Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 121/13 (2009:5)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2490


 


Brasileiros em Paris após a Primeira Guerra Mundial

João de Souza Lima (1898-1982) e Alípio Dutra (1892-1964)
Paulistanismo e integração no universo cultural francês em atmosfera de euforia





Foto A.A.Bispo 1980. Copyright
Este texto apresenta uma súmula de ciclo de estudos dedicados às relações França-Brasil/Brasil-França realizados em diferentes cidades francesas em 2009. Foram aqui lembradas as preocupações pelos estudos culturais franco-brasileiros na linha de tradição que remonta à época da fundação da sociedade dedicada à renovação dos estudos culturais (Nova Difusão 1968), a atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa.


Na Europa, a partir de 1974, esses trabalhos e iniciativas receberam a colaboração de muitos estudiosos franceses no decorrer das décadas, e, entre os brasileiros residentes na França, deve-se salientar Luíz Heitor Correa de Azevedo pelo seu empenho no desenvolvimento institucional e pela sua participação em muitas iniciativas. Ao encontro de Royaumont em 1984 sob sua égide remontam impulsos que marcaram a orientação antropológico-cultural do ISMPS e da ABE.Os  trabalhos seguiram impulsos do Colóquio Filosofia Francesa Contemporânea e Estudos Culturais pela morte de J. Derrida (2005), do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004) e eventos precedentes, devendo lembrar-se da Primeira Semana de Música França-Alemanha realizada por iniciativa brasileira em 1983 em Leichlingen/Colonia.


Pareceu ser oportuno, para sumarizar e favorecer o prosseguimento ao trabalhos em seminários europeus, recordar alguns nomes de brasileiros e de franceses que atuaram sobretudo em Paris na contextualização de sua época. Essa aproximação antes pessoal facilita os estudos para estrangeiros e traz à consciência o papel mediador desempenhado por muitos brasileiros que estudaram e viveram na França, trazendo impulsos ao Brasil que devem ser analisados sob o pano de fundo da época em que estudaram e atuaram. Os estudos tiveram como objetivo principal oferecer uma contribuição à formação de uma consciência histórica adequada àqueles residentes na França ou descendentes de brasileiros.






Foto A.A.Bispo 1980. Copyright
Os anos posteriores à Primeira Guerra Mundial são de extraordinária relevância para os estudos histórico-culturais em contextos internacionais. Apesar das dificuldades decorrentes do conflito, foram marcados de início por um estado de espírito triunfante nos países vitoriosos e sobretudo na França, por uma nova auto-consciência, pelo predomínio de tendências culturais e artísticas que correspondiam à nova ordenação de poder na Europa e pela difusão sistemática da língua e da cultura francesas.

A nova situação pode ser vista sob muitos aspectos em paralelo àquela posterior à Guerra Franco-Prussiana de 1870/71, agora porém sob condições inversas.

Em 1870/71, era a França que havia sido derrotada, perdera a Alsácia-Lotríngia e era humilhada com a proclamação do Império Alemão em Versailles. Agora, era a Alemanha que perdera a Guerra, a Alsácia e a Lotríngia passavam novamente à França, e a Alemanha era humilhada na Conferência de Paz de Versailles, o que levaria novamente a desenvolvimentos catastrofais.

A Primeira Guerra Mundial, porém, havia alcançado dimensões internacionais muito maiores do que aquelas de 1870/71, e nela participaram nações de diferentes continentes; correspondentemente globais foram as suas repercussões, fato manifestado nas repercussões internacionais da predominância cultural francesa, sobretudo naqueles países que se haviam mostrado aliados. (Veja a respeito o número anterior desta revista)

Tal introdução sumária não pode ofuscar a visão para as necessárias diferenças a serem feitas na comparação das situações. Apesar de todo o simbolismo dos paralelos entre 1870/71 e 1918, na época até mesmo calculadamente utilizado na construção de imagens e em interpretações, os pressupostos eram agora outros. As décadas que haviam passado desde o início da Terceira República, em 1871, com todas as suas continuidades e rupturas, coerências e paradoxias não podiam ser apagadas, inclusive nas relações da França com os países latinoamericanos.

Impõe-se, assim, um particular cuidado diferenciador nas análises dessa época. Essa preocupação deve valer tambem para o estudo das relações culturais internas da Europa nos seus elos transatlânticos, em particular naturalmente para as relações  franco-alemãs.

Após a Guerra Franco-Prussiana, a França experimentou um esforço de reconscientização quanto a uma identidade nacional francesa e às suas expressões na cultura e nas artes. Essa preocupação por um desenvolvimento nacional próprio de diferentes áreas de conhecimento, de estilos, formas, gêneros e repertórios, destinado a criar condições para uma melhor concorrência perante a predominância cultural alemã em algumas esferas culturais, em particular na música, teve uma de suas expressões na criação da Société Nationale de Musique, em 1871 (Veja artigo a respeito nesta edição).

No decorrer das décadas seguintes, porém, sobretudo após os anos 80, ocorreram novas aproximações, cooperações, interferências e até mesmo uma intensificação de elos, levando, na esfera musical, a um verdadeiro culto a Bach, Beethoven e sobretudo a Wagner. Isso não impediu que tensões permanecessem e que não houvesse posições oponentes e até mesmo polêmicas. (Veja respectivos artigos nesta edição).

Agora, com a situação política invertida, embora a problemática franco-alemã na cultura e nas artes continuasse presente, impusera-se a soberania da cultura e da musica francesas. Essa situação poderia ser vista, com as necessárias reservas, como uma concretização de aspirações nacionais de décadas e da vitória de determinadas correntes do pensamento e das artes.

Artistas e músicos, com suas concepções, tendências estilísticas e obras, que se inseriam nessa continuidade e que agora correspondiam ao espírito do tempo, passaram a gozar de situação de prestígio e de influência, outros, porém, cairiam no esquecimento ou passavam a ser vistos como representantes de um passado encerrado.

Essa situação explica também ocorrências no mundo extra-europeu. Estrangeiros, entre êles brasileiros que estudaram e atuaram na França em décadas anteriores, alcançando consideráveis méritos e situações de prestígio, cairam no esquecimento ou foram inseridos em correntes superadas da vida cultural e artística; outros, que haviam-se vinculado a tendências que se mostraram vitoriosas, tiveram a possibilidade de acompanhar as transformações e alcançaram novo significado, tornando-se os ganhadores do processo histórico.

Curiosamente, a historiografia de alguns países, inclusive no Brasil, passou a distinguir aqui em geral duas esferas, aquela dos artistas que teriam sido vinculados com a Europa, no passado, orientando-se em modêlos europeus e seguindo tendências européias, e aquela dos modernos, que finalmente teriam procurado e criado expressões de cunho nacional, libertando-se da imitação ou do jugo da Europa, como se também estes não tivessem estado ligados - e profundamente - com acontecimentos e correntes estéticas européias.

Não se tem considerado suficientemente o elo, aparentemente paradoxal, entre as tendências estéticas dos anos vinte na América Latina e aquelas próprias a processos de cunho identificatorio na França.

Outro aspecto aparentemente paradoxal que deveria ser considerado é o do conservatismo nacional existente sob a aparência de modernidade no complexo das diferentes tendências dos anos de após-Guerra.

Significativa neste contexto foi a política de Alexandre Millerand (1859-1943), que assumiu a Presidência como sucessor de Paul Deschanel (1855-1922), em 1920.

No passado, Millerand havia sido destacado político de orientação socialista; tomara posições progressistas, por exemplo no caso Dreyfus, e fora ministro do Govêrno de esquerda, de 1899 a 1902. Passou porém cada vez mais a defender posições conservadoras, sendo excluído do partido socialista, em 1904, e abandonando da Maçonaria. Após o término da Guerra, desempenhou a função de um comissário geral para a reintegração da Alsácia-Lotríngia. Foi o autor do programa eleitoral do Bloc national, que seria vencedor em 1919. Após a vitória da esquerda, em 1924, foi obrigado a retirar-se do poder, fundando a Ligue républicaine.

Nova situação político-cultural e nova francofilia

O Brasil pertenceu aos países que passaram a gozar de especial simpatia dos franceses. Explica-se, assim, a experiência particularmente positiva que ganharam os muitos brasileiros que se dirigiram a Paris nesses anos, o sentimento gratificante de aceitação pessoal, cultural e artística que tiveram, o afeto que desenvolveram para com a França e sua cultura, e que seriam mantidos posteriormente no Brasil. A francofilia dessa geração foi muito mais intensa do que aquela de brasileiros que haviam estudado e atuado em Paris no passado. Foi também uma francofilia de outro teor, baseada na auto-consciência de um aliado, e caracterizada pela inserção em determinado estado de espírito vitorioso de euforia, de renovação de situações e de tendências, de abertura internacional dentro da nova configuração política e político-cultural sob a égide francesa.

O significado da década de 20 tem sido reconhecido em estudos histórico-culturais, também relativamente ao Brasil. Tudo indica, porém, que o contexto internacional não tem sido suficientemente considerado. Sobretudo, uma excessiva focalização e a apreciação unilateral de alguns fatos - tais como a Semana de Arte Moderna, em São Paulo (1922) - e de algumas personalidades, tais como Heitor Villa-Lobos (1887-1959), surge como desfavorável para o desenvolvimento de estudos mais diferenciados da presença cultural do Brasil em Paris e das consequências da situação cultural francesa para o próprio país.

Arquivo A.B.E.
Dos brasileiros que mereceriam ser particularmente alvo de atenção na história das relações franco-brasileiras do após-Guerra encontram-se aqueles que pertenceram ao primeiro grupo que se dirigiu a Paris após o conflito mundial, em particular João de Souza Lima. Embora já havendo brasileiros que viviam e atuavam na capital francesa há anos, foram êles que vivenciaram o impacto inicial da favorável situação e que co-prepararam, com os seus esforços e sucessos, o meio que receberia outros conterrâneos.

O pesquisador possui, no caso de João de Souza Lima, a felicidade de poder basear-se na sua autobiografia, repleta de pormenores guardados pela memória, e que é ela própria expressão do espírito de uma época, no otimismo eufórico que a transpassa (Souza Lima, Moto perpétuo: a visão poética da vida através da música: autobiografia do maestro Souza Lima, São Paulo: IBRASA/Instituição Brasileira de Difusão Cultural, 1982). Os fatos por êle descritos nessa obra são aqui considerados à luz de impressões e trocas de idéias do editor com Souza Lima a partir de um primeiro encontro em fins da década de cinquenta e do convívio entre as respectivas famílias através dos anos.

Paulistanismo e o "Clássico"

Nascido em São Paulo, em rua do centro da cidade que permaneceria na memória urbana como das mais significativas para estudos de tradições urbanas (Tabatinguera), tendo posteriormente vivido em chácara também tradicional, situada em bairro hoje descaracterizado na sua feição paisagística e histórica, João de Souza Lima poderia ser considerado como um representante de uma esfera da cultura paulistana de lastro histórico em época de intensa transformação da urbe. O seu avô era português, de procedência pouco conhecida, pois retornado a Portugal, a sua avó alemã ou de origem alemã. O paulistanismo de João de Souza Lima provinha antes do lado materno, uma vez que a sua mãe pertencia à família de Azevedo Marques, conhecida pelos seus membros destacados em várias áreas de atividades, devendo-se lembrar sobretudo de Manuel Eufrásio de Azevedo Marques, autor de fundamental obra para os estudos paulistas (Apontamentos Históricos, Geográficos, Biográficos, Estatísticos e Noticiosos da Província de São Paulo seguidos da Cronologia...2 Tomos, São Paulo 1954).


Manuel Eufrásio de Azevedo Marques

 
A consciência de identidade cultural paulistana une-se aqui a um despertar da consciência histórica relativamente ao Estado e à cidade. Esse paulistanismo de origem e formação poderia ser visto como um ponto de partida para a apreciação de sua personalidade e atuação. Apesar da influência nos modos de vida e no convívio humano que receberia na França, manifestada, entre outros aspectos, no cuidado por permanente distinção no porte e no trato, conservaria por toda a vida qualidades humanas de modéstia, simplicidade e afabilidade que um estudioso empírico da cultura pode constatar em personalidades de núcleos urbanos menores e mais tradicionais.

Parece ser paradoxal que um músico, cuja imagem seria de tal forma marcada pela cultura francesa, tivesse obtido inicialmente uma formação de orientação alemã. Na sua família, onde todos os seus muitos irmãos receberam formação musical, obteve orientação musical sobretudo de seu irmão, José Augusto, pianista que foi aluno de Gustav Wertheimer e Felix Otero (1868-1946).

Se o primeiro era de origem alemã, o segundo obtivera a sua formação na Alemanha, tendo estudado no Conservatório Stern, de Berlin, entre outros com Hans Bischoff (1852-1889),  Max van der Sandt (1863-1934) e Ludwig Bussler (1838-1901). Sob a recomendação de Felix Otero, João de Souza Lima desenvolveu o seu aprendizado escolar na Deutsche Schule, onde também aprendeu canções alemãs que passaram a ser cultivadas em meio familiar. Havia na sua família um cultivo extremado de obras de J.S.Bach, um verdadeiro "culto" ao compositor. Essa orientação teve prosseguimento quando passou a ser orientado por Luigi Chiaffarelli (1856-1923), em 1910, uma vez que também aqui conviveu com um professor marcado pela sua formação alemã, realizada em Stuttgart, com Siegmund Lebert (1822-1884). Significativamente, Souza Lima participava de concertos escolares que eram realizados no Club Germânia da comunidade alemã de São Paulo.

Seria porém inadequado considerar a formação de Souza Lima sob a perspectiva dos estudos relacionados com a colonia e a imigração alemã, ou mesmo sob o aspecto das relações histórico-culturais entre a Alemanha e o Brasil.

O culto a Bach que êle próprio mencionou ter existido na sua formação familiar deve ser considerado à luz da compreensão de Bach da época, remontante à sua recepção no mundo românico, em particular francês do século XIX, onde a atenção era dirigida sobretudo a associações de sua imagem e obra com uma concepção do Clássico no sentido do modelar, do paradigmático, não primordialmente do epocal e estilístico. Os dados transmitidos por Souza Lima a respeito de sua formação necessitariam ser analisados antes como sinais de uma procura de orientação segundo critérios de exemplaridade, até mesmo de uma determinada concepção de cultura dirigida segundo critérios vistos como normativos, ao aperfeiçoamento humano e à elevação individual e social, à "classe", do qual o aprimoramento técnico no domínio instrumental surgia antes como caminho e expressão.

Participação comunitária, cultura popular e de imigração

Essa aspiração ao Clássico, essa procura do modelar e do exemplar na formação de Souza Lima não deveria ser vista primordialmente como expressão de uma separação de esferas de vida segundo categorias do erudito e do popular.

A sua paulistanidade, a sua inserção na vida da comunidade que procurava conscientizar-se de sua história e identidade em fase de rápidas transformações na urbe e na sua configuração populacional não permitia um exclusivismo e não se coadunava com uma ausência de participação comunitária segundo as suas práticas e formas de expressão.

Assim, é o próprio Souza Lima que testemunha que a sua aptidão de leitura à primeira vista, que tanto causaria admiração na Europa, não teria sido adquirida somente através do exercício regular de leitura de partituras sob a influência de seu irmão, mas sim também através da prática contínua, determinada pelas exigências de momento com que se via confrontado como acompanhador e pianista de conjuntos em cinemas e bailes.

É este papel participativo na comunidade paulistana que permite explicar o fato aparentemente paradoxal de que uma personalidade, que como poucas outras iria adquirir modos de vida e uma imagem de refinamento e cultivo não visse barreiras quanto à atuação profissional no âmbito da música popular, chegando até mesmo a desempenhar um papel significativo na história de sua difusão como diretor artístico de emissoras de rádio e televisão.

A prática musical popular de Souza Lima manifestou-se também na sua produção musical de juventude, quando compôs peças nos gêneros da moda, entre elas tangos, maxixes e valsas, algumas das quais alcançaram considerável popularidade (por ex. a valsa Aracy). Como compositor de tangos e valsas chegou a ganhar concursos. Segundo o seu depoimento, uma de suas peças, o tanguinho "Amor Avacalhado", teria sido ouvido no Brasil por Darius Milhaud (1892-1974), em 1917, e aproveitado na íntegra no seu Le Boeuf sur le Toit. Essa informação adquire especial significado para para os estudos histórico-musicais em contextos internacionais, uma vez que o papel da música popular brasileira na obra Darius Milhaud, já analisado sob diversos aspectos, tem sido considerado a partir de sua inserção no ambiente do Rio de Janeiro e de seus compositores, sobretudo Ernesto Nazareth (1863-1934). Conclui-se desse dado que Souza Lima, ao chegar à França, já teria uma de suas produções considerada por um compositor francês, e isso, singularmente, como compositor de música popular.

A sua inserção na vida comunitária paulista deve ser ainda considerada sob o aspecto da transformação cultural por que a cidade passava, sobretudo devido à imigração italiana. Souza Lima, que procurou obter conhecimentos de instrumentos de corda através do aprendizado de violoncelo com Renato Saverio Simoncelli e realizou seus primeiros estudos de harmonia e composição com Agostino Cantú (1878-1943), salienta que o papel desempenhado por este último na formação de músicos e compositores de São Paulo não tem sido considerado com a devida justiça. Após uma primeira tentativa composicional, - uma Ave Maria composta a pedido para uma peça teatral -, João de Souza Lima parece ter desenvolvido considerável atividade como compositor nessa época, infelizmente pouco conhecida. Êle próprio considerava uma Berceuse como uma de suas primeiras composições de maior expressão, seguida por um Minueto escrito para concurso promovido pelo Centro Musical de São Paulo.

Não seria correto, porém, ver nessa formação de Souza Lima um sinal de sua inserção na história cultural ítalo-brasileira. Antes poder-se-ia considerar aqui um caminho que pode elucidar um dos aspectos ou uma parte de sua diversificada obra, ou seja a existência de composições que manifestam o aprendizado de matérias teóricas e a assimilação de convenções sem maiores preocupações por inovações estéticas.

Ao contrário de vários outros pianistas-compositores que haviam sido formados na Europa e que se afiliaram composicionalmente a correntes de seu tempo, mantendo-se antes presos a tradições do passado na sua prática pianística, poder-se-ia talvez dizer que Souza Lima vincula-se como pianista às expressões mais avançadas de sua época, permanecendo antes conservador ou mesmo convencional como compositor. Seria, porém, injusto considerar sem as necessárias diferenças a sua obra criadora, até hoje pouco estudada no seu todo.

Processo iniciático ao Romântico em tradição francesa. José de Freitas Valle (1870-1958) e Xavier Leroux (1863-1919)

Um dos aspectos que tem sido considerado nos estudos culturais diz respeito às relações entre a excelência no domínio instrumental e a ascensão social. Também Souza Lima, como pianista que passara a destacar-se pela sua técnica e aptidões de leitura à primeira vista, sendo convidado a apresentar-se em reuniões familiares, encontrou acesso a círculos influentes da sociedade de sua época. Através de seu amigo Mário Amaral, foi introduzido no ambiente de sua família, a do fazendeiro José Estanislau do Amaral e de sua esposa Lídia, pianista e compositora, progenitores, entre outros, de Tarsila do Amaral (1886-1973). João de Souza Lima casar-se-ia com Maria, uma das filhas do filho mais velho dessa família.

Através de Waldemar Otero, filho de Felix Otero, foi introduzido no círculo do advogado, político e escritor José de Freitas Valle que, na sua residência, a Villa Kyrial, promovia reuniões de artistas, intelectuais e políticos. O testemunho de Souza Lima representa uma importante contribuição para estudos do papel desenvolvido pelo círculo de Freitas Valle, pois oferece subsídios para a sua consideração sob critérios teórico-culturais referentes a situações de transformação performativa de identidades.

O círculo da Villa Kyrial era configurado como uma espécie de Ordem Cavaleiresca, com títulos, hierarquia e cerimonial próprios, com uso de elementos encenatórios e de dramatização de gestos e posturas, com o uso de língua especial, no caso o espanhol, com ritos de cunho iniciático para novos membros, com a integração de seus membros e convidados em sistema estruturado de diferenciação dos dias da semana e de horas de domingo e com diversas associações simbólicas com a Idade Média.

Tais referências ao simbolismo e à organização das atividades da Villa Kyrial não são simplesmente de interesse secundário como curiosidades de uma época. Elas indicam estruturas simbólicas nas quais os artistas e intelectuais participavam e através das quais passavam a se integrar em comunidade orientada por outras concepções. Os mecanismos colocados aqui em ação não levavam a uma identificação com o mundo medieval, como uma consideração superficial de suas expressões poderia fazer supor. Levavam sim a uma identificação com uma corrente cultural remontante ao Romantismo na sua redescoberta do passado medieval e, como o uso do castelhano demonstra, na fascinação que exercera a Espanha na França no decorrer de um processo de reconscientização dos valores da latinidade. Não se pode interpretar tal singular cerimonialismo como expressão de atitude passadista e tradicionalista. Tratava-se, pelo contrário, do conhecimento e do cultivo de novas tendências artísticas e culturais, isso, porém, a partir da identificação com uma outra corrente de continuidade histórica, a nacional francesa.

Nesses encontros foram apresentadas muitas obras em primeira audição no Brasil, entre elas, em versão para piano a quatro mãos, La Mer e Iberia, de Claude Debussy (1862-1918). Dentre os artistas em passagem por São Paulo que visitaram o círculo da Villa Kyrial cumpre mencionar aqui Xavier Leroux, ex-aluno de Jules Massenet (1842-1912) e Théodore Dubois (1837-1924), vinculado a correntes estéticas impregnadas de aspirações nacionais francesas e cuja expressão havia sido a Société Nationale de Musique.

Freitas Valle era professor de francês no Ginásio do Estado, profundo conhecedor do idioma e autor de poesias em francês sob o pseudônimo de Jacques D'Avray. Alguns delas foram postas em música por Souza Lima (Amour avide; La belle aux fleurs), e a sua execução perante Xavier Leroux determinou-lhe o futuro, uma vez que esse o convidou a participar de sua classe de composição no Conservatório. Dessa sugestão resultaria a bolsa que possibilitou a ida de Souza Lima à França. Por pertencer à comissão responsável pelo Pensionato Artístico de São Paulo, Freitas Valle pôde exercer uma influência favorável a essa concessão. Antes de sua partida, o pianista apresentou-se em concerto no Rio de Janeiro, recebendo pareceres favoráveis da crítica e incentivos de Alberto Nepomuceno (1864-1920). À vespera de sua partida, realizou um recital de despedida e que incluiu obras próprias para canto, dois pianos e trio.

Viagem de artistas brasileiros a Paris em 1919

João de Souza Lima partiu para a França a 4 de outubro de 1919, ou seja, no ano da Conferência da Paz de Versailles, que se seguiu ao término da Primeira Guerra Mundial. Com êle dirigia-se à França o pintor Alípio Dutra e família, de Piracicaba, e que já havia estado na Europa pelo Pensionato Artístico de São Paulo, em 1913, além do pintor Nelson Gonçalves e esposa, da pianista Lúcia Branco, com mãe e irmã, e da cantora Pureza Marcondes. Souza Lima, Lúcia Branco e Pureza Marcondes eram bolsistas do Pensionato Artístico. Souza Lima levava cartas de apresentação de Chiaffarelli e de Guiomar Novaes (1894-1979) a Isidore Philipp (1863-1958). Guiomar Novaes havia estudado em Paris com esse professor antes da Guerra (Veja artigo em número anterior desta revista).

A viagem, passando pelo Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Las Palmas e Lisboa, em direção a Boulogne-Sur-Mer, foi realizada a bordo do navio Gelria. Este era um dos vapores dos Países Baixos que realizavam de seis em seis semanas a viagem entre Buenos Aires e Amsterdam ou Rotterdam. Dois meses mais tarde, o Gelria entraria na história por transportar os soldados alemães que se encontravam internados no Chile.

Durante a viagem, a bordo, os músicos realizaram um concerto motivado pela data do 12 outubro. O programa constou, entre outras obras, de trechos de ópera de Saint-Saens (1835-1921) e cantos de Modest Mussorgski (1839-1881), por Pureza Marcondes, obras de salão executadas por Lúcia Branco; e composições de F. Chopin interpretadas por Souza Lima.

No porto de chegada, na Bretanha, assim como na viagem a Paris, Souza Lima permaneceu junto à família de Alípio Dutra, já familiarizado com a Europa. Após alguns dias, continuou este a sua viagem a Bruxelas, onde trabalharia no Escritório Comercial de São Paulo e, mais tarde, na França, em meios consulares. As demais viajantes decidiram igualmente prosseguir a viagem a Bruxelas, onde o ambiente era mais tranquilo do que o Paris de pós-Guerra. Também Souza Lima cogitava em transferir-se para Bruxelas, uma vez que não encontrava moradia e piano para estudar. Conviveu por algum tempo com o casal Nelson Gonçalves. Aproveitou uma estadia de Alipio Dutra para, com êle, devido a seu conhecimento do idioma, procurar Isidore Philipp.

A caminho da integração. Vida familiar francesa e vida cultural em Paris

Tem-se salientado a função do convívio de estrangeiros com famílias que os recebiam nos anos posteriores à Primeira Guerra para o estreitamento de laços, o conhecimento de valores humanos e a difusão da cultura francesa (Veja o número anterior desta revista).

Devido às dificuldades de alojamento na situação de pós-Guerra, Isidore Philip recomendou Souza Lima a uma de suas ex-alunas e amiga, Madame Laurens, que vivia juntamente com a sua mãe, Madame Petit Gérard, e duas filhas. Já residia na sua casa uma norueguesa. Souza Lima constatou, nessa pensão familiar, um grande interesse pelo Brasil e seus costumes. Devido a suas aptidões musicais, sobretudo de leitura à primeira vista, conquistou a simpatia da família, sentindo-se integrado e tornando-se gradualmente a ela ligado quase que por laços de parentesco. A primeira orientação para o aluguel de um piano foi dada pela sra. Laurens, que o dirigiu ao diretor da casa Erard.

Após uma semana, deu-se a primeira aula com Isidore Philipp. Souza Lima executou obras de Bach, Chopin. Foi organizado um programa de trabalho e de condução dos estudos: seis horas diárias, sendo três de exercícios mecânicos, de técnica, três às obras de interpretação e acabamento. Os estudos indicados eram todos de sua revisão ou autoria.

Ao lado de seus estudos de piano, Souza Lima procurou participar o mais intensamente possível da vida musical parisiense, orientando-se pelas revistas semanais La Semaine Musicale e Le Guide du Concert. Um aspecto que não deve ser negligenciado, também com relação a Souza Lima, é aquele da necessidade sentida por estudantes em ampliar os seus conhecimentos gerais e conhecer a vida cultural diversificada da capital francesa.

Assim, segundo o seu testemunho, passou a visitar regularmente museus, em particular o Louvre, assistindo também a conferências de história das artes e estética, entre elas aquelas pronunciadas por Louis Horticq (1875-1944). Ao lado do seu interesse pela história da arte, Souza Lima dedicou-se também a conhecer o movimento literário de Paris, visitando as grandes livrarias. Foi orientado nesse sentido por um médico, que lhe indicou a Livraria Fischbacher. Aqui deu início à aquisição de livros que iriam constituir futuramente a sua volumosa biblioteca. Quanto ao teatro, teve a oportunidade de assistir a apresentações de artistas de renome, entre eles Sarah Bernhardt (1844-1923), Jacques Copeau (1879-1949), Charles Dullin (1885-1949) Louis Jouvet (1887-1951).

"Visitando com regularidade e sempre me instruindo com livros de análise das obras, de autoria de grandes mestres, a minha admiração, que se foi fazendo num crescendo maravilhoso,  criou-me uma base de conhecimento, assim como desenvolveu minha sensibilidade artística de maneira excepcional, o que se tornou indispensável e de todo o proveito até para as minhas interpretações musicais (...)" (op.cit. 62)

Quanto à pintura, além da visita dos Salons, Souza Lima procurava visitar ateliers de pintores e escultores. Em companhia de Alipio Dutra,visitaria provavelmente em 1926/27 o atelier do escultor Paul Landowsky (1875-1961)  à época que trabalha na estátua do Cristo Redentor para o Corcovado segundo planos do engenheiro Heitor Silva Costa (1873-1947) e cujo projeto havia sido forjado por ocasião dos 100 anos da Independência do Brasil, em 1922. Landowsky era personalidade influente na vida artística de Paris como diretor da Académie des Beaux-Arts. Souza Lima teria também a oportunidade de visitar o atelier de Pablo Picasso (1881-1973), aqui em companhia de Tarsila do Amaral.


Marguerite Long (1874-1966) e a personalização da sonoridade

A personalidade que marcou de forma preponderante a formação pianística, as concepções estéticas e músico-pedagógicas de Souza Lima foi Marguerite Long (Marie-Charlotte Long), por muitos considerada como a mais significativa pianista francesa do século XX. Através de Souza Lima - e de outros brasileiros que com ela tiveram contato - essa pianista alcançaria extraordinário renome no Brasil e exerceria considerável influência no ensino do piano no país. Marguerite Long inseria-se em longa tradição do Conservatório de Paris, onde estudara com Henri Fissot, obtendo o primeiro prêmio em 1891. Fora aluna particular de Antoine François Marmontel (1816-1898), professor de piano no Conservatório de 1848 a 1887. Marguerite Long lecionava no Conservatório desde 1906, cargo que exerceu por várias décadas, até 1940. A partir de 1921, passou a lecionar também na École Normale de Musique.

Com o seu estudo junto a Marguerite Long, João de Souza Lima inseriu-se numa escola de pianistas que incluiu artistas de diversas nações e de diversas gerações, entre outros, Jacques Février (1900-1979) e Samson François (1924-1970). A sua mestra era relacionada com as mais destacadas personalidades da vida musical francesa, entre elas com Claude Debussy (1862-1918), Gabriel Fauré )1845-1924) e Maurice Ravel (1875-1937). Sobretudo este último deve ser particularmente considerado, uma vez que lhe dedicou o Concerto para Piano em Sol Maior, por ela executado em primeira audição. Também foi Long que executou pela primeira vez o seu Le Tombeau de Couperin.

"Informei-me sobre a localização da classe de Madame Long e para lá me encaminhei, encontrando os jovens que iam ser meus futuros colegas, todos já no amplo corredor envidraçado que ladeava as salas de aula, à espera da mestra. Momentos depois ela chegava, acompanhada de sua assistente, Mademoiselle Léon. Uma vez todos na classe, ouvimos atentamente as palavras encorajadoras e de boas-vindas da mestra, que nos indicou, depois de ouvir rapidamente um por um, o trabalho a ser feito, como deveria ser feito e também uma lista não só de estudos técnicos, como de algumas peças. Essa indicação foi feita muito inteligentemente, depois de fazer um verdadeiro diagnóstico da situação pianística de cada aluno. As aulas eram dadas três vezes por semana, com duas horas de duração. Os quatorze alunos (número fixo para cada classe) foram divididos em três grupos. Cada dia da semana era dedicado só a um, sendo que os outros eram obrigados a estar presentes para ouvir as explicações, as sugestões (...). Ficava eu admirado ao constatar com que inteligência, com que argúcia, com que penetração eram descobertos os problemas, as falhas, o que cada um necessitava, e com que boa vontade e carinho eram feitos os reparos, sempre com a intenção de animar, de encorajar, de valorizar as menores realizações do aluno." (op. cit. 73)

Souza Lima procuraria, no Brasil, seguir os procedimentos didáticos e metodológicos de Marguerite Long, inclusive no referente à forma de estruturação e desenvolvimento do ensino. Assim, passou também a utilizar-se de assistentes, escolhidos entre os seus alunos mais avançados. Na sua autobiografia, porém, salienta o cultivo da sonoridade nas suas relações com a personalidade de cada intérprete como o principal contributo recebido de Marguerite Long.

"O convívio constante, os diálogos com os colegas a respeito do que se passava em música na cidade ia me ampliando a personalidade. Graças à grande arte de nossa mestra, eram-nos reveladas novas obras, novos compositores e seus conselhos abriam novos horizontes na nossa maneira de interpretar, de sentir. Sua grande preocupação era de nos desenvolver o cultivo da sonoridade, em todas as suas modalidades, fazendo-nos compreender que cada um deve ter, por assim dizer, a sua palheta sonora, empregando-a de acordo com a obra, com o autor, com a época, com o estilo e nunca uniformizando todas as interpretações com o mesmo tipo de som. Isto foi para mim uma das revelações mais extraordinárias do seu ensino." (op.cit.. 73)

Momento de particular relevância na carreira européia de Souza Lima foi o da sua participação como solista nos Concerts Colonne. Criados por Edouard Colonne, sediados no Théatre du Chatelet, os Concerts Colonne realizavam apresentações com a participação de renomados solistas. Submetendo-se a concurso, foi aprovado e imediatamente convidado a apresentar-se. O seu concerto, sob a regência de Gabriel Pierné (1863-1937), representou um ponto alto na vida cultural da comunidade brasileira de Paris, estando esta representada por grande número de residentes.

Eugène Gigout (1844-1925), vaidade humana e o papel da lisonja e da ironia

Outra personalidade que particularmente marcou o desenvolvimento musical e pessoal de Souza Lima foi a do organista e compositor Eugène Gigout. De renome como virtuose e improvisador, conheceu-o como logo nos primeiros anos de sua vida na França. Como muitos outros estudantes estrangeiros, a visita às igrejas e a missas com música de órgão representou um dos primeiros passos para o contato com a vida musical e o conhecimento de grandes instrumentistas e compositores.

Dentre os grandes organistas, impressionou-no sobretudo Marcel Dupré (1886-1971) nas suas atuações na igreja de Notre Dame e no Trocadero por executar de cór toda a obra de Bach e por revelar-lhe a arte da improvisação. Na igreja Sacré Coeur de Montmartre, o organista com quem teve contato foi Henri Potiron, renomado gregorianista e especialista em teoria modal. Assim como muitos outros estudantes estrangeiros, Souza Lima vivenciou, através da música sacra, um novo despertar de sentimentos religiosos, chegando a assistir várias missas aos domingos para poder apreciar a arte organística e sobretudo de improvisação litúrgica nas igrejas de Paris.

Souza Lima ouviu Gigout primeiramente como organista da igreja Saint-Augustin de Paris, no grande órgão de Aristide Cavaillé-Coll, cargo que ocupava desde 1863. Era sucessor de Alexandre Guilmant (1837-1911) no Conservatório. Tornando-se seu aluno e amigo, fascinado pela sua personalidade cheia de espírito, entusiástica e empreendedora, Souza Lima travou conhecimento mais profundo com uma corrente do pensamento sacro-musical de revitalização e difusão litúrgico-musical de tradição especificamente francesa. Gigout havia sido aluno da Ecole Niedermeyer a partir de 1857, após ensino recebido como menino-cantor da catedral de Nancy, passando a desenvolver-se com Camille Saint-Saens (1835-1921) e Gustave Lefèvre (1831-1910), genro de Louis Niedermayer. Era um dos mentores da sociedade de concertos de música vocal e clássica e responsável pela Revue La Nouvelle Maitrisse. Eugène Gigout recebera uma aprofundada formação gregoriana, à época da sua restauração, e tornou-se um dos grandes conhecedores da obra de J. S. Bach (1685-1750), pelo qual Souza Lima particularmente o admirava. Como seu aluno, o brasileiro inseriu-se na série dos discípulos de Gigout, entre êles Gabriel Fauré (1845-1924) e León Boellmann (1862-1897). A arte e a técnica da Improvisação ao órgão de Gigout, que havia sido fundador e diretor de uma escola de improvisação (1885-1911), representou uma revelação para o músico brasileiro e forneceu-lhe os critérios para o julgamento fundamentado de improvisadores.

Uma das lições de Gigout, porém, que mais influência parece ter exercido sobre Souza Lima disse respeito antes à conduta de vida. Certamente devido à formação teológica que impregnava a sua imagem do Homem, Gigout partia da fraqueza humana e do papel nela desempenhado pela vaidade. A vaidade faz com que o indivíduo seja vulnerável à lisonja. A  atitude portanto daquele que deseja ganhar e conservar amigos seria o de lisongeá-los. Todos os dias, à noite, dever-se-ia perguntar a si próprio se essa máxima fora seguida. Como, porém, nem sempre pode-se lisongear alguém de forma sincera, tal intenção passa a ser feita com uma atitude de ironia.

Contatos com outras personalidades

Numerosos foram os músicos atuantes em Paris com os quais Souza Lima travou conhecimento. Entre eles cumpre salientar Gabriel Fauré, já então bastante idoso, a êle apresentado por Albert Bertelin (1872-1951). Havia sido, como Gigout, aluno da Ecole Niedermeyer e de Camille Saint-Saens, fora professor de composição do Conservatório desde 1896 e seu diretor a partir de 1905. Nesse encontro, Fauré mostrou o seu interesse pelo Brasil, pelos seus músicos e pela vida musical do país.

Dentre outras personalidades que teve a oportunidade de conhecer, citam-se Fernand Le Borne (1862-1929), compositor belga, autor de ballets (e.o. Fêtes Bretonnes), de óperas e de música de câmara, assim como de um Concerto para violino e piano; Alexander Brailowsky (1896-1976), renomado intérprete de Chopin, que deu o seu primeiro concerto em Paris em 1919, Laurent Cellier, crítico, compositor e pesquisador, em particular da música da Bretanha, Roland Manuel (1891-1966) e Gustave Samazeuilh (1877-1967), compositor e crítico, tradutor de Tristan und Isolde para o francês e especialista nas obras de Paul Dukas (1865-1935).


Itala Gomes Vaz de Carvalho

 
Famílias da sociedade parisiense e brasileiros

Um aspecto relevante no estudo da presença brasileira em Paris diz respeito ao papel desempenhado por famílias que realizavam, nas suas residências, encontros e recepções. Essas ocasiões ofereciam oportunidade para o estabelecimento de contatos. Dentre as famílias da sociedade parisiense, Souza Lima salienta a de Outrey, que, na sua residência, mantinha o quarteto Calvet. O pianista brasileiro foi contratado, juntamente com Yves Nat (1890-1956) para acompanhar, quando necessário, execuções que exigiam piano.

Na sua autobiografia, Souza Lima menciona numerosos brasileiros que encontrou em Paris, e com os quais em parte conviveu, na França e posteriormente no Brasil. Oferece, com essas menções, um subsídio importante para os estudos da presença brasileira na capital da França dos anos vinte. Lembra, em primeiro lugar, que já havia muitas personalidades estabelecidas em Paris e integradas na vida cultural francesa, entre elas Magdalena Tagliaferro (Veja texto nesta edição). Grande significado assumiam os convites recebidos por Ítala Gomes Vaz de Carvalho, filha de Carlos Gomes (1836-1896), e que realiza reuniões no seu apartamento. A essas reuniões compareciam artistas, sobretudo músicos.

Dentre as famílias brasileiras que reuniam artistas nas suas residências, Souza Lima destacou a de Vital Ramos de Castro, proprietário de vários cinemas no Rio de Janeiro, e cuja filha, Maria Antonia Ramos de Castro, estudava no Conservatório. Souza Lima guardou desse brasileiro uma imagem singular:

"Homem boníssimo, de muita posse, porém simples e despretencioso, tipo caboclo. Mudou-se com toda a sua família para Paris, instalando-se num dos arrabaldes mais distintos (próximo ao Parc Monceau). Com sua família numerosa não quis morar em apartamento, adquirindo uma casa grande e mandando pintá-la de branco, em oposição a todas as construções da cidade que eram cinzentas (...). Achávamos muita graça quando chegávamos a sua residência e ele nos recebia sempre com aquele sorriso amigo, dizendo com aquele seu sotaque um tanto caipira: "Oceis trouxero os materiá?" Referia-se as nossas músicas e aos instrumentos." (op.cit. 110-111)

Vital Ramos de Castro foi quem organizou um programa na sala Gaveau no qual o Brasil foi apresentado em filme documentário que mostrava a diversidade natural e cultural do país. O fundo musical foi constituído por obras eruditas e populares, executadas por uma seção da orquestra dos Concerts Colonne sob a direção de Souza Lima e Villa-Lobos, o primeiro para a parte erudita, o segundo para a popular. Foram apresentadas obras de Carlos Gomes, Alberto Nepomuceno (1864-1920), Henrique Oswald (1852-1931) e Elpídio Pereira (Veja artigo nesta edição), além de música popular de Tupinambá, Canhoto, Viriato da Silva, Oliveira Barreto e outros.

Vários dos conhecimentos travados com brasileiros em Paris lançaram bases a amizades duradouras e que se prolongaram no Brasil. Alguns dos músicos pertenceriam através das décadas ao círculo musical de Souza Lima em São Paulo, entre êles o violinista Raul Laranjeira. Com Raul Laranjeira e com o violoncelista Mário Camerino, Souza Lima formou conjuntos de câmara que apresentaram obras do repertório internacional e de compositores brasileiros. Influente na comunidade foi o violinista Eurico Marques. Na sua casa realizavam-se reuniões de amigos e artistas convidados; numa das quais esteve presente o violinista espanhol Juan Mané, que havia realizado uma viagem de concertos pelo Brasil.

Outro músico, hoje injustamente caído no esquecimento, foi Alonso Aníbal da Fonseca, que passou a morar na casa familiar de Laurens, por recomendação de Souza Lima, casando-se posteriormente com uma das filhas da família Laurens. Tornar-se-ia conceituado professor de piano e de matérias teóricas em São Paulo, chegando a dirigir o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Dever-se-ia citar, também, entre muitos outros, as pianistas Nair Medeiros e Dinorá de Carvalho (1895-1980), que se tornaria significativa e influente compositora em São Paulo, os pianistas Bráulio Martins e Maurilo Lyra, Horta Devolder. Souza Lima salienta também o compositor Fructuoso Vianna (1896-1976), cujas obras foram executadas em recitais então organizados.

Souza Lima foi quem orientou a cantora Bidu Sayão na sua primeira apresentação em Paris. Apresentou-a a seu empresário, sugerindo um programa que incluisse vários estilos, gêneros e épocas, e não, como pretendido, apenas de trechos de óperas. Essa primeira apresentação representou o início de uma carreira brilhante: "Sinto-me feliz por ter sido um ponto de partida no nascedouro daquela maravilhosa caminhada artística que foi a da grande artista brasileira" (pág. 97)

Dos vários artistas plásticos viveram nessa época em Paris, salienta-se, na escultura, Victor Brecheret (1894-1955), na pintura Vicente Rego Monteiro, Tulio Mugnani e Tarsila do Amaral.

Embaixada do Brasil em Paris dos anos 20

A Embaixada do Brasil, sob o Embaixador de Souza Dantas, ficou na memória de Souza Lima como extremamente solícita e apoiante dos brasileiros na capital francesa. Na esfera musical, o significado dos círculos da Embaixada do Brasil era também devido à presença de Elpídio Pereira, professor de música e compositor que estudava e atuava na França há muito e que passara para serviço diplomático (Veja artigo nesta edição). À época de Souza Lima, e com a sua participação, Elpídio Pereira alcançou o maior sucesso de sua carreira com a apresentação de um bailado de sua autoria.

"Este tornou-se muito meu amigo, e mais ainda, meu admirador. Músico sincero, sem preocupação de escrever obra de vanguarda, nem com feições excêntricas, era aluno do mestre Paul Vidal. Entre suas composições a mais importante era a ópera Calabar, que foi apresentada ao público em caráter de concerto na Salle des Agriculteurs, com intérpretes, todos cantores franceses, fazendo eu, no piano, as vezes de orquestra, naturalmente numa redução que já se achava impressa. Trata-se de um trabalho sincero, bem arquitetado, porém de construção ainda um pouco acadêmica. Seu autor, como já disse, não era dado a arroubos harmônicos, nem a faturas extravagantes. Foi bem cantada, contou com excelentes cantores e o público o recebeu com simpatia, ouvindo com atenção e interesse, tendo sido o libreto redigido pelos conhecidos libretistas irmãos Adenis. Trata-se de um episódio da nossa história: a guerra de conquista do Brasil pelos holandeses. A imprensa foi bondosa, destacando com elogios alguns de seus trechos, assim como a minha participação". (op.cit.pág. 83)

Em 1922, realizou-se, no salão do Hotel Crillon, uma homenagem ao Embaixador do Brasil, Dr. Gastão da Cunha e que, segundo Souza Lima, representou um dos maiores acontecimentos sociais e culturais da colonia brasileira do início da década de vinte. Na ocasião, executou a Mephisto-Valse, de Liszt (1811-1886) e uma composição de Alexandre Levy. Além de Souza Lima, tomaram parte a pianista Maria do Carmo Monteiro da Silva, o violinista Nicolino Milano (1876-1962), as cantoras Vera Janacopulos, Mello Vianna, o cantor Corbiniano Villaça e o caricaturista Luiz Peixoto. A primeira página do programa apresentava um desenho do pintor Vicente Rego Monteiro.

Souza Lima também lembra de dois concertos de música brasileira realizados no Grand Palais, organizados pela delegação do Brasil à VII Exposição Internacional da Borracha.

Inauguração da Maison de l'Amérique Latine e concertos de música brasileira

Souza Lima participou da inauguração da Maison de l'Amérique Latina. Nessa solenidade, Paul Painlevé (1863-1933), Presidente do Conselho e Membro do Instituto de França, proferiu uma conferência sobre a América Latina. Entre os artistas que participaram ao lado de Souza Lima destacou-se o violoncelista mexicano Ruben Montiel. A Maison de l'Amérique Latine realizaria, entre outros eventos, juntamente com a Académie Internationale des Beaux-Arts, uma Exposição de Arte Latino-Americana no Musée Galliéra, no qual o historiador de arte Louis Hourticq proferiu uma conferência e Souza Lima apresentou o terceiro trio de Villa-Lobos, juntamente com o violinista Raul Laranjeira e o violoncelista Ruben Montiel.

Vários outros concertos com música brasileira e latinoamericana em geral realizaram-se em Paris na década de vinte. Souza Lima guardou na memória um recital realizado no teatro do Vieux Colombier, organizado pela cantora Jane Batori, e dedicado ao Brasil, à Argentina e à Espanha. O programa constou de obras de Albert William, Villa-Lobos, Pedrell e Fructuoso Vianna. Segundo êle, o programa despertou considerável interesse pela originalidade das obras.

(...)

Alípio Dutra (1892-1964)

Percebe-se, dos dados transmitidos por Souza Lima, o papel relevante desempenhado por Alípio Dutra na orientação do grupo de brasileiros de 1919.  Em 1912, havia exposto em São Paulo obras relacionadas com temas do interior paulista (Interior de cozinha, Caipira pescando e Ponte sobre o Piracicamin), alcançando o prêmio do Pensionato Artístico. Em 1913, após expor na Segunda Exposição Brasileira de Belas-Artes, dirigiu-se a Paris, passando a estudar na Académie Julien. Com a eclosão da Guerra, porém, retornara ao Brasil. Ao lado de paisagens do interior paulista e de São Paulo, passou a expor também imagens parisienses e desenhos realizados na Europa. Em 1919, comissionado pelo Estado de São Paulo, transferiu-se para Bruxelas, passando a estudar na Escola de Belas-Artes. Em 1921, atuou no Consulado do Brasil, no Le Havre, retornando a Paris como adido comercial junto à Embaixada. A partir de 1923, passou a estudar na Escola de Belas-Artes de Paris, expondo obras no Salon desse e do ano seguinte. Em 1925, foi encarregado de orientar a propaganda do Instituto do Café na Europa. Após curta temporada no Brasil, em 1926, retornou à Europa, dando continuidade a seus estudos e trabalhos. Retornou definitivamente apenas em 1934.

(...)

Texto com base nos trabalhos apresentados no Forum França-Brasil/Brasil-França 2009 do respectivo Programa da Academia Brasil-Europa

Antonio Alexandre Bispo




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


  2. A A.B.E. é entidade exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias. É, na sua orientação teórico-cultural, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. A Organização de Estudos de Processos Culturais remonta a entidade fundada e registrada em 1968 (Nova Difusão). A A.B.E. insere-se em tradição derivada de academia fundada em Salzburg pelos seus mentores, em 1919, sobre a qual procura sempre refletir.