Elite colonial e creolos: P. d'Épinay. Revista BRASIL-EUROPA 123. ACADEMIA BRASIL-EUROPA. Bispo, A.A. (Ed.) e Conselho Especializado. Organização de estudos culturais em relações internacionais

 
 

Uma das tarefas dos estudos interculturais consiste na reconstrução da história da presença de intelectuais e artistas de regiões extra-européias na vida cultural da Europa. Foram personalidades que em geral ficaram entre mundos, não sendo sempre devidamente consideradas em obras especializadas. Muitos foram aqueles de várias regiões do mundo que realizaram estudos e atuaram nos grandes centros europeus. Foram importantes mediadores culturais, transmitindo impulsos a seus países, e representando-os no Exterior.


Em edição anterior desta revista (N° 121) foram considerados alguns nomes da plêiade de personalidades brasileiras da literatura, das artes e do pensamento que estudaram, viveram e atuaram em Paris. A presença estrangeira em Paris, - e em outros centros europeus - não se resumiu a latinoamericanos. Estudantes, artistas e intelectuais provenientes de outras regiões do globo, sobretudo das antigas colonias, consistuiram importante parte da vida das academias, de conservatórios, associações e da vida musical e artística em geral.


Como discípulos e personalidades com interesses culturais e artístico esses estrangeiros contribuíram ao cosmopolitismo das grandes metrópoles européias; influenciaram também correntes e desenvolvimentos. Pertencendo a situações sociais e em geral financeiramente instáveis, premidos pela exiquidade de tempo disponível, pela expectativa pessoal e de seus compatriotas de sucesso, de alcance de reconhecimento, pelo desejo de demonstrar a europeus qualidades culturais, de educação, de conhecimentos e de domínio técnico comparáveis àquelas do Velho Mundo, contrariando preconceitos e opiniões depreciativas com que se viam confrontados, tornaram-se muitas vezes seguidores e representantes de tendências das mais nobilitantes e de maior expressão de virtuosismo de expressões e de realização.


Somente com o desenvolvimento dos estudos teórico-culturais dedicados a exames de processos interculturais e de transformação de identidades é que se poderá apreciar de forma mais justa as obras desses intelectuais e artistas, e, sobretudo, o papel que desempenharam na história da vida cultural e artística da Europa.

Sociedade creola em Paris e em Londres


Nesse estudo, uma particular atenção deve ser dada à sociedade creola em Paris e em Londres do século XIX. O termo creolo deve, porém, ser considerado de forma diferenciada, uma vez que assumiu distintos significados e conotações em vários países. Em determinados casos, e êsse parece ter sido o caso das ilhas do Índico, foi aplicado indiferenciadamente a descendentes de europeus das colonias ou antigas colonias, fossem êles brancos ou mestiços em diferentes graus. A discussão do têrmo e do exame mais diferenciado do assim-chamado Creolismo encontra-se em andamento e não pode ser aqui considerada. Um dos aspectos da discussão diz antes respeito a questões de identidade, sendo o termo aplicado a círculos sociais e culturais, em parte étnicos emergentes, que possuiam uma determinada consciência histórica e orientação cultural explicável como resultado de processos performativos e caracterizada, entre outros aspectos, por instabilidade e acentuadas expressões de necessidade de afirmação e superação.


A presença de personalidades das colonias nas metrópoles não era recente. Com as transformações políticas do mundo colonial, sobretudo após a derrota do império napoleônico e com a emancipação de ex-colonias, novas situações se estabeleceram. A Île de France, que havia sido uma das principais colonias da França, até mesmo de dimensão simbólica para o país e sua auto-imagem (Veja artigo sobre B. Saint Pierre nesta edição), passara ao domínio britânico. Apesar dessa mudança de soberania, a sociedade da Île de France permaneceu culturalmente vinculada com a França, e mauricianos chegaram a alcançar posições de prestígio na sociedade parisiense.


A expressão "tão rico quanto um creolo" indica a riqueza dessas personalidades provindas da ex-colonia ou, pelo menos, a atenção que davam à manifestação do aspecto exterior da pessoa, e que poderia ser interpretada como expressão de dignidade e consciência de valor. Não parece ser ousado supor que se prendiam a círculos que haviam sido privilegiados na antiga colonia, que sofreram prejuízos com as mudanças causadas com a abolição da escravidão pelos inglêses e que vinculavam-se antes a correntes conservadoras. Gozavam do desenvolvimento econômico trazido pela administração inglêsa, viviam porém antes num mundo nostálgico de um passado de cultivo social mais refinado. Essa suposição, ainda que generalizadora, parece ter a sua confirmação na personalidade e na obra de um dos mais destacados artistas mauricianos do século XIX, Prosper d'Épinay.


Société des Arts et des Sciences de l'Île Maurice


A consideração especial de Prosper d'Épinay no âmbito dos estudos euro-brasileiros justifica-se em primeiro lugar pelo fato de ter sido condecorado pelo Brasil com a Ordem da Rosa. É, assim, dos vultos de Maurício do século XIX, o único conhecido que traz na sua biografia uma especial prova de apreço e reconhecimento do Brasil. Com essa Ordem, condecorava-se brasileiros e estrangeiros que haviam prestado serviços á nação e que se haviam destacado pela sua lealdade ao Imperador. As razões dessa condecoração e os vínculos que prenderam o artista mauriciano ao Brasil merecem estudos mais pormenorizados. Neste contexto, apenas pode-se traçar um quadro geral do seu vir-a-ser e da sua atuação, chamando a atenção para o interesse histórico-cultural que um estudo desses elos teria.


Em Maurício, obras de Prosper d'Épinay ornamentam representativamente espaços públicos. Entretanto, uma de suas estátuas, justamente aquela considerada como uma das mais significativas de sua obra, é causa de polêmicas e desconforto. Trata-se do monumento que fêz a seu pai, Antoine Zacharie Adrien d'Épinay (1794-1839), em 1866, levantado no jardim da Companhia das Índias, no centro de Port Louis.


Adrien d'Épinay foi um dos fundadores da Société d'histoire naturelle de l'île Maurice (1829), mais tarde Société des Arts et des Sciences, reconhecida pela rainha Vitória, designando-se desde então Société royale des Arts et des Sciences de l'Île Maurice (1846). Essa sociedade, que reuniu relevantes nomes de cientistas naturais e intelectuais, europeus e provenientes da região, também de grupos sociais emergentes, desempenhou significativo papel no desenvolvimento das ciências naturais do século XIX, tendo alguns de seus membros atuado na França. D'Épinay foi também fundador do jornal Le Cernéen (1832), além de banqueiro.


Ao tornar-se público, em época recente, que este advogado e homem público empenhou-se na defesa de agricultores em Londres, exigindo indenizações por ocasião da abolição da escravidão pela Grã-Bretanha, levada a efeito em Maurício em 1835, levantaram-se vozes que exigiam a destruição ou o afastamento do monumento. A questão foi contornada com uma placa colocada no pedestal do monumento e que lembra o destino amargo e das condições de vida dos escravos. Esse episódio, porém, chama a atenção ao ambiente sócio-político-cultural em que se inseriu Prosper d'Épinay e que oferece caminhos para exames do círculo social em que viveu na Europa.


A vida de Prosper d'Épinay apresenta-se quase que como um exemplo de um filho de família de posses e de consciência de posição social proveniente de um mundo colonial passado, orientada segundo padrões francêses, mas que se sentia obrigada a defender os seus privilégios sob a nova situação de domínio político. Prosper d'Épinay foi levado a Paris com apenas três anos, de lá retornando com a morte de seu pai. Frequentou uma escola na sua cidade natal de Pamplemousses, ou seja, cresceu em ambiente interiorano mas de consciência aristocrático-rural, impregnado pela nostalgia da antiga Île de France. Prosseguiu-os em escola de elite da capital, o Pensionato Snellgrove. As artes ofereceram-se como caminho por excelência para o seu reconhecimento social.


Estudou a partir de 1851 em Paris, com curta interrupção em 1857, aperfeiçoando-se em escultura no atelier de Jean-Pierre Dantan (1800-1869), escultor que tornou-se conhecido também como caricaturista. Foi aqui colega de Jean-Baptiste Gustave Deloye (1838-1899). A sua formação em Paris deu-se, portanto, à época de Napoleão III, caracterizada pela ascensão de novos grupos sociais, por artistas provindos de diversas regiões do mundo, e marcada por sinais de ambições de nobilitação e de exteriorização de poder econômico (Veja texto em número anterior desta revista).

Paradoxos do Hispano-orientalismo


Os estudos e a carreira de Prosper d'Épinay apresenta similaridades com a vida de brasileiros que estiveram em Paris. Também êle passou a ver o desenvolvimento de sua vida artística a partir de orientações e critérios franceses, em parte explicados pela história político-cultural da França. Seguiu assim a quase que exigência, na época, de um período de aprendizado na Itália, e deixou-se envolver pelo fascínio francês relativamente à Espanha e ao Oriente. Estudou em Roma, com um colega de sua própria geração, Domenico Amici (*1808), sendo pensionista da Villa Médicis. Manteria posteriormente um atelier em Roma.


Na Itália, fêz amizade, entre outros com Henri Régnault (Veja texto em número anterior desta revista). Com isso, ganhou fascínio pelo mundo da Antiguidade e aproximou-se de uma esfera marcada ao mesmo tempo por patriotismo francês e admiração pela cultura extra-européia, sobretudo do Norte da África e da Espanha.


Prosper d'Épinay parece ter passado aqui por uma situação singular nas suas relações com concepções do Oriente. Êle próprio provinha de uma ex-colonia francêsa do Índico, que tinha sido marcada pelo comércio e pelas relações com os países do Oriente, pertencia, porém, a uma família de passado colonial que sofrera com as novas condições criadas pela administração britânica e que trazia grandes contingentes de indianos a Maurício, colocando um processo em vigor que representava uma gradual deseuropeização. A consciência histórica européia-colonial de Prosper d'Épinay era porém tão forte, a sua visão do cunho europeu da sua ilha natal tão acentuado que esteve em condições de aproximar-se do fascínio orientalista dos francêses de sua época. Chegou a posar como marrocano para uma obra do pintor catalão Marià Fortuny (1838-1874), mantendo-se particularmente vinculado ao movimento artístico espanhol. Com o seu casamento, em 1869, com Claire Mottet de La Fontaine (1844-1936), filha de um capitão a serviço do Nizam de l'Hyderabad, intensificou-se a imagem "oriental" de Prosper d'Épinay e sua família.

Humorismo e "L'Innocence"


Provindo porém de uma colonia britânica - apesar de sua cultura predominantemente francêsa - Prosper d'Épinay possuía vínculos com a Inglaterra, onde também o seu pai atuara, transferindo-se para Londres em 1864. O sucesso que aqui obteve poderia ser examinado sob o aspecto de uma análise de processos de identidade de artistas provenientes de colonias e ex-colonias na Europa do século XIX.


Não apenas o desejo de comprovação e demonstração de conhecimentos, técnicas e de nível social e cultural parece ter marcado a vida e a carreira de vários daqueles que procuravam reconhecimento e integração no Velho Mundo, mas sim também uma proximidade à cultura popular, de divertimento, verve e humor. A imagem do creolismo apresentava assim não apenas traços - e certamente preconceitos - relacionados com o desejo de aristocratismo, ostentação e de exagêros de expressão, mas sim também com mundanismo e vida alegre. Se vários músicos brasileiros demonstraram uma tendência acentuada para o teatro cômico, para o vaudeville, para a opereta e para a vida musical de cafés e bares em Paris (Veja número anterior desta revista), Prosper d'Épinay, sob o pseudônimo de Nemo, alcançou renome como caricaturista e humorista. A sua visão caricaturista, que poderia ser analisada sob um ponto de vista psicológico, talvez resultado de uma ironia mordaz como forma de manter-se superior, manifestou-se tanto em trabalhos dedicados à política européia como em caricaturas da própria sociedade mauriciana (por ex. La cour du roi Pétaud e La Place d'Armes).


A sua inserção na metrópole colonial do Império Britânico parece ter sido decisiva para o seu sucesso em meios aristocráticos e na própria colonia. Renome como escultor adquiriu sobretudo com a sua estátua de L'Innocence, encomendada pelo Duque de Luynes para o castelo de Dampierre. Com esse tema, Prosper d'Épinay alcançava popularidade justamente com um tema decantado na época e associado a Maurício através de Paul et Virginie (Veja artigo a respeito nesta edição).


Bustos de membros da família real, como o da princesa de Gales, Alexandra da Dinamarca, surgiram nessa época, assim como a sua primeira escultura de maior relêvo - a do seu pai -, e a estátua de Sir William Stevenson (1805-1863), governador de Maurício (1867). Uma de suas obras mais admiradas na Inglaterra foi a de Hannibal menino, lutando contra a águia, mais tarde colocada na embaixada britânica em Paris, uma escultura que pode dar margens a interpretações no contexto político-cultural da época.


Prosper d'Épinay não foi o único mauriciano que alcançou renome na Europa. Além de músicos que desempenharam papel relevante na vida musical de Paris (Veja artigo nesta edição), também poderiam ser lembrados nomes conhecidos de literatos e cientistas. Poucos alcançaram, porém, como Prosper d'Épinay um renome de "escultor de reis e rainhas", ou melhor, de nomes de pessoas de círculos sociais de maior prestígio dos quais soube aproximar-se. Somente estudos mais diferenciados poderão possibilitar interpretações justas quanto a suas posições políticas (próximo a círculos monárquico- legitimistas do Conde de Chambord).


Prosper d'Épinay continuou a ser altamente considerado na sua terra natal, de lá recebendo encomendas, entre elas, por parte da municipalidade de Port Louis, em 1881, de monumentos dedicados a personagens, figuras e acontecimentos de significado para a identidade cultural da ilha, entre êles Paul et Virginie (Veja imagens no artigo a respeito nesta edição), Sylvain le piqueur, e Cyclone de 1806.


Assim como brasileiros que viviam na Europa na época, Prosper d'Épinay dedicou-se a colecionar obras relativas à história, à geografia e à economia de Maurício, montando uma biblioteca considerável, que seria posteriormente adquirida pela cidade de Curepipe e que constitui hoje fundo da biblioteca Carnegie, instituída em 1920. Sob esse aspecto, parece haver paralelos com aqueles brasileiros que, na época, também se empenharam na Europa pelo desenvolvimento dos estudos brasileiros, sobretudo Santa-Anna Nery (Ver texto no Nr. 121 desta revista).


(...)

F.A. Azevedo e grupo redatorial sob a direção de A.A.Bispo


  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a utilizar-se de designações similares.

 






  1. Monumento a W. Stevenson e a Adrien D'Epinay, Port Louis.
    Fotos H. Hülskath

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 123/15 (2010:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho científico
órgão de
Brasil-Europa: Organização de estudos teóricos de processos interculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg.1968)
- Academia Brasil-Europa -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2010 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2549


©


Elite colonial e creolos na cultura européia

Prosper d'Épinay (1836-1914) - Comendador da Ordem da Rosa



Encerramento do ano
França-Brasil/Brasil-França 2009 da Academia Brasil-Europa
no contextodo seu programa de estudos dedicado ao complexo temático
Cultura e Natureza
Pamplemousses, Ilhas Maurício, 2009
sob a direção-geral de A.A.Bispo

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________