Henrique Travassos Siffert/Henrik Siffert. Revista BRASIL-EUROPA 123. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 
Henrique Travassos Siffert, nascido no Rio de Janeiro, teve a sua infância e juventude marcadas pelo cultivo da música na sua família. A sua mãe era pianista e cantora, tendo exercido atividades de professora e de direção de instituição de ensino musical. Demonstrou cedo a sua propensão para a música e as suas qualidades vocais. Em São Paulo, além de obter lições particulares, teve a sua formação marcada pela participação em coros. Ainda muito jovem, participou como pagem na ópera A Noite no Castelo, de Antonio Carlos Gomes, encenada em Campinas, um evento relevante sob o aspecto da revalorização da obra desse compositor brasileiro. Essa participação, sempre lembrada por Henrique Siffert, surge, retrospectivamente, quase como de prenúncio simbólico de sua carreira. Tornar-se-ia um cantor que voltaria várias vêzes à música de Carlos Gomes e, apesar de toda a sua ampla e diversificada formação, à tradição lírica ítalo-brasileira; aperfeiçoamentos na Itália seriam importantes na mudança de disciplina vocal por que passaria na sua carreira de cantor.


Formação musical no Brasil

Incentivado pelo barítono José Marson, passou a estudar com Marcel Klass, em São Paulo. A sua formação deu-se aqui segundo a tradição técnica russa. Após um ano de estudos, apresentou-se pela primeira vez no Teatro Municipal como solista em ópera para crianças.  No Rio de Janeiro, após os seus estudos secundários, entrou na Universidade Gama Filho, passando a cursar Psicologia e Sociologia.

Entretanto, a sua tendência para o canto era mais forte. Paralelamente a seus estudos, aperfeiçoou-se em canto com o barítono Paulo Fortes (1923-1997), então atuante no Instituto Villa-Lobos. Paulo Fortes havia estudado com Gabriella Besanzoni, Murilo de Carvalho e Pina Mônaco, realizara estudos em Florença, ali desenvolvendo-se com Flamínio Contini e era, na época, uma das mais prestigiadas personalidades do canto erudito brasileiro e de seu ensino. Era professor de arte teatral do Museu de Imagem e do Som do Rio de Janeiro e conselheiro da Ordem dos Músicos do Brasil.

Com a sua formação junto a Paulo Fortes, Henrique Travassos inseriu-se em universo da lírica marcado tanto pelo cultivo do repertório operístico tradicional como por uma abertura à criação contemporânea, em particular de compositores brasileiros. O seu professor, que havia estreado em São Paulo em La Traviata, de Giuseppe Verdi, em 1945, transmitiu-lhe grande experiência de interpretação das grandes óperas do repertório italiano, de presença de palco e de arte dramática que foram de importância para além de seu significado estritamente artístico, marcando a sua personalidade. Com êle teve contato, entre outras obras, com I Pagliacci, de Ruggiero Leoncavallo, que Paulo Fortes havia cantado, em encenação que marcou época, ao lado de Beniamino Gigli, em 1948; Henrique Travassos voltaria a essa ópera posteriormente na sua carreira profissional. Ao mesmo tempo, Paulo Fortes gozava de especial renome como intérprete de música brasileira, tendo participado em apresentações de óperas de Villa-Lobos (Izath; A menina das nuvens), e de Camargo Guarnieri (Pedro Malasarte; Um homem só), em especial também de obras Carlos Gomes: interpretou e dirigiu Il Guarany, em Palermo, em 1974, participou da gravação completa dessa ópera (Chantecler) e das Árias.

Formação musical na Alemanha

Graças a uma bolsa da Konrad-Adenauer-Stiftung, Henrique Siffert deu prosseguimento a seus estudos na Escola Superior de Música de Colonia a partir de 1980, aperfeiçoando-se com Dietger Jacob. Apresentou-se já em novembro desse ano como solista na ópera La Liberazione d'Algero de F. Caccini, e desempenhou o principal papel no musical Oklahoma, de Richard Rodgers (Curly), regido por Jigg Whigams e gravado em fevereiro de 1981 pela Rádio da Alemanha Ocidental.

Em 1982, foi premiado em concurso promovido pela cidade Bergheim. Em 1984, foi lançado como talento jovem no programa "Jeder braucht Musik", da emissora ZDF, apresentando o "Prólogo" de Tonio, do I Pagliacci.

Passou a seguir à Escola Superior de Música de Karlsruhe, onde estudou com Aldo Baldin (1945-1994), tenor brasileiro de ascendência italiana, residente e integrado na Alemanha, e que desempenhara, nas suas múltiplas atividades, o papel de primeiro tenor lírico no Teatro de Mannheim. Apresentara-se em Colonia, em 1989. Com Baldin, Henrique Travassos teve contato com grande especialista de Mozart e da arte solística de oratórios e de câmara, e talvez sob a sua influência passou a cogitar em redirecionar-se vocalmente à tessitura de tenor. Terminou o seu curso em Karlsruhe com o diploma de professor de música e com o exame de solista.

Carreira como barítono

Na sua carreira, um episódio não sem significado foi o da sua participação em zarzuelas, tais como La Capa de Paño Pardo e La gran via, sob a regência de Heinz Geese, levadas com a orquestra  e o coro da Rádio de Colonia, em 1984. Cantou como barítono até 1987, atuando em várias óperas, entre elas no Don Carlos, encenada no Teatro Estatal de Baden, em Karlsruhe, em 1985, sob a direção de Christoph Prick e Heinz-Lukas Kindermann. Desempenhou o papel de  Almaviva em O Matrimônio de Figaro, de W.A. Mozart, de Sid em Albert Herring, de B. Britten, do Herr Fluth, em Die Lustigen Weiber von Windsor, de O. Nicolai. Desempenhou o papel do rei, em Die Kluge, de Carl Orff, levada a efeito pela Ópera de Câmara de Constância, sob a direção de Peter Bauer, em 1986, e de Guglielmo, em Così fan tutte, de W. A. Mozart. Participou também de uma produção de Orfeo, de Monteverdi. Em 1985, participou do Festival d'Estagel na França.

No ano comemorativo de Carlos Gomes, 1986, apresentou-se no Rio de Janeiro, desempenhando o papel de Gonzales, no Il Guarany de Carlos Gomes, levado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sob a direção de Roberto Ricardo Duarte.

No ano seguinte, já de novo na Alemanha, participou da realização de Gianni Schicchi de G. Puccini, em gravação para a Televisão do Sul da Alemanha. No Festival Internacional de Wiesbaden, também em 1987, participou como talento jovem na primeira audição mundial da obra Die Totenklage von François Villon, de Hans-Christoph Schuster, sob a direção de Alexander Schwinck.

Carreira como tenor

A partir desse ano, decidiu-se a atuar como tenor, sendo orientado nessa mudança de disciplina vocal por Floriana Cavalli, em Milão, e por Rina del Monaco, em Pesaro. Assistiu a cursos de aperfeiçoamento  de Birgit Nilsson, em Wolfenbüttel, e de James King, em Munique. Apresentou-se pela primeira vez como tenor no Encontro de Juventude do Festival de Bayreuth, em 1988, assumindo o papel de Max, no Freischütz de C. M. v. Weber.

Importante marco na sua carreira como tenor foi a sua atuação como Lord Cecil em Roberto Devereux, de G. Donizetti, encenada no Gran Teatro Liceo de Barcelona, em 1990, sob a direção de Richard Bonynge. Desempenhou papéis relevantes em Nabucco e Otello, de G. Verdi, e em Die Walküre e Parsifal, de R. Wagner. Dirigia-se, assim cada vez mais a um repertório das mais altas exigências técnicas e artísticas, tanto na esfera da arte lírica italiana, como daquela do drama musical wagneriano.

Atuação na Academia Brasil-Europa e ISMPS

Após vários anos de contatos pessoais e artísticos, Henrique Siffert passou a integrar a Academia Brasil-Europa a partir de 27 de fevereiro de 1996. Desde então, passou a cooperar intensamente com os trabalhos da instituição e do Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes (ISMPS e.V.).

A primeira maior atuação em conjunto deu-se por ocasião da inauguração do centro de estudos da A.B.E., em Colonia, em 1997, sob o patrocínio da Embaixada do Brasil. No âmbito da programação inicial, Henrique Siffert co-organizou uma sessão dedicada à Canção Brasileira, oferecida aos brasileiros residentes na Alemanha. A intenção do programa foi, sob o aspecto musicológico e teórico-cultural, a de apresentar o estado das pesquisas relativas à canção em geral e à brasileira em particular, salientando a importância da canção em processos de identidade e a necessidade de um procedimento mais refletido com relação a seu cultivo e às suas conotações político-culturais. Procurou chamar a atenção dos brasileiros residentes aos problemas que se colocam com a instrumentalização da música do Brasil para fins de autoafirmação e projeção de pessoas e instituições no Estrangeiro não devidamente qualificadas nos estudos músico-culturais. A sessão procurou retomar a questão das relações entre música e a imagem do Brasil, tema discutido desde 1980 nos eventos da organização.

Para a programação, com o título de A Canção Brasileira e o Retrato do Brasil: Algumas reflexões metodológicas, Henrique Siffert apresentou um recital de sua aluna, Sílvia Donato. Procedente de São Paulo, tendo obtido a sua formação na Universidade Livre de Música, com Ana Maria Kiefer e Lenice Priolli, passara a ser sua aluna no Conservatório de Música de Colmar. Apresentara-se pela primeira vez na ópera Arianna de Benedetto Marcello, uma produção da Academia de Música da Basiléia. O programa preparado testemunhou a atenção que Henrique Siffert dedicava à música brasileira no seu trabalho de professor, as palavras por êle proferidas manifestaram os seus vínculos com a cultura brasileira. O recital incluiu peças de Waldemar Henrique, Heckel Tavares e Luciano Gallet.

Em 1998, por intermédio do ISMPS, Henrique Siffert foi convidado a realizar recital de canto em Portugal no âmbito das comemorações dos 500 anos da viagem de Vasco da Gama, evento possibilitado pela Comissão Municipal dos Descobrimentos de Lagos.

Em 1999, participou ativamente do Congresso Internacional Brasil-Europa: Música e Visões, de abertura do triênio de eventos científicos pelos 500 anos do Descobrimento do Brasil promovido pela A.B.E. em colaboração com universidades e instituições de diferentes países. Na sessão de abertura do evento, realizada no auditório da Deutsche Welle, no dia 3 de setembro de 1999, interpretou obras de Heitor Villa-Lobos: Nhapôpé (Modinha N° 6), Serenata (Seresta N° 13) e Xangô. Na sessão dedicada a compositores contemporâneos de origem do mundo de língua alemã, no auditório da Universidade de Colonia, interpretou os 5 Lieder nach Gedichten von Omar Kaijam de Martin Braunwieser, mentor da A.B.E..

Atividades de docência

Como professor, Henrique Travassos Siffert iniciou as suas atividades na Europa com alunos particulares, em 1981, e, a seguir, na Escola de Música de Bonn. Novo e importante passo deu-se com a sua passagem ao Conservatório de Colmar, na França, em 1996, onde lecionou até 2001. O centro de atuação e vida de Henrique Siffert deslocou-se ainda mais à esfera alsaciana e às regiões limítrofes da Alemanha e da Suíça. Em 2000, atuou como professor convidado na Escola Superior de Música de Freiburg. No ano seguinte, em 2001, foi nomeado professor de canto no Conservatório de Música Estatal de Strassburgo. A sua inserção no contexto franco-alemão da região foi tão profunda que teve repercussões na sua identificação cultural e na sua imagem. Passaria a considerar-se cantor franco-alemão e a utilizar-se do nome artístico de Henrik Siffert.

Henrique Siffert compreendia a sua atividade pedagógica em amplo sentido técnico, artístico e de desenvolvimento da personalidade. Procurava abrir novos horizontes a seus alunos e oferecer-lhes possibilidades de apresentação, acompanhando-os no seu caminho artístico. Iniciou, com discípulos e colegas, uma academia de canto e foi diretor artístico da "Academia de Jovens Cantores", AEJC. Sabe-se que, em 2005, durante uma sessão orquestral em Altkirch, foi solicitado a ali desenvolver atividades de professor de canto; com os seus mais destacados alunos, conseguiu que se montasse uma ópera. Com a força de sua personalidade, o seu dinamismo e expansividade, conseguia conquistar e manter a afeição humana, o respeito artístico e o entusiasmo de seus alunos, muitos dos quais realizam hoje carreira internacional. Uma das últimas audições de sua classe de canto deu-se a primeiro de julho de 2006, em La Laiterie, em Strassbourg.

Henrique Travassos Siffert faleceu cedo demais. Deixa uma lacuna no movimento artístico e cultural e no convívio humano no âmbito das relações entre a Europa e o Brasil. Testemunhos de como foi admirado e respeitado foram as homenagens que lhe foram prestadas, entre elas na Cité de la Musique, em Strassbourg, em primeiro de julho de 2007, e em Ribeauvillé, a 3 de maio de 2008. Representa uma tarefa para os pesquisadores realizar um levantamento mais pormenorizado e mais preciso de seu vir-a-ser, de suas atividades e do papel que desempenhou nas relações culturais euro-brasileiras. A êle vale a gratidão daqueles que tanto receberam de sua boa vontade, amizade, assim como espontânea e desinteressada contribuíção artística e cultural.

A.A. Bispo


 

 

 

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 123/21 (2010:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho científico
órgão de
Brasil-Europa: Organização de estudos teóricos de processos interculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2557


©

In memoriam




Henrique Travassos Siffert (Henrik Siffert)

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________