île de France desempenhou importante papel na ação da França no Índico. Significativamente, Port Louis passou a denominar-se de Port Napoléon.

Também esse passado foi estreitamente relacionado com a história do mundo natural. O jardim de aclimação ali criado, de significado transcendente para uma história global das plantas, foi de onde originaram-se sementes que, trazidas para o Brasil, levaram a introdução de espécimes à época da criação do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e que passaram a marcar a paisagem e a imagem do país. A orientação cultural francesa da ilha não foi apagada com o domínio britânico, que fêz retornar a sua designação holandesa e determinou a história de Maurício até o passado recente. Isso o demonstra a presença do francês e de um patuá francês na comunicação quotidiana e popular, apesar do uso do inglês como idioma oficial.

O período inglês foi caracterizado por amplos intercâmbios em novas configurações globais determinadas pela inserção da ilha na rêde do império britânico e que teve a Índia como a sua principal parte. Emblema dessa nova situação, marcada pela transição do domínio latino ao anglo-saxão é novamente uma planta, também estreitamente relacionada com o Brasil, a flor amazônica que receberia o nome da rainha Vitória: a Vitória Régia. Ela passou a ser o centro das atenções do Jardim Botânico de Pamplemousses, fundado à época francesa, e que agora receberia ornamentais grades de ferro premiadas na Exposição Universal de Londres. O fomento dos meios de transporte e da comunicação sob a ação britânica levou a um empreendimento que aproxima também Maurício do Brasil na história cultural: o do desenvolvimento do correio internacional. Ambos os países ocupam significativamente hoje papel relevante na história da filatelia.

Sob a égide britânica, a mais profunda transformação social e cultural da ilha foi causada pela imigração voltada à substituição do trabalho escravo, abolido em 1835. O sistema implantado primeiramente em Maurício e em parte aplicado em outras regiões do mundo, teve o seu significado histórico-cultural para todo o globo reconhecido pela UNESCO. Nesse sentido, Maurício não pode deixar de ser considerado nos estudos da imigração, de tanto significado para o Brasil nas suas relações com a Europa.

A imigração trouxe para o país, porém, consequências muito mais abrangentes do que aquelas resultantes de processos imigratórios para outras regiões. Devido às suas dimensões insulares, o país experimentou uma mudança da sua configuração étnica e cultural que foi muito maior do que a do Brasil. A Île de France, com as suas antigas características, que a aproximavam sob muitos aspectos à do Brasil colonial, submergeu em grande parte, e redescobrí-la torna-se hoje quase que uma tarefa de arqueologia cultural. A grande porcentagem dos imigrados procedentes da Índia transformaram a ilha quase que numa extensão da própria Índia. Esse processo foi acompanhado por uma hinduização do país, onde criaram-se e criam-se centros religiosos de significado para o Hinduísmo no seu todo. Ao mesmo tempo, contingentes muçulmanos fomentaram o Islão, erguendo-se mesquitas em várias localidades.

Com esse desenvolvimento, desencadeado pela Europa, a ilha voltou de forma singular a ter reforçados os seus laços com o subcontinente indiano e com o mundo islâmico que possivelmente tivera em passado mais remoto. Segundo um mapa árabe em A. Cantino (1502), conhecia-se nessa época três ilhas a leste de Madagascar, denominadas de Dina Arobi (Maurício), Dina Margabim (Réunion) e Dina Moraze (Rodrigues). Tal transformação reorientadora do ponto de vista geográfico-cultural da ilha Maurício, de um lado justificada pela posição geográfica, de outro pela atividade de comerciantes árabes nesse longínquo passado, traz consequências à sua consciência histórica, à identidade do país e à sua imagem.

A multiplicidade étnica, cultural e religiosa da população do Estado insular, independente desde 1968, resultante de processos históricos estreitamente relacionados com a Europa, e nos quais o Brasil também foi  em grande parte envolvido, transforma as ilhas Maurício por assim dizer em laboratório privilegiado para observações interculturais. Os intuitos do país de construir ou reconstruir uma unidade apesar de toda a diversidade instiga os pensadores a procurar caminhos de entendimento e de prospecção teórica. Também sob esse aspecto, Maurício apresenta-se como país que merece particular atenção nos estudos interculturais. 

A.A.Bispo

  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a utilizar-se de designações similares.

 






  1. Título: Residência "Mon Plaisir" (1777), no Jardim Botânico de Pamplemousses. Imagens da exposição sobre a vida de Seewoosagur Ramgoolam (1900-1985) e da emancipação do país. Coluna baixa: edifícios governamentais em Port Louis.
    Fotos H. Hülskath

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 123/1 (2010:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho científico
órgão
de
Brasil-Europa: Organização de estudos teóricos de processos interculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2535


©


Tema em debate


Estudos do Índico e Estudos Euro-Brasileiros

Relações Brasil-Maurício

Do programa da Academia Brasil-Europa Atlântico-Pacífico de atualização dos estudos culturais transatlânticos e interamericanos
Ciclo de estudos nas ilhas Maurício, 2009
sob a direção de A.A.Bispo

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________