J.-G. Milbert: Ile de France. Revista BRASIL-EUROPA 123. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

Na história cultural e das artes do Brasil e, em particular, nos estudos voltados às relações entre a França e o Brasil, a Missão Artística Francesa de 1816 desempenha um papel relevante. Sobretudo Jean-Baptiste Debret (1768-1848) marcou, com a sua obra Voyage pictoresque et historique au Brésil, ou Séjour d'un Artiste Français au Brésil, publicada entre 1834 e 1839, em três volumes, duradouramente a imagem do país na Europa. (Veja texto sobre Debret no site da A.B.E.) 

Muitas questões se levantam, porém, relativas à vinda dos artistas franceses ao Brasil. Elas somente podem ser respondidas a partir de considerações do contexto político e político-cultural global de sua época, marcada pelo fim do império napoleônico e pela Restauração, com as suas consequências não apenas para a reconfiguração da Europa, mas sim também para o dos contextos coloniais e esferas de influência.

Uma dessas questões que apenas assim podem ser tratadas é aquela que diz respeito à razão pela qual artistas franceses teriam sido enviados para países como o México e o Brasil se a própria França possuía colonias e regiões de presença em várias partes do mundo. Não teria sido muito mais natural que a França tivesse enviado intelectuais e artistas por exemplo para a Île de France, ilha que até então havia sido de grande significado na política colonial francêsa e que marcara a imaginação dos europeus, a sua visão do mundo colonial e repercutira até mesmo nas suas próprias concepções e correntes literárias? (Veja artigo a respeito nesta edição)

Essa questão dirige a atenção à situação crítica da França e do mundo colonial francês à época, em consequência do conflito das nações européias durante as guerras napoleônicas, levando a que a Île de France passasse à suserania da Inglaterra. Perda de possessões surge em paralelo a um aumento da presença cultural francesa em outras outras regiões, quase que uma outra face, mais sutil, do colonialismo.

Tais tentativas de elucidação trazem à consciência a necessidade de se considerar mais pormenorizadamente os pressupostos histórico-culturais mais imediatos da Missão, o interesse pelo Hemisfério Sul à época napoleônica e os conhecimentos que então se tinham a respeito de situações sociais e culturais de regiões coloniais.

Jacques-Gerard Milbert

Nos estudos relativos à Missão e a Debret não se tem devidamente considerado que poucos anos antes, em 1812, publicara-se, em Paris, a Voyage pittoresque a l'île de France, au Cap de Bonne Esperance et a l'ile de Tanarife, em dois volumes, de Jacques-Gerard Milbert (1766-1840), obra de título singularmente similar ao que Debret escolheria e de autoria também de um artista, tal como este.

Pouco antes da publicação da Voyage pictoresque de Debret, Milbert publicaria outra obra semelhante, desta vez relativa à América do Norte, o Itinéraire Pittoresque du Fleuve Hudson et des Parties Laterales de l'Amerique du Nord, d'aprés des dessins originaux pris sur les lieux, saído à luz em dois volumes, em Paris, em 1828/29. Esta última obra foi resultado de observações e investigações realizadas nos Estados Unidos, para onde foi em 1815, acompanhando o consul-geral da França a Nova Iorque. À mesma época, portanto, que Debret abandonou a França, o mesmo o fêz Milbert. Compreensivelmente, Milbert é muito mais conhecido nos Estados Unidos do que o Brasil, uma vez que, com os seus trabalhos de história natural (Memoires au museum d'histoire naturelle sur l'histoire naturelle de l'Amerique du Nord, sete volumes, 1817-33), de topografia e suas observações sobre a história e a sociedade e com os seus desenhos contribuiu de forma significativa ao aumento dos conhecimentos e à imagem da América do Norte na Europa do século XIX.

Jacques-Gerard Milbert foi um daqueles da plêiade de estudiosos que uniram as artes à mineralogia e às ciências naturais em geral. Tendo sido nomeado professor de desenho na Escola de Minas de Paris em 1795, foi enviado a realizar esboços nos Pirineus, nos Alpes e no Rhone. Em 1800, foi indicado para tomar parte em expedição às regiões do Hemisfério Sul ordenada por Bonaparte, ainda primeiro consul, e para a qual mandara armar as corvetas denominadas significativamente de Le Géographe e Le Naturaliste. A expedição foi sugerida e esteve sob a responsabilidade de Nicolas Baudin (1750-1803).

Um dos objetivos desse empreendimento foi o de obter informações sobre a colonização inglêsa na Austrália e o emprêgo de prisioneiros no desenvolvimento das colonias. Milbert, nomeado desenhista e pintor, viajou a bordo da corveta Le Géographe. Foi o responsável pelas gravuras da parte histórica do Voyage aux Terres-Australes, em dois volumes, cada um com 394 páginas, incluindo um atlas com mapas geográficos e 45 ilustrações pintadas. Pierre Bernard Milius (1773-1829), narrou a viagem do Le Naturaliste, a sua estadia na Australia, a viagem à China e à Île de France, a sua nomeação ao Le Géographe após a morte de Nicolas Baudin e a viagem do Le Géographe.

Tendo sido obrigado a interromper a viagem por motivos de saúde, Milbert permaneceu por tempo relativamente longo na Île de France. Essas circunstâncias possibilitaram-lhe fazer observações mais pormenorizadas da sociedade e da cultura da colonia. A obra que então escreveu consistui hoje um documento importante para os estudos de Maurício e, em geral, de situações multiculturais na esfera colonial.  De sua estadia em Maurício, Milbert deixou um considerável número de imagens, gravadas em cobre.

Johann Georg Ludolph Blumhof

A difusão da obra de Milbert na esfera de língua alemã foi possibilitada pela sua versão traduzida de Johann Georg Ludolph Blumhof, terminada em 1823 e publicada em 1825 (Milbert's Reise nach Isle-de-France, dem Vorgebirge der guten Hofnung und der Insel Teneriffa. Nach dem Französischen frei bearbeitet und herausgegeben von Dr. Joh. Georg Ludolph Blumhof (...) Mit einer Karte von Isle-de-France und drei Tabellen. Frankfurt a. M. 1825. Verlag von Franz Varrentrapp).

Blumhof era professor extraordinário de Tecnologia e Mineralogia em Giessen e Conselheiro da Câmara da Corte Grão-Ducal de Hessen. Os trabalhos de Blumhof documentam também os elos entre as ciências naturais e tecnológicas, em particular a mineralogia com os estudos de natureza geográfico-cultural e etnográfica da europa e do mundo extra-europeu. Publicara, entre outros, a tradução do relato de viagem de Bengt Anders Euphrasen (1756-1796/7) às ilhas das Índias Ocidentais pertencentes à Suécia (Herrn Bengt And. Euphraséns Reise nach der schwedisch-westindischen Insel St. Barthelemi und den inseln St. Estache und St. Christoph, oder, Beschreibung der Sitten, Lebensart der Einwohner, Lage, Beschaffenheit und natürlichen Produkte dieser Inseln, 1798) e a do sueco Erich Th. Svedenstjerna pela Inglaterra e Escócia, em 1802 e 1803 (Erich Th. Svedenstjerna's Reise durch einen Theil von England und Schottland, in den Jahren 1802 und 1803, besonders in berg- und hüttenmännischer, technologischer und mineralogischer Hinsicht / Erik Thomas Svedenstjerna ; Aus dem Schwedischen mit einigen Anmerkungen und Erläuterungen von Joh[ann] Georg Ludolph Blumhof. - Marburg Cassel : Krieger, 1811).

Luise Henriette Karoline von Hessen-Darmstadt

Blumhof dedicou a sua tradução da obra de Milbert à Grã-Duquesa Luise von Hessen und bei Rhein (1761-1829), uma das personalidades femininas da história cultural da Alemanha que testemunham os elos franco-alemães de fins do século XVIII e início do XIX. Era uma filha das filhas do príncipe Georg Wilhelm von Hessen-Darmstadt (1722-1782) e de Luise (1729-1818), filha do conde Christian Karl Reinhard zu Leiningen-Dagsburg, e tinha tido relações estreitas com Marie Antoinette, acompanhando-a à França por ocasião de seu matrimônio.

Casando-se com o Príncipe Ludwig von Hessen-Darmstadt (1753-1830), em 1777, que passou a reinar a partir de 1790, tornando-se Grão-Duque de Hessen und bei Rhein em 1806, continuou a manter elos com a cultura francesa, sendo até mesmo considerada por Napoleão como uma das mulheres de maior cultura da época. Se na França os salões dirigidos por damas da sociedade têm sido reconhecidos como importantes instituições na história das idéias, influenciando numerosos escritores e artistas, também fenômeno similar ocorreu na Alemanha, sendo o da Grã-Duquesa Luise frequentado por grandes nomes da vida intelectual alemã, entre êles von J. W. v. Goethe (1749-1832) e F. v. Schiller (1759-1805).

Inserção da obra de Milbert nos estudos da época


Introduzindo o seu trabalho, Blumhof considera as fontes de que se serviu o autor do Voyage pittoresque à l'Isle-de-France, au Capt de bonne-espérance et à l'Isle de Ténériffe.  Sendo a sua área a pictórica, baseara-se em obras de renomados pesquisadores de ciências naturais da França, assim como em relatos viajantes. Além de suas próprias observações sobre a natureza da Ile de France, considerou informações obtidas em obras de cientistas.


Das obras que lhe servieram de referência, mencionam-se, relativamente a peixes,  Bernard Germain de Lacepede (1756-1825), nascido na Guiana, e  de Philibert Commerson (1727-1773), falecido em Maurício. Utilizou-se aqui também de informações de François Peron (1775-1810),  Joseph-François Charpentier de Cossigny de Palma (1736-1809), originário e influente personalidade de Port Louis, e Jean Baptiste Bory de Saint-Vincent (1778-1846).


Quanto à entomologia, baseou-se em dados de Pierre André Latreille (1762-1832), quanto às plantas em Teneriffa e Île de France em informações de Louis Marie A. de Petit-Thouars (1758-1831) e Jean Baptiste Leschenault de la Tour (1773-1826), que também esteve no Brasil (1823).


Com relação à mineralogia, Milbert baseou-se em Jean-Sylvain Bailly (1736-1793).


A história do descobrimento da Île de France e Bourbon foi baseada na obra do Presidente da Companhia das Índias Orientais, Baron Glenelg Charles Grant (1778-1866): The history of Mauritius, or the Isle of France, publicada em Londres, em 1801.


Das ilhas atlânticas ao Índico


A publicação de Milbert contém informações sobre a rota de viagem e, oferece, de início, dados de interesse histórico-cultural sobre Santa Cruz de Tenerifa e Laguna.O autor oferece um panorama histórico-natural das ilhas canárias, da sua população e costumes. Particular atenção merece, sob o aspecto histórico-cultural, a sua relativamente extensa referência à prostituição em Tenerifa, porto de passagem dos navios que faziam a rota do Oriente.


Após descrever a viagem das Ilhas Canárias à Île de France e a chegada, passa a referir-se à cidade então denominada de Port Napoléon e à sua estadia na ilha. Trata da história do seu descobrimento e do estabelecimento de franceses na região, com as suas construções, oferecendo dados sobre a administração de Bertrand François Mahé de La Bourdonnais (1699-1753) e Pierre Poivre (1719-1786). (Veja outros artigos nesta edição).


Particular interesse adquire o relato de sua excursão de Pamplemousses a Mapou e ao Coin de Mire. Outra de suas excursões partiu de Port Napoléon e dirigiu-se aos planaltos de Moka e Wilhelms. Além de notícias geográficas e geométricas, descreve a capital e os rios. Relata as suas observações realizadas em outras viagens pelo interior da ilha e à Baía Grande. Oferece uma súmula dos conhecimentos relativos à física, meteorologia, natureza da terra, da geologia e das plantas da ilha.


Sob o ponto de vista histórico-intercultural, particular interesse adquire o capítulo 17 da obra, no qual se refere aos habitantes da ilha. Um capítulo especial é dedicado à cultura e à indústria. Outro, trata da administração da colonia, da população, dos seus custos e entradas, com dados estatísticos, referências a taxas e ao lucro proveniente das plantações. Capítulo especial é dedicado à vida animal. Após descrever as suas últimas impressões e experiências, relata a sua viagem de retorno e a sua estadia no Cabo da Boa Esperança. Oferece uma súmula de conhecimentos sobre os peixes das regiões equatoriais.


Aspectos da cultura creola e do homem tropical


Milbert oferece um panorama da constituição multiétnica da população da Ile de France. o autor considera esses diferentes grupos e a sociedade branca e creola da ilha, considerando os seus usos e costumes, procurando oferecer retratos físicos, psicológicos e de mentalidades.


Com relação aos brancos e creolos, salienta que seria um preconceito europeu supor que os homens dos países tropicais fossem indolentes e sem têmpera, acordando de sua apatia apenas para castigar os escravos. Essa imagem do homem das colonias seria errônea, e os europeus que assim pensassem se surpreenderiam se pudessem constatar a laboriosidade, o espírito e a capacidade de ação do homem tropical. Se todos tiravam a sesta após o almoço, esse representava um costume adequado às regiões quentes, comum na Índia e nas colonias das Índias Ocidentais, e também conhecido no sul da Europa. Não era expressão de preguiça, mas sim servia a um revigoramento que contribuía para que o trabalho posterior fosse mais efetivo.


Os creolos uniam em si bondade e ânimo, cordialidade e coragem. Gostavam da vida independente e eram muito generosos. Tinham espírito naturalmente vivo e penetrante. Seriam aptos a todos os tipos de artes e ciências, faltavam-lhes porém paciência e diligência. Encontravam-se entre êles pessoas de boa formação cultural, embora nunca tivessem saído da ilha. Possuiam uma urbanidade amável, muita discreção e porte. Ainda que esse cultivo de modos representasse apenas um verniz, não impedia a existência de virtudes mais essenciais.


Quando à educação dos meninos, havia uma escola que funcionava sob a proteção do Governador Geral, com três professores, e onde se ensinava matemática, latim e francês. O gosto pelo desenho era muito acentuado e essa disciplina não era apenas cultivada por razões artísticas ou por distração, mas sim pela sua utilidade, sobretudo para aqueles que serviam no mar e que necessitavam fixar detalhes de litorais e traçar mapas náuticos e hidrográficos.


As mulheres creolas distinguiam-se em especial pela sua feminilidade, faceirice, cultivo e por suas prendas domésticas. Possuiam boas maneiras e desenvoltura no convívio social, assim como presença de espírito na conversação. Eram diligentes auxiliares de seus maridos, realizando o trabalho de escritório e respondendo à correspondência. Tinham especial preocupação em seguir a moda da Europa, exagerando porém nos adereços. Assim, sobretudo os costumes de baile eram extraordinariamente ricos, enfeitados com pérolas e guirlandas de flores artificiais importadas da Europa. Quando viajavam a pé, eram seguidas em geral por um africano com um pequeno guarda-sol. Quando se visitavam à tarde ou iam ao teatro, eram carregadas em liteiras, similares àquelas usadas na França em épocas passadas.


As jovens e senhoras da Île de France demonstravam um talento especial para a música. Algumas delas eram instrumentistas de muito bom nível. As damas creolas amariam apaixonadamente a dança e o teatro. Quanto à educação das meninas, havia também uma escola para as filhas dos colonizadores de mais posses. Uma importante parte do ensino consistia em música e desenho. Também ensinava-se rudimentos de francês. O primeiro ensinamento em corte e costura era feito pelas próprias mães.


A vida social e cultural da ilha era determinada pelos trabalhos rurais, quando as famílias permaneciam no interior. Nos feriados e na estação do ano marcada pelo retorno à cidade, Port Louis tornava-se repentinamente muito movimentada. Era então a época por excelência de divertimentos, de apresentações musicais, teatrais e de bailes.


Aspectos da cultura dos africanos


Após ter oferecido um quadro da população branca da ilha, o autor passa a descrever a população negra e que consistuia a maior parte da sociedade insular. Com os seus dados, Milbert contribui hoje a corrigir a imagem de que a escravidão representa apenas um problema a ser tratado sob a perspectiva das relações dos vários países com a África.


Sobre a denominação de negros, Milbert, seguindo costume antigo, designa não apenas africanos. Os escravos eram provenientes de várias nações, indianos, malaios, malgaches, insulanos de Madagascar, moçambiques, alguns habitantes da costa ocidental da Guinea, além de jolofs, também da costa ocidental da África, estes, em particular, em grande número. Havia chineses e nativos das ilhas Sandwich. Entre os do leste da África, havia os moçambiques que provinham de estabelecimentos portugueses, outros de Céné e de Quérimbas, outros de Quiloa e Zanzibar, além de alguns abissínios.  Às vezes, os portugueses de Moçambique traziam grandes grupos humanos nos seus cargueiros e muito lucravam com o trato. Em Moçambique, cada escravo valia entre 30 a 80 piaster. O mesmo preço vigorava em Madagascar. Esse preço era ca. de 20 % menor do que me Zanzibar ou Quilão.


Milbert oferece dados a respeito das características físicas, aptidões e tendências psicológicas dos africanos que, embora manifestando o ponto de vista do colonizador, não livre de preconceitos, surgem como elucidativos para o conhecimento da imagem que as diferentes culturas africanas gozavam entre os europeus e seus descendentes. Cotejos com referências que se conhecem relativas ao Brasil poderiam ser aqui de interesse. Milbert qualifica de suaves os moçambicanos, de robustos os cafres, e descreve o caráter dos mouros como cambiante entre delicadeza e selvageria. Os chinêses seriam astutos e hábeis, os malaios falsos e cruéis, os do subcontinente indiano suaves e piedosos. Havia marattes, nativos da costa do litoral persa, árabes guerreiros e alguns nativos do Pacífico. Alguns navios provenientes de Java traziam malaios das ilhas Sonda. Esses conseguiram se aclimatar bem.


Em particular, Milbert oferece dados a respeito dos jolofs, sobre os quais pouco se conhece da literatura referente a outras regiões e que assumem significado relevante na história da expansão européia, uma vez que um de seus potentados foi o primeiro a ser batizado em Portugal (Veja número anterior desta revista).


É digno de nota que escravos provenientes de regiões tão ao norte da África Ocidental tenham sido levados em tão grande número ao Índico. Eram muito bem considerados em Maurício, segundo as informações de Milbert. Eram não só fisicamente privilegiados, mais altos e fortes, adequados assim para o trabalho de campo, mas também vistos como mais inteligentes do que os de outras nações. Esse fato se manifestava na sua habilidade para a marcenaria e trabalhos artesanais. Identificavam-se através de tatuagens, sobretudo a de um sol representado no ventre.


A excelência dos jolofs quanto ao grau de civilização aos olhos dos brancos e creolos contrapunha-se à pouca consideração que se tinha dos escravos vindos de Moçambique e de outras partes da costa oriental da África, vistos como apáticos e pouco inteligentes.


Segundo Milbert, os escravos de Madagascar eram classificados em diferentes tipos. Juntamente com os da Índia, perfaziam nada menos do que um terço dos escravos da Île de France. Eram empregados sobretudos como serviçais domésticos. Tenderiam mais do que outros escravos para a deserção e atos de desespêro. Tentavam fugir para a sua ilha natal, em canoas improvisadas ou a nado, muitos deles perecendo no oceano.


Tais referências de Milbert podem ser explicadas pela relativa proximidade de Madagascar. Se os jolofs e os outros da costa ocidental da África, pela distância de suas regiões natais, não viam outra solução do que a de resignar-se com a situação e integrar-se no novo meio, os malgaches acalentavam a esperança do retorno. Tal fato explicaria a tendência à rebeldia e à fuga, assim como o apego a práticas religiosas e mágicas. Eram conhecidos pelo uso maior de amuletos e outros objetos de carga religiosa ou mágica, sobretudo do gri-gri, que traziam ao pescoço e entre o cabelo, e que era preparado com com pés de cabra, de galo ou de dentes de crocodilo misturados com gordura, óleo e outros ingredientes.


Diferentemente dos escravos, os livres de Madagascar assumiam uma posição privilegiada, de auxiliares do comércio de europeus ou comissionários, conhecidos como os "Marmitas" da Île de France. Trabalhavam também como supervisores do gado ou chefes em plantações de arroz. Eram hábeis no trabalho em metal e no artesanato, sobretudo na arte da filigrana.


Nesse contexto, Milbert oferece a descrição da assim chamada "harpa malgache", uma das mais pormenorizadas descrições de instrumento musical africano que se conhece da literatura de viagens e que adquire, naturalmente, particular relevância para a Etnomusicologia. O autor, procurando dar uma idéia do instrumento a seus leitores, descreve a caixa do instrumento, consistente em um bambu grosso, de ca. de dois pés de comprimento, do qual é tirado o miolo, de modo a se obter um cilindro ôco em todo o seu comprimento. Milbert admira a excepcional habilidade dos construtores ao tirar a pele do cilindro em fios finos, da dimensão de uma linha. Menciona o cuidado em escantilhar-se os ângulos e diferentes partes externas ao redor do cilindro para a obtenção de diferentes sons. Descreve como os fios ou cordas são desfiados apenas quase até os seus fins, terminando com nós maiores. Para torná-los vibráteis, são elevados, tal como é o caso das cordas de instrumentos europeus, elevadas por meio de cavaletes. Para o autor, tratar-se-ia, assim, de uma espécie de violino cilíndrico, cuja singularidade residia no fato de serem as cordas feitas do mesmo material da caixa de ressonância. Ao tocar, o músico segurava o instrumento à cintura e de forma mais ou menos inclinada. As cordas eram percutidas com um bastão comprido e aguçado; sendo concomitantemente o cilindro girado, produziam-se os diferentes tons.


Para Milbert, o grau de esclarecimento dos livres de Madagascar era resultado do contato que tinham tido no passado com os árabes, poderosos no comércio do Índico. Alguns deles eram muçulmanos, outros, "fetichistas".


Aspectos culturais dos indianos na Île de France


Os indianos dividiam-se em três grupos principais, os de Talinga, os do Malabar e os de Bengala. Outros provinham de Daca, Chatigan e de outras regiões. Eram, segundo Milbert, os mais belos e mais bem formados de todos os escravos. Possuiam, segundo êle, modos extremamente suaves. Eram utilizados como serviçais domésticos, por serem mais asseados e de mais fácil aprendizado do que os africanos. Tornavam-se bons artesãos.


Dos dados de Milbert pode-se tirar conclusões a respeito do tipo de relacionamento entre os habitantes provenientes da Índia e os inglêses. Uma sugerida lealdade para com os franceses poderia ser compreendida sob o pano de fundo da ação britânica na Índia. Assim, aqueles que eram creolos e os livres passaram a servir nas tropas da Île de France e de Bourbon, tendo-se se inscrito voluntariamente quando da ameaça inglêsa. Essa informação surpreende à primeira vista, uma vez que a tendência inicial do estudioso é de supor uma maior afinidade entre a Índia e a Inglaterra. As referências de Milbert datam porém de período anterior à soberana inglêsa em Maurício e à vinda, sob outras circunstâncias, dos trabalhadores contratados do subcontinente.


Particularmente digno de nota é que Milbert tenta a difícil tarefa de diferenciar os grupos culturais e as castas dos escravos provenientes da Índia. Havia os da casta de Talinga, elevada, que eram bem vistos pelo seu cultivo de modos. Eram hábeis artesãos, pedreiros e marceneiros, sendo empregados como serviçais, os assim-chmados pions, ou em escritórios e casas comerciais. Davam a sua marca ao bairro onde residiam: o Campo dos Malabares.


Milbert salienta a reliosidade dos hindús, embora fossem, aos olhos dos cristãos, pagãos ou "fetichistas". Os Malabares festejavam uma grande festa anual, que exigia longos preparativos. No centro de um alto templo, que representava um pagode da Índia, via-se uma estátua que veneravam. No dia posterior à festa, denominada de Hiamcay, o edifício era destruído. Salienta também a existência de adivinhos e mágicos, equilibristas e acrobatas.


Do convívio entre mulheres da Índia e brancos desenvolvera-se uma população de mestiços.


Situação multicultural e segurança da colonia


Todos esses habitantes diferenciavam-se relativamente à sua religião, costume, usos, modos de casamento, trajes, sentimentos e constituição física. Essas diferenças e o ódio que existiam entre êles fundamentavam a seguraça da colonia. Era assim impossível que realizassem uma insurreição (pág. 25).


Um sustentáculo da manutenção da ordem social era a religião. Nas plantações mais bem cuidadas, tinha-se o cuidado de que os africanos batizados assistissem às horas de oração. Aos outros, permitia-se o exercício de seus cultos.


Risco para o sistema era a fuga de escravos para as florestas nas partes mais elevadas das montanhas. Designados como marons, causavam desordens nas florestas e nas plantações adjacentes. Segundo Milbert, os brancos eram obrigados a usar de meios de violência para com eles, cujo rigor apenas poderia ser desculpado pela necessidade. Quando se ouvia que um bando de fugidos se escondia nas matas ou entre os cumes das montanhas, procedia-se à sua caça por meio de outros negros armados. Como na caça de animais selvagens, eram êles escuraçados. Em alguns casos, eram mortos a tiro. Para não serem apanhados, untavam o corpo com óleo de côco e cortavam os cabelos. Quando escravos apareciam de cabeça raspada no trabalho, já se interpretava isso como sinal de uma possível fuga.


Durante a sua estadia na ilha, o próprio Milbert comprou um jovem negro Capor. Teve a preocupação de educá-lo e formar o seu caráter. Apesar de tudo, não teria conseguido superar a sua tendência ao roubo. Com essa menção, Milbert confirma, a partir de sua experiência, a imagem negativa a respeito do caráter dos africanos.


A inimizade entre os vários grupos étnicos e culturais da ilha manifestava-se nas festividades e nos dias de folga. Os negros de todos os grupos reuniam-se nos dias feriados em lugares separados nos lados do Camp des noirs ou dos Malabares. Esses últimos, porém, não se misturavam com os africanos, vendo-os com desprêzo.


Expressões culturais dos vários grupos e comparações


Nas suas tentativas de cotejo das expressões culturais dos africanos com aquelas dos indianos, Milbert constata que as danças dos negros eram mais ruidosas e movimentadas e o seu canto menos melodioso.


Os da Índia possuíam uma discreção suave e nobre nas suas danças. Muitos deles davam-se as mãos, formando uma roda grande. Um dos dansarinos se colocava no meio e realizava diferentes passos e gestos bizarros. Aqueles mais próximos o abandonam em intervalos, viravam-se e batiam os bastões de entrechoque. Os movimentos se aceleravam gradualmente e um deles se apresentaria como se quisesse dar um golpe de punhal. Após esse movimento, o tempo tornava-se mais lento, os dansarinos viravam de posição e levantavam um braço e a perna do lado oposto. Após isso, o grupo se juntava novamente, dispersando-se com um gesto da cabeça. (op.cit. 392)


Tal dança seria uma espécie de pantomima, e, segundo Milbert, referia-se a um conteúdo religioso. Apesar de ter procurado obter informações, nunca pôde conhecer o sentido da dança. Supunha que os próprios protagonistas talvez já não soubessem o significado dos gestos.


A dança dos negros africanos teria também muito sentido e significado, este mais fácil de ser entendido. Faziam gestos extraordinariamente lascivos, que não davam motivos para dúvidas. As danças livres eram a que executavam melhor. A sua paixão por mulheres seria muito grande, e correspondia a um "cinismo com a qual a fruiam". Não cultivavam mistérios com relação ao amor. Dentre os grupos havia sempre alguns que se distinguiam como animadores para incentivar os demais. Faziam rir através de posições grotescas e em parte pelos trajes.


O enfeite dos participantes da dança que observou consistia em penas de pássaros de cores brilhantes, vermelho, verde ou azul.  Aqueles enfeitados com penas de determinados pássaros, tentavam imitá-los com gestos e nos passos. Quando, por exemplo, imitavam a ema, faziam um pescoço comprido e movimentavam os cotovelos como essa ave.


Às vezes, gostavam de representar o pássaro Tropik ou Paille-en-queue. Amarravam duas dessas aves às costas e cobriam-se de penas brancas coladas ao corpo. Andavam assim de forma arrastada, tal como esses palmípedes, que não se sentem bem na terra. Os assistentes se comportavam como se tivessem esses pássaros entre si. Corriam atrás dos mesmo e, apanhando-os, arrancavam-lhe as penas. Todos esses folguedos burlescos terminavam com o beber de arak.


A partir dessas observações, Milbert faz conjecturas de cunho comparativo. Para êle, as danças dos negros, sobretudo a imitação de pássaros e animais apresentavam traços comuns com aquelas de outros povos que também conheciam danças imitativas. Assim, os Kamtschadales imitavam ursos, os nativos da Nova Holanda os cangurús.


Os de Madagscar teriam folguedos mais sérios. Cantavam com método, acompanhando-os com a "harpa malgache". Os malaios também tinham danças especiais, não muito numerosas. Milbert apenas pode observar algumas delas. Já se encontravam misturadas com aquelas dos de Madagascar.


Os chineses, discretos e reservados, eram pouco comunicativos. Eram livres e não se misturavam com os escravos, procurando a companhia de brancos. Passavam o seu tempo livre em casas de café a fumar. Tendiam à melancolia.


Apesar de ser permitido o exercício religioso para todos os grupos, havia restrições. Também aqui se manifestava a animosidade entre os vários grupos constituintes da população, sobretudo também nos ritos fúnebres. Os malabares livres sepultavam os seus mortos com uma certa pompa. Os maometanos pronunciavam versos do Corão e evitavam que um cristão ou pagão tocasse no cadáver.


A maior punição que se podia fazer a um escravo da Índia era fazer com que os seus cabelos fossem cortados por um negro africano, sobretudo de Moçambique, dos quais se repugnavam.


Milbert encontrou um nativo da ilha Mowée, uma das ilhas Sandwich. Também esse jovem mostrava repugnância pelos negros africanos. A pedido de Milbert, apresentou algumas danças de seu país. Pareceram-lhe muito suaves e estranhas. Primeiramente, começou com movimentos muito lentos, girando a coxa de uma forma especial, esquentando-se pouco a pouco. Após ter descrito com rapidez vários círculos, parou de repente, bateu com o pé, estendeu o braço com o punho cerrado e deu-se com a mão esquerda batidas por debaixo da axila esquerda. Começou de novo a girar, levantando uma perna após a outra como alguem que andasse sobre objetos agudos e que sentisse dores. Após a dança, caiu num estado de profunda tristeza. (op.cit. pág. 405-406)


(...)

A. Montemann e grupo redatorial sob a direção de A.A.Bispo


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a utilizar-se de designações similares.

 







  1. Mauritius Institut. Principal centro de estudos mauricianos em Port Louis.
    Fotos A.A:Bispo

  2. Bairro Velho de Port Louis. Forte
    Fotos A.A:Bispo
 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 123/6 (2010:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho científico
órgão de
Brasil-Europa: Organização de estudos teóricos de processos interculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2540


©


Conhecimento de situações multiculturais em regiões coloniais na Europa do início do século XIX

Île de France de J.-G. Milbert (1766-1840)

na versão de G. L. Blumhof, Giessen

Estudos França-Alemanha-Brasil da Academia Brasil-Europa
no contextodo seu programa de estudos dedicado ao complexo temático
Atlântico-Pacífico
Ilhas Maurício, 2009
sob a direção-geral de A.A.Bispo

 




   Port Louis. Fotos H.Hülskath

 

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