Academia Brasil-Europa
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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

N° 121/16 - (2009:5)

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Doc. N° 2493


Latinoamericanos na França à época de Napoleão III

Imperatriz Eugénie segundo Clara Tschudi (1856-1945) e a "raça latina"
Aproximação a problemas de identidade nas relações França-México -Brasil

Ciclo de estudos Atlântico-Pacífico IV: França-México-Brasil.


Trabalhos da Academia Brasil-Europa pelos 40 anos de trabalhos de renovação teórica dos estudos França-Brasil e Alemanha-Brasil, sob a direção de A.A.Bispo.
Retomada e prosseguimento de estudos desenvolvidos em seminários de Gender Studies e Cultural Studies da Universidade de Bonn, 2003/04.

Reflexões em Santa Maria de Huatulco, México, 2009


Um dos períodos mais promissores para estudos culturais em contextos euro-latinoamericanos do século XIX é o do Segundo Império francês sob Napoleão III. Foi uma época de singulares e paradoxais acontecimentos histórico-políticos internos franceses, nas relações da França com os demais países europeus e na sua atuação global, em particular com a América Latina. Foi a época da transformação urbana de Paris, de interesses econômicos e de progresso material, da ascensão de novos grupos sociais, de orientação segundo concepções de Estado nacional, da influência ibérico-latina na política e na cultura, e do reinício da história da França como potência colonial.

A proclamação do Segundo Império, após um Plebiscito realizado em 21 e 22 de novembro de 1852, deu-se a 2 de dezembro de 1852. Era, na França, o dia que rememorava o golpe de Estado, a Coroação de Napoleão I como Imperador e a Vitória de Austerlitz. Agora com o título de Napoleão III, o novo imperador contraiu a 29/30 de janeiro de 1853 matrimônio com uma condessa espanhola, Eugénie María de Montijo de Guzman (Granada 1826-Sevilla 1920). Com essa aliança, iniciou-se uma fase marcada por um direcionamento de atenções políticas ao mundo ibérico europeu e latinoamericano, preparada culturalmente já há muito pela fascinação romântica pelo Exótico, em particular pela Espanha e pelo Oriente de inspiração mourisca, assim como pelo Catolicismo.

O maior empreendimento francês na política exterior relacionada com o continente americano foi a singular tentativa de estabelecimento de um Império no México. Esse projeto, de inspiração de mexicanos em Paris que conseguiram exercer influência considerável na política através da Imperatriz Eugênia, representa um dos mais singulares - e trágicos -exemplos da ação política de latinoamericanos em Paris. Lembraria situações de opereta se não tivesse fracassado - sob pressão dos EUA - e levado à trágica execução de Maximiliano de Habsburgo como Imperador do México (1861-1867).

Apesar do fracasso dessa iniciativa no México, o prestígio internacional da França fortaleceu-se com a Exposição Mundial de Paris, realizada no ano de 1867, e com a abertura do Canal de Suez, em 1869. Neste último ano, porém, com a vitória eleitoral dos republicanos, e o plebiscito do ano seguinte, instituiu-se uma nova Constituição e o Império de orientação liberal.

Eugénie segundo Clara Tschudi (1856-1945)

A Imperatriz dos Franceses, com a sua paixão e ambições pela política, e com a sua atratividace pessoal marcou a época de brilho do Império e tornar-se-ia co-responsável pelo seu fim. Foi regente por três vezes da França, em períodos de ausência do imperador, em 1859, em 1865 e 1870. Com a sua formação ibérica, assumiu interesses clericais e empenhou-se na conservação da suserania pontifícia sobre Roma. Empenhou-se na ação do Marechal Mac-Mahon em Metz, o que terminaria com a catástrofe de Sedan e o aprisionamento do imperador. Fugiu para a Grã-Bretanha, onde viveu sob o título de Condessa de Pierrefonds.

Um ponto de partida para a consideração da vida e das atividades da Imperatriz Eugénie sob a perspectiva dos estudos culturais relativos à sua época e à sua influência nas relações entre a França e o mundo ibérico e latinoamericano é a biografia de Clara Tschudi, publicada na Noruega, em 1889. Esse livro alcançou grande divulgação, sendo publicado em vários idiomas (Clara Tschudi. Eugenie: keiserind af Frankrige en populaer fremstilling, Kopenhagen: Gyldendal, 1889; Eugenie, Kaiserin der Franzosen: Eine populäre Darstellung, Aus dem Norwegischen von Erich Holm (Pseud. Mathilde Prager), Leipzig: Philipp Reclam jun.). A autora, embora nascida na Noruega, possuía ascendência aristocrática suíça. O nome Tschudi, vinculado a família de antiga nobreza, é conhecido nos estudos brasileiros sobretudo devido às atividades de Johann Jakob von Tschudi (1818-1889), pesquisador, linguista e diplomata, representante da Suíça no Brasil (1857-1861).

A obra de Clara Tschudi assume particular interesse para estudos referentes à Mulher na História e para estudos culturais sob a perspectiva dos Gender studies. Tem-se, no livro de Clara Tschudi, da pena de uma autora que se dedicou a questões da emancipação feminina e obteve renome pelos seus vários livros dedicados a biografias de mulheres nas casas reais, uma obra singularmente crítica, fundamentalmente negativa da personalidade e das atividades de Eugénie. A autora, embora respeitando nos seus trabalhos romanceados critérios de rigorosidade historiográfica, procurava tratar as biografadas sob uma perspectiva de cunho psicológico, elucidando os pressupostos sociais da formação de caráter e criando imagens da época e das situações em que atuaram à luz das personalidades retratadas. A biografia assume, para Clara Tschudi, um aspecto educativo, ou melhor, de formação. Contribui, assim, ao estabelecimento de uma visão histórica de personalidades e de desenvolvimentos históricos orientada segundo princípios de cunho ético.

Tem-se procurado explicar a negatividade crítica da imagem de Eugénie na obra de Clara Tschudi pelo fato de ter esta escritora nórdica uma mentalidade diversa daquela da mulher espanhola, incapaz assim de compreender com simpatia o temperamento ibérico. Essa interpretação, porém, não parece ser justificável ou suficiente. A sua obra não reflete uma incompatibilidade de mentalidades ou uma antipatia com relação ao mundo ibérico e latinoamericano. O motivo da posição crítica de Clara Tschudi com relação a Eugénie e ao contexto social e político em que se inseriu parece antes resultar de uma visão dos acontecimentos históricos determinada pela tradição de sua procedência aristocrática e/ou pela posição que tomou no julgamento político-cultural da época em que ela propria nasceu. Ela analisa criticamente o período de restabelecimento bonapartista que, segundo essa visão, foi marcada por "parvenüs e aventureiras", ou seja, pela ascensão social e política de indivíduos sem lastro, provenientes de situações instáveis de desprestígio, repletos de ressentimentos, movidos por institutos menos nobres de vaidade pessoal, enriquecimento e projeção, sem escrúpulos na persecução de seus objetivos, caracterizados pela insolência, e que levaram a situações culturais sentidas como vulgares pelo exagêro de expressões, pela procura do brilho exterior, do estupefaciente, da elevação do ordinário ao grandioso. Em todo o caso, a biografia de Eugénie de Clara Tschudi surge hoje, sob diferentes aspectos, como de particular interesse para estudos culturais voltados à análise de processos identificatórios e performativos na própria história européia e nas suas relações com a América Latina.

Problemas de situações imigratórias internas na Europa

O vir-a-ser de Eugénie e os problemas de sua personalidade podem ser explicados, segundo Clara Tschudi, pelas características sociais e psíquicas da situação de imigração da qual provinha. Era filha de um comerciante de Malaga, de sobrenome Kirkpatrik. Este era de ascendência aristocrática escocêsa, os Kirkpatrik of Closeburn, emigrados à época da queda dos Stuarts. No exílio, alcançara fortuna com o negócio de artigos coloniais e venda de vinho, tornando-se exportador e mantendo na sua casa de comércio um balcão onde servia bebidas a fregueses. Com o enriquecimento, cresceu também o desejo de alcance de prestígio, e para isso despertou na família a lembrança do já longínquo passado aristocrático.

Na biografia de Tschudi, a atenção é dirigida à mãe de Eugénie como principal agente na sua formação e ascensão social. O quadro que oferece de sua personalidade é extremamente negativo. Ela, Manuela, era a terceira filha do vendeiro Kirkpatrik, a mais bela e ambiciosa de suas irmãs, conhecida pela sua vaidade e pelo seu pernóstico orgulho da origem familiar. Apesar de auxiliar no balcão do comércio paterno, vendendo vinho, e espanhola por nascimento e formação, manifestava na sua atitude o seu passado nobre, sonhando com a recuperação de seu imaginado esplendor. Entre os oficiais estacionados em Malaga e que frequentavam a bodega do pai, travou conhecimento com o conde Manuel Fernandez de Tebas, da Artilharia espanhola, e que havia atuado sob Napoleão I. Manuela ganhou a convicção de que esse oficial não era apenas uma criação da época bonapartista, mas que corria nele o mais puro sangue azul, derivado, no passado, da família nobre de Porto-Carrero, emigrada de Gênova para a Extremadura no século XIV, e vinculada, por casamentos, com alguns dos mais famosos nomes da Espanha, tais como Guzman, Cordoba, La Cerda, Leira e outros. O conde unia, em si, três dignidades: Teba, Banos e Mora. Embora sem ser por motivos afetivos, Manuela conseguiu casar-se e tornar-se, assim, Condessa.  Dedicou-se a mobiliar a sua residência com o maior esplendor possível; nos seus salões reuniam-se oficiais de posses. Na procura de ambiente mais promissor para tecer contatos sociais, conseguiu que a família se transferisse para Granada, juntamente com a sua filha Francisca Teresa. Ali nasceu Maria Eugênia, a 5 de maio de 1826.

A influência de sua mãe na formação da futura imperatriz dos franceses foi decisiva. Nela incutiu o desejo imperativo de ascensão de classe e alcance de dignidade. A sua ambição era a de que as filhas, em particular Maria Eugênia, tivessem uma formação em ambiente superior ao seu, tudo fazendo para que recebessem uma educação e um verniz de porte e atitudes à altura de um futuro brilhante. Para isso, foram enviadas a Paris, onde passaram a estudar no convento de Sacre-Coeur.

Transferindo-se para Madrid, a mãe de Eugênia, sempre movida pela ambição sem escrúpulos e pela sua natureza frívola, procurou, através de relações galantes e intrigas, estabelecer contactos com personalidades influentes. Conseguiu tornar-se camarera major da rainha Isabel, então ainda menor de idade. Separada de seu marido, retirou as filhas do convento e passou a realizar com elas amplas viagens, dividindo o seu tempo entre Londres, Paris e os balneários de moda, por todo lugar reunindo círculos de amigos e admiradores.

Ao círculo da Condessa de Montijo pertenciam também personalidades da vida cultural e artística, entre êles os renomados escritores Prosper Mérimée (1803-1870) e Marie-Henri Beyle (Stendhal) (1783-1842). Mérimée, que provinha de uma família abastada, de tendências anglófilas, tendo visitado a Inglaterra em 1825/26, conheceu a família de Eugênia na Espanha, em 1830, impressionando-se talvez com a lembrança do passado britânico aristocrático sempre mencionado pela Condessa. Possuindo uma posição elevada à época de Luís-Felipe, manteria a sua posição influente sob Napoleão III, graças aos antigos contactos com Eugénie. Stendhal, que participara da armada à época napoleônica, apaixonado pela Itália e pelas artes, representava a convicção de que, após a Revolução Francesa, não mais o nascimento, mas sim a intrepidez no desejo de ascensão justificaria o poder e, com isso, o Bonapartismo.

Percebendo a atratividade de Eugénie, a Condessa passou a procurar um partido conveniente para o seu casamento, reaproximando-se da Corte de Madrid. As duas filhas foram nomeadas damas da Corte, sendo porém recebidas com reservas devido à má reputação da Condessa de Montijo. Entre os candidatos, a Condessa passou a dar preferência sobretudo ao Duque de Berwick e Alba, descendente de Fernando Alvarez de Toledo, Duque de Alba, governador dos Países Baixos e que agira em Portugal sob Felipe II. Aquele, porém, instado a escolher entre as duas irmãs, decidiu-se pela mais velha, para o desconsolo de Eugénie, que procurou até mesmo envenenar-se. Essa decepção amorosa e o ferimento de seu orgulho pessoal marcaram de forma profunda a psique de Eugénie, manifestando-se em sistema nervoso abalado, em freqüente tremer de pálpebras e em ataques de mêdo, melancolia e choro. Abandonando a atitude reservada e discreta que recebera de sua formação conventual, tornou-se extrovertida e extravagante, escandalosa, procurando esquecer a sua desilusão em divertimentos.

Como Clara Tschudi menciona para oferecer uma imagem de Eugénie nessa fase de sua juventude, passou a exprimir, como reação de despeito, uma atitude de arrogância, insolência e de provocante emancipação, que se manifestava na prática pública de esportes, sobretudo na natação e na hípica, na época não usual, em passeios noturnos, sendo uma das primeiras a fumar cigarillos e charutos em público, e no trajar de costumes fantasiosos de inspiração andaluza. O ápice de sua vulgaridade foi atingido com a sua inserção no ambiente de touradas e toureiros, participando de forma cruel nesses espetáculos sangrentos. Eugénie passou a ser cortejada por toureiros e tornou-se aquela que os coroava após terem matado o animal. Com essa menção, Clara Tschudi não poderia ter pintado um retrato pior da futura Rainha dos Franceses: a fomentadora e premiadora de toureiros, pessoa sem sentimentos mais profundos, ávida de ser centro das atenções de arenas.

Clara Tschudi salienta, na sua biografia, a perene insegurança e labilidade interior de Eugénie, apesar de sua extroversão. Com o crescente sentimento de vazio que a vida de divertimentos lhe proporcionava, o seu vínculo com o Catolicismo tornou-se cada vez mais intenso, pensando até mesmo em dedicar-se à vida religiosa. Era uma religiosidade exaltada, mas antes voltada a aspectos exteriores, ao clero e, sobretudo, ao poder papal. Clara Tschudi via aqui também um resultado da instabilidade psíquica resultante das condições de nascimento e de formação de Eugènie: na sua bigoteria e na fogosidade do seu temperamento manifestava-se a sua formação espanhola, na sua altivez e espírito premeditado e inteligentemente calculador apresentava-se como a descendente da aristocracia britânica. Com a sua falta de equilíbrio e paz, também a vida de Eugénie era marcada por uma constante movimentação. A estadia de verão em balneários alternava com a estadia de invernos nas cidades. Em toda a parte procurava elevar-se acima do homem comum, por toda a parte ganhava admiradores entre os membros da mais alta aristocracia. Apoiada na sua beleza, na arte de seu trajar extravagante e na sua coqueteria sem escrúpulos, era-lhe fácil conquistar homens, assim como o ódio e a inveja das mulheres que com ela rivalizavam.

Em fins da década de trinta, num balneário espanhol, deu-se o primeiro encontro de Eugènie e Louis Napoleon. Durante uma estadia de inverno em Londres (1847-1848), o conhecimento foi aprofundado. Ambos tinham ascendência de famílias de nome, ambos se uniam no desejo de glória, fama e brilho, no entusiasmo por grandes idéias e na perseverância em realizá-las. Ambos eram de poucos recursos financeiros, mas repletos de ambições. Ambos eram aventureiros, ambos possuiam reputação de frivolidade.

Ao receber a notícia da Revolução de fevereiro e da fuga do rei, Louis Napoleon dirigiu-se a Paris. Não teve sucesso, porém, nas eleições para uma assembléia nacional constitutiva, em abril de 1848. Nas eleições complementares, os seus adeptos apresentaram-se como partido e desenvolveu-se uma extraordinária máquina propagandística. Proclamações bonapartistas foram distribuidas por Paris e órgãos da imprensa utilizados de forma eficiente. Apesar das vozes em contrário na Assembléia, os eleitores de Paris o elegeram pela segunda vez. Após 30 anos de afastamento, Napoleão tomava lugar na Assembléia, de onde poucos meses mais tarde, a 20 de dezembro, seria elevado a Presidente da República. Eugénie e sua mãe, que haviam-se transferido de Londres à Bélgica, passando o inverno em Bruxelas e o verão no balneário de Spa, seguiam os acontecimentos de Paris relativamente de perto. Pouco antes do golpe de Estado, Eugénie dirigiu-se a Paris.

Louis Napoléon atingira o seu objetivo, tornando-se imperador. Cerca de 8 milhões de eleitores manifestaram o desejo de restauração dos Bonaparte. Era, desde o golpe de 2 a 5 de dezembro de 1851, absoluto chefe de govêrno; tornou-se, a partir de 1 de dezembro de 1852, imperador. Este ato foi visto como a coroação de uma estrategia longamente preparada e realizada de forma enérgica, sem maiores escrúpulos. No Palácio Elysée, o Príncipe-Presidente havia dado festas brilhantes, às quais contribuia a sua prima Mathilde, filha da ex-rainha da Vestfália. Ainda mais brilhantes tornar-se-iam as festas nas restauradas Tulleries. A intenção, porém, de desposar Mathilde Demidoff, desejo dos bonapartistas, foi impedida por obstáculos colocados pela Igreja. As diversas jovens da alta aristocracia indagadas, entre elas uma princesa russa, uma espanhola e a duquesa portuguesa da família de Bragança, não se mostraram dispostas a desposar um Bonaparte. Somente após essas renúncias, e possivelmente como resultado das atividades de Eugénie em Paris é que realizar-se-ia a união entre ela e Napoleão. O noivado com a Condessa Montijo de Teba foi anunciado de forma supreendente pelo jornal Patrie, em 1853. A Eugênia de Granada tornou-se assim Imperatriz dos Franceses.


Santa Maria de Huatulco, México, 2008.
Fotos A.A.Bispo

 
Problemas de situações imigratórias de latino-americanos na Europa

Com Eugénie assumiu uma espanhola a mais alta posição na França. Esse fato significou compreensivelmente a instauração de um ambiente particularmente favorável às relações culturais entre a França e o mundo hispânico e íbero-americano. Representou a concretização de tendências românticas já existentes, marcadas por um fascínio pela Espanha e pelo mundo de cultura espanhola nas Américas. Os latino-americanos em Paris passaram a gozar de condições especialmente propícias ao sucesso nas suas atividades, à projeção de suas obras e ao desempenho de influência em esferas superiores da sociedade e da política.

A consideração dessa fase particularmente importante para os estudos das relações recíprocas entre a França e o mundo de cultura ibérica não pode, porém, limitar-se ao papel desempenhado por Eugénie e a sua inserção em processos performativos internos da Europa. Necessita também levar em conta a outra face da medalha, ou seja, aquela representada pelos latino-americanos residentes ou vivendo temporariamente na França. Também êles estavam inseridos em complexos processos culturais, vivenciavam no Exterior situações de instabilidade, insegurança, de ansiedade de reconhecimento, de projeção e ascensão social, vinculavam-se a diferentes tendências e correntes, estavam porém sobretudo comprometidos com os processos culturais constitutivos de suas pátrias, com eles procurando permanecer unidos, neles procurando agir e para o qual necessitavam do sucesso.

O episódio mais extraordinário para o estudo das relações entre a França e a América Latina do período de Napoleão III foi o da tentativa de instauração de um Império no México. Esse intento não pode ser elucidado sem considerar-se a ação de mexicanos na Europa sob o pano de fundo dos acontecimentos no México.

A história mexicana das últimas décadas havia sido marcada por uma grande perda de território (anexação do Texas pelos EUA) e pela contínua rivalidade entre forças conservadoras, clericais, e aquelas liberais, anti-clericais. Na segunda metade da década de cinquenta, o govêrno liberal levou à separação quase que total do Estado e da Igreja, com a venda de propriedades eclesiásticas e que foram adquiridas por latifundiários, causando tensões sociais. A Constituição de 1857, combatida pela Igreja, levou a uma guerra civil de vários anos (1857-1860). Os clericais dominavam a capital, o Govêrno liberal, Veracruz. B. Juárez García, chefe do Govêrno, conseguiu entrar na Cidade do México em 1861. Com a suspensão do pagamento dos juros devidos a créditos externos, a França, a Espanha e a Grã-Bretanha intervieram na situação mexicana. Após um trato da Espanha e da Grã-Bretanha com o Govêrno, em 1862, apenas a França continuou a agir no país, tomando em 1863 Puebla e entrando posteriormente na Cidade do México.

Por iniciativa dos franceses, uma assembléia proclamou a monarquia, oferecendo, em 1864, a coroa ao Arquiduque austríaco Maximiliano. Este, porém, que assumiu o trono, desentendeu-se com os seus apoiantes no México, ou seja, com o as forças clericais e ultraconservadoras, não aceitando as exigências do Vaticano relativas à restituição dos direitos e das propriedades da Igreja. Não apoiado assim pelos liberais do Govêrno e desentendido pelos conservadores, Maximiliano apenas poderia contar com o apoio francês, o que lhe havia sido expressamente prometido por Napoleão III. Com a pressão exercida pelos EUA, que obrigaram a saída das forças francesas, e com a negação de apoio à Imperatriz Charlotte em desesperada visita à França, Maximiliano ficou abandonado. Após a reconquista do México pelas forças de Juárez, foi prêso em Queretaro a 15 de maio de 1867 e executado a 19 de junho desse ano.

Várias questões se levantam relativamente a esse episódio negro nas relações entre a França e a América Latina e que levou à morte trágica de uma personalidade ingênua, porém de alta formação cultural, de elevados princípios, de idealismo e boas intenções, aliás conhecedora e amiga do Brasil. Como se explica o singularíssimo empenho francês na instituição do Império mexicano e o seu sucesso em convencer o Arquiduque Maximiliano da Áustria, contra a vontade de seu irmão reinante? Como se explica o abandono de Maximiliano no Exterior, a falta de dignidade do não cumprimento da palavra dada por Napoleão III após ter aquele recusado a cumprir as exigências eclesiásticas? Em ambos os casos a resposta deve ser procurada na ação de Eugénie e do círculo de mexicanos com ela vinculados.

Entre os clericais e ultraconservadores mexicanos, tem-se destacado a atuação de Don José Maria Gutierrez de Estrada (*1800), proveniente de uma rica família criolla e que tinha entrado na carreira diplomática. Sendo um homem de formação severa e profundamente religioso, defensor do papel desempenhando no passado pelos Jesuítas, publicara em 1840 uma dissertação no qual expunha a sua opinião de que a situação caótica do México de então seria muito pior do que aquela deixada pelo domínio espanhol. Recomendava, assim, a forma monárquica sob a égide de um príncipe legítimo como única possibilidade para que se evitasse que em breve os Estados Unidos tomassem conta do México. Premido pela reação violenta dos partidos e ameaçado, abandonou o país e exilou-se na Europa, onde possuía contatos da época de suas atividades diplomáticas. Em 1853, com a renovada subida à Presidência de A.L. de Santa Anna (1794-1876), em situação de anarquia, lembrou-se este um ano depois de Gutierrez de Estrada, encarregando-o de atuar nas Cortes européias no sentido da instituição de uma monarquia no México. Gutierrez passou a endereçar longos memorandos aos ministérios europeus e criar uma rêde de simpatizantes. Acentuava que se não devia apoiar a ganância de poder e de preponderância dos EUA. Se as nações européias não coibissem de cedo as tendências desse colosso agressivo, não teriam mais condições, no futuro, de se defender das pretensões do comércio e da indústria dos norte-americanos. Mesmo após a queda de Santa Anna, Gutierrez de Estrada deu continuidade a suas atividades a favor da instituição da monarquia mexicana.

Com a mudança política no México, mexicanos de posses abandonaram o país e se estabeleceram em diferentes países da Europa. Enquanto alguns se integravam nas grandes cidades cosmopolitas e, resignados, esqueceram a pátria, alguns deles continuaram a empenhar-se politicamente, passando a simpatizar com o movimento de Gutierrez de Estrada. Na Europa, um papel importante foi desempenhado por Don José Manuel Hidalgo, Secretário da Embaixada Mexicana em Madrid e que pertencia ao círculo da Condessa de Teba. Com a sua modéstia, os seus modos distintos, a sua aparência cultivada e elegante, ganhara entrada nos círculos da Côrte de Madrid e fizera-se familiar da Condessa de Teba e conhecido de suas filhas. No decorrer de uma viagem de Madrid a Paris, Hidalgo, descendo em Bayonne, foi reconhecido por Eugénie, que se dirigia a uma tourada. Durante uma excursão ao litoral, Hidalgo teve a ocasião de expor a situação do México e a necessidade da instituição da monarquia para a salvação "da raça latina" e do Catolicismo no Novo Mundo. Com essas expressões, conseguiu ganhar a atenção e o entusiasmo de Eugénie como espanhola e católica. Nessa época, Eugénie, que alimentava uma aversão aos Estados Unidos, passara a desempenhar um papel político mais intenso.

Por ocasião de um dos costumeiros encontros de caça de outono no castelo de Compiègne, quando então se reuniam diplomatas, amigos e personalidades da arte e das ciências, deu-se a oportunidade de um interlóquio entre Hidalgo e Napoleão III. Este, influenciado por Eugénie, já tinha até mesmo indagado ao Duque de Aumale se aceitaria a coroa mexicana, tendo este recusado. Essa menção demonstrava até que ponto a sugestão de Hidalgo tinha sido bem recebida; a sua posição de confiança em círculos influentes cresceria cada vez mais sob a proteção de Eugènie.

O desenvolvimento das transações, embora sempre comunicado a Gutierrez em Roma, foi dirigido praticamente por Hidalgo. Passou a tomar o desjejum e a almoçar com a Imperatriz, acompanhando-a em passeios.  A situação de fraqueza dos EUA devido à Guerra civil, assim como aquela criada pela suspensão do pagamento de juros pelo México surgiram como oportunas para o desenvolvimento dos planos. Parece ter sido até mesmo de Hidalgo o plano da intervenção conjunta da França, Inglaterra e Espanha no México. Dele foi também a sugestão de oferecimento da coroa ao Arquiduque Ferdinand Maximiliano da Áustria. O Embaixador da Áustria, que não levava primeiramente a sério o projeto, considerando-o como uma quimera de Eugènie, logo foi obrigado a constatar o contrário.

Entre as condições colocadas em princípio por Maximiliano, estava a de ser a proposta expressão clara do desejo da nação mexicana. Na realidade, correspondia esse desejo apenas àquele de um grupo de mexicanos no exílio, sobretudo de quatro, Hidalgo, Almonte, Gutierrez e seu filho. Um comissário do Arquiduque, enviado a Paris, ganhou a impressão de ser Hidalgo um canal pelo qual todos os mexicanos de significado usavam para atuar politicamente através de Eugènie. O Papa Pius IX, esperando um desenvolvimento positivo para a Igreja no México, saudou o empreendimento. Hidalgo, atuando cada vez mais intensamente, procurou o contacto direto com o Arquiduque através de sua sogra, que o orienta na forma de tratá-lo, sugerindo que o conquistasse com palavras elogiosas e apelativas à sua vaidade. Quando o ex-presidente do México, Miguel Miramon (1832-1862), tentou obter uma audiência com Napoleão, encontrou portas fechadas, em ação preparada pelos mexicanos em Paris. Ao mesmo tempo, dispunham estes de um escrito de Santa Anna, exilado numa ilha das Antilhas, no qual este afirmava que a grande maioria da nação almejaria a reintrodução do império de Montezuma. O Arquiduque tornou-se assim, na sua ingenuidade e visão irrealista, apesar de muitas advertências em contrário, um instrumento em mãos de uma encenação de mexicanos atuantes na Europa e que nem mesmo tiveram a coragem de acompanhá-lo ao México.

Pouco antes do aprisionamento e da execução de Maximiliano no México, a França celebrou um dos maiores eventos do período de Eugénie e Napoleão III: a segunda Exposição Mundial, aberta a 1 de abril de 1867 e encerrada a 3 de novembro. A grande quantidade de visitantes transformou Paris em l'auberge du monde. Essa Exposição representou o apogeu de um desenvolvimento cosmopolita da capital francesa e de sua repercussão internacional. Teve a possibilidade de sufocar o impacto dos fracassos da França no Exterior, sobretudo no México. Apesar da tragédia que havia decisivamente causado, Eugènie teve aqui a possibilidade de apresentar-se em moldura brilhante e festiva.

Segundo a análise de Clara Tschudi, o regime bonapartista alcançou, aqui, com a internacionalidade do evento e o seu esplendor, a atenção dos diferentes estados europeus e recebeu a visita de representantes das mais antigas famílias reinantes. Para Tschudi, a Exposição de 1867 foi a vitória não apenas de um sistema de "parvenüs e aventureiras", mas sim de uma cultura grandiloqüente e brilhante, fundamentalmente vulgar.

Maximiliano e o Brasil na imagem de uma monarquia nas Américas

Se a escolha de Maximiliano de Habsburg para essa aventura pode ser examinada e compreendida à luz de processos culturais nas quais a Imperatriz e os mexicanos em Paris estavam envolvidos, ambos os lados movidos por desejos de legitimidade - Eugénie, com a sua origem relativamente modesta tornava-se agente de um oferecimento de coroa a representante de uma das mais antigas famílias da Europa -, a aceitação da proposta por parte de Maximiliano surge como de difícil compreensão.

Várias tentativas de explicação foram feitas, algumas considerando mais a sua situação no âmbito familiar, sobretudo quanto às relações com o seu irmão no trono, outras atentando sobretudo a problemas de vaidade pessoal. Uma possibilidade de elucidação, porém, não tem sido considerada. A existência, no Brasil, de uma forma monárquica de Govêrno, de um Império sob a égide de família de antiga estirpe e legitimidade, fazia com que o projeto da instituição da monarquia no México surgisse como viável.

O Brasil como modêlo parece ter exercido uma função não sem importância na tomada de decisão de Maximiliano. Essa possibilidade deveria ser considerada pelos estudos culturais em contextos internacionais, uma vez que ter-se-iam aqui questões de imagens e da força de imagens no desencadear de acontecimentos.

Os motivos condutores da ação, porém, diferiram entre si. Os de Maximiliano surgem mais como de cunho idealístico, guiados por concepções de cunho cultural e de uma responsabilidade cultural da Europa com relação às nações do Novo Mundo por ela colonizadas, os de Eugènie por impulsos nascidos de complexos problemas identificatórios e canalizados a uma idéia política de defesa da "raça latina" e do Catolicismo, os dos mexicanos na Europa por visões europeizantes de sua pátria e por ações independentes que também poderiam ser examinadas à luz de complexos processos de integração e transformação de identidades.

Exames desse episódio das relações entre a França e a América Latina não possuem apenas interesse meramente histórico. Eles podem contribuir a uma maior acuidade na percepção de mecanismos que podem estar ainda hoje vigentes no âmbito das relações entre latino-americanos que vivem na Europa, as diferentes esferas dos respectivos países europeus e de suas atividades e influências nos países natais. Entre outros aspectos, poder-se-ia compreender uma tendência de alguns latinoamericanos na Europa de, conscientizando-se da história de seus países, e procurando relacionamentos em igualdade cultural com os europeus, identificarem-se não apenas com a herança européia de sua cultura mas sim também com correntes de pensamento exageradamente conservadoras e até mesmo com tendências políticas reacionárias de seus países.

(...)

Texto com base nos trabalhos apresentados no Forum França-Brasil/Brasil-França 2009 do respectivo Programa da Academia Brasil-Europa
por
Antonio Alexandre Bispo


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