Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 120/1 (2009:4)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2459


 


Tema em debate


Cultura e Ética sob a perspectiva dos Estudos Interculturais
- contexto das relações franco-alemãs e suas irradiações no Hemisfério Sul -








St.Odilien. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Este número da Revista Brasil-Europa apresenta uma súmula de reflexões de dois distintos ciclos de estudos, contatos e observações realizados respectivamente na Alsácia. França. e na Austrália e Nova Zelândia. O primeiro ciclo teve como tema o compleco Cultura e Ética, centralizando-se no vulto de Albert Schweizer e suas repercussões no Brasil. Foram aqui lembrados os 40 anos de trabalhos dedicaos á renovação teórica de estudos de relaçnoes França-Brasil e Alemanha-Brasil. O segundo complexo tratado dá continuidade a relatos oferecidos na Revista Brasil-Europa 119 do programa Atlântico/Pacífico da ABE/ISMPS pelo Ano Darwin 2009. Este último evento foi preparado no contexto dos cursos "Música no Encontro de Culturas" (1998-2002) e "Música na Oceania" (2008) levados a efeito na Universidade de Colonia sob a direção de A.A.Bispo.


Os trabalhos seguiram impulsos do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004), do II° Congresso Brasileiro de Musicologia (RJ 1992), do Encontro Regional para a América Latina e Caribe ICM/UNESCO (SP 1987) e do projeto "Culturas Musicais Indígenas" patrocinado pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha (1992-).


A orientação teórica é marcada pela tradição de pensamento e de iniciativas remontante à sociedade de renovação de estudos e prática cultura fundada em S. Paulo, em 1968 (Nova Difusão), atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais.

Instituições envolvidas e visitadas: Academia Brasil-Europa, Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes e.V./IBEM,










                                                                   



A presente edição é dedicada a um complexo temático que relaciona entre si diferentes questões de relevância na atualidade e que são tratadas sob a perspectiva de trabalhos que vêm sendo desenvolvidos há décadas no âmbito da organização Brasil-Europa.


Em 1969, poucos meses após a instituição oficial da sociedade Nova Difusão, entidade constituinte da atual organização, voltada ao estudo de processos de difusão cultural espontâneos ou fomentados por instituições particulares e órgãos oficiais (Veja números 115 e 116 desta revista), passou-se a dedicar uma especial atenção à difusão cultural no âmbito das relações França-Brasil/Brasil-França e Alemanha-Brasil/Brasil-Alemanha.


Procurava-se retomar aqui, de forma consciente e sistemática, um problema sentido já há muito na vida cultural. Sobretudo na área da música percebia-se a existência no Brasil de esferas por assim dizer paralelas, marcadas respectivamente por estreitos elos com a França, com "escolas" e correntes de pensamento transmitidas por professores e artistas brasileiros que haviam realizado estudos em Paris, e por vínculos com a Alemanha, mantidos sobretudo por professores e músicos de ascendência alemã.


No âmbito essas esferas podia-se constatar um cultivo de repertórios com distintas características, focalizando diferentes compositores e obras, levando à difusão de diferentes correntes estéticas e histórico-culturais, de distintas concepções teóricas e técnicas, de tratamento privilegiado de práticas instrumentais, até mesmo de diferentes visões do mundo e da história.


As rêdes constituídas por mestres e discípulos e por apreciadores marcados pelos respectivos contextos sociais e culturais eram consolidadas e atualizadas através das atividades de institutos voltados à propaganda cultural e ao fomento de relações bi-laterais de ambos os países, tais como a Aliança Francesa e o Instituto Goethe, complementadas por festivais ou eventos de cunho festivo-comemorativo organizados por secretarias de cultura e outras instâncias governamentais.


Apesar de cooperações e afinidades individuais, percebia-se assim a existência de configurações sócio-culturais com diferentes identificações e que não deixavam de manifestar subjacentes tensões: estudantes que mudavam de orientador viam-se confrontados em geral com a necessidade de mudar de técnica, de "começar de novo", de adquirir novas concepções e conhecer novos repertórios.


Foi Paulo Affonso de Moura Ferreira, então recém-chegado da Alemanha, envolvido em atividades relacionadas com relações exteriores e voltado à divulgação de novas concepções e correntes estéticas de diferentes países sob a perspectiva de um intercâmbio inovador, um daqueles que sentiram a necessidade de uma posição mais refletida perante esses mecanismos de difusão cultural.


O contacto mais próximo com então jovens professores e artistas franceses, entre êles Michel Béroff, empenhado sobretudo na difusão de obras de O. Messiaen (1908-1992) no Brasil, assim como com educadores e pesquisadores de origem francesa no país, entre êles Nicole Jeandot, dirigiu a atenção à necessidade de reexames atualizadores de perspectivas e de sistemas de referências que criavam uma situação que muitas vezes já não correspondia àquela vivenciada nos próprios países europeus.


Tornava-se assim necessário desenvolver estudos de ambos os lados dos respectivos contextos bi-laterais no sentido de superação de existentes ou aparentes particularismos de já inatual cunho germanófilo ou galicizante. Um enfoque privilegiado das situações de aproximação recíproca nas relações franco-alemãs e de suas repercussões no Brasil podia basear-se aqui em já antiga tradição, uma vez que foram personalidades do mundo de língua alemã, sobretudo Tatiana Kipmann e Martin Braunwieser (1901-1991) que, logo após a Primeira Guerra Mundial, estabeleceram a ponte com o Brasil através das "Saudades do Brasil" de Darius Milhaud (1892-1974), obra que surgia como símbolo de uma nova situação promissora nas relações culturais em anos de reconstrução européia após a Primeira Guerra. (Veja Nr. 107 desta revista)


O desenvolvimento europeu de estudos teoricamente inovadores de processos difusivos de ambos os lados dos respectivos contextos bi-laterais, exigindo a cooperação internacional, teve o seu início europeu em 1974. A partir desse ano, diversas instituições e personalidades da Alemanha e da França foram contactadas em encontros realizados em diferentes cidades, lançando-se as bases para empreendimentos de pesquisa e publicações. Uma particular menção deve ser feita a Luís Heitor Correa de Azevedo (1905-1992), protagonista na reorganização e no desenvolvimento das relações culturais do período posterior à Segunda Guerra pelas suas atividades no âmbito de organizações internacionais, em particular da UNESCO.


Esse estudioso brasileiro, integrado na França, desempenharia papel relevante no simpósio internacional realizado em São Paulo sob a direção do editor desta revista, em 1981, e que contou com a presença de vários representantes de instituições alemãs e francesas. Seguiu-se, em 1982, na Alemanha, um primeiro Forum internacional dedicado às relações Alemanha-Brasil, tratados, no ano seguinte, especificamente em Forum França-Alemanha, realizado com a participação de pesquisadores brasileiros.


Essas relações, consideradas privilegiadamente a partir de perspectivas antropológico-culturais e em contextos de recepção cultural recíproca, inclusive em eventos promovidos pelas Comunidades Européias, em 1983 e 1984, levaram a encontro realizado em 1985 na histórica ex-abadia de Royaumont, sede de Fundação cultural e centro de estudos antropológicos.


Esse encontro determinou de forma significativa os trabalhos subsequentes. Esses trabalhos foram desenvolvidos no âmbito de diversos ciclos de estudos realizados em diferentes cidades da França e da Alemanha.


Vários desses empreendimentos e seus resultados foram expostos em relatos publicados em números anteriores desta revista e de outras páginas da A.B.E. (Veja, por exemplo,  o Nr. 96 a respeito do pensamento teórico francês da atualidade sob a perspectiva da filosofia intercultural e do ciclo de estudos na região dos Alpes franceses; o Nr. 114 a respeito da Normândia e Bretanha nos estudos euro-brasileiros e, entre os trabalhos realizados em Paris, os textos relativos ao programa Poética da Urbanidade da A.B.E.).


Ética e globalização


A preocupação atual pela Ética faz-se sentir em diversos países, contextos culturais e em diferentes esferas disciplinares. A sua atualidade diz respeito também às relações entre pesquisadores e instituições, considerando-se o aumento de emulações, plágios, atos de pirataria cultural, de iniciativas e empreendimentos desnecessariamente competitivos, de tentativas de reescrita histórica, de contrôle de desenvolvimentos teórico-culturais por parte de organismos oficiais ou não, instituições várias, emissoras e fundações de natureza política.


Essas atividades manifestam intuitos éticamente questionáveis de instrumentalização dos estudos culturais, também no concernente a contextos França-Brasil e Alemanha-Brasil. Para a discussão sócio-cultural desses problemas e de suas consequências para o próprio desenvolvimento das reflexões programou-se, em 2007/8, na Universidade de Colonia, Alemanha, sob a orientação do editor, um seminário dedicado a relações entre a Ética e a cooperação internacional nas disciplinas culturais.


Expressão maior do significado da Ética nos anseios e nas reflexões atuais é a Encíclica Caritas in Veritate, assinada no encerramento do Ano do Apóstolo Paulo (2008-2009). Esse documento, pelas suas qualidades de fundamentação e de argumentação exige ser considerado também no âmbito dos estudos teórico-culturais.


O seu significado para as reflexões concernentes à Ética tem sido salientado em diferentes comentários. De fato, no seu ítem 6, o documento elucida o título Caritas in veritate como sendo "um princípio à volta do qual gira a doutrina social da Igreja, princípio que ganha forma operativa em critérios orientadores da acção moral". Desses critérios, são lembrados dois em particular, "requeridos especialmente pelo compromisso em prol do desenvolvimento numa sociedade em vias de globalização: a justiça e o bem comum."


Ponderações éticas e a pesquisa científicas devem crescer juntas, e "a caridade as deve animar num todo interdisciplinar harmónico, feito de unidade e distinção." A Encíclica reconhece a importância do tema do respeito pela vida na atualidade (ítem 28): "Um dos aspectos mais evidentes do desenvolvimento actual é a importância do tema do respeito pela vida, que não pode ser de modo algum separado das questões relativas ao desenvolvimento dos povos."


Sob o ponto de vista teórico-cultural, o documento exprime claramente concepções culturais. Assim, no seu ítem 26, menciona diferenças no plano cultural com relação à época de Paulo VI: "Então, as culturas apresentavam-se bastante bem definidas e tinham maiores possibilidades para se defender das tentativas de homogeneização cultural. Hoje, cresceram notavelmente as possibilidades de interacção das culturas, dando espaço a novas perspectivas de diálogo intercultural; um diálogo que, para ser eficaz, deve ter como ponto de partida uma profunda noção da específica identidade dos vários interlocutores." 



Ética e diálogo entre as religiões


Uma discussão conduzida recentemente de forma polêmica na Europa disse respeito às disciplinas Ética e Religião nas escolas de Berlim. Deveria a Religião ser disciplina obrigatória numa cidade cosmopolita, cuja população foi, em parte, formada sob condições a-religiosas da antiga República Democrática Alemã e apresenta grandes segmentos de adeptos de religiões não-cristãs, sobretudo de imigrantes muçulmanos?


Nesse debate, a Igreja Católica e as confissões evangélicas procuraram defender o significado das aulas de Religião nas escolas e ginásios, e não raro esse posicionamento assumiu um cunho de oposição crítica à Ética como disciplina, por assim dizer neutra sob o aspecto religioso. O que pouco se considerou foi o fato de que essa discussão na área educacional e o plebiscito respectivo representaram apenas um aspecto de um debate muito mais amplo e profundo.


Nesse contexto, cumpre mencionar uma iniciativa teológico-ecumênica de particular ressonância das últimas décadas, o Projeto Ethos Mundial (Projekt Weltethos, Munique: Piper, 1990) de Hans Küng (*Sursee 1928), teólogo conhecido pelas suas posições críticas. Nascido na Suíça, Hans Küng realizou os seus estudos de Filosofia e Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma (1948-1955) e, após a sua ordenação (1954), na Sorbonne e no Institut Catholique de Paris (1955). Doutorou-se em Teologia (1957)e, após trabalhos na pastoral, em Lucerna (1957-1959), tornou-se Professor de Teologia Fundamental na Universidade de Tübingen. Foi conselheiro do Concílio Vaticano II (1962). Desde 1963 atua como Professor de Teologia dogmática e ecumênica e como diretor do Instituto de Pesquisa Ecumênica junto à Universidade de Tübingen. A partir de 1980 atua como Professor de Teologia ecumênica independente da respectiva Faculdade da Universidade de Tübingen.


Küng tornou-se cada vez mais consciente nos últimos anos de que o mundo apenas possui uma chance para sobreviver se não mais existir diferentes espaços de éticas contraditórias e conflitantes. O mundo, sendo um, necessita de um Ethos global. A sociedade mundial não necessita de uma religião única ou de uma ideologia única, mas sim normas, valores, ideais e objetivos comuns e unificadores.


A questão que se coloca é a da fundamentação dessa Ética e a do papel das religiões, uma vez que não pode haver paz mundial sem paz entre as religiões. Pressuposto para essa paz entre as religiões é porém o diálogo das religiões. Esse diálogo não pode permanecer uma tarefa para especialistas, mas deve ser conduzido em todos os níveis. O autor trata, assim, em três grandes capítulos, dos temas „Nenhuma sobrevivência sem um Ethos do mundo“, „Nenhuma paz no Mundo sem paz das Religiões“ e „Nenhuma paz das Religiões sem diálogo das Religiões“.


A sua argumentação, sob o título „Do Moderno ao Post-Moderno“, parte do início de uma mudança de paradigmas que teria sido marcada pela Primeira Guerra Mundial. Analisa os desenvolvimentos posteriores, que considera catastrofais, o fim das grandes ideologias modernas, as experiências liminares e inovativas, a surgente constelação do mundo da Post-Modernidade, na qual não se trata de Anti-Modernidade ou do Ultramoderno, mas sim de suspensão do Moderno. Sob o subtítulo "Para quê Ética?", considera a razão do fazer o Bem, o significado de um consenso básico para a democracia e um mínimos de valores comuns e normas, e, por fim, o lema para o futuro: A responsabilidade planetária.


Sob esse último aspecto, seria necessário, para o autor, não mais uma ética do sucesso ou da consciência, mas sim de uma ética de responsabilidade perante o mundo circundante, o ambiente e as gerações futuras. Para tal, como trata sob o ítem „Uma coalisão de crentes e não-crentes“, analisa a possibilidade de uma moral sem religião e salienta a responsabilidade comum em respeito recíproco nessa necessária coligação.


Nos próximos ítens, trata da Ética no campo de tensões entre "Autonomia e Religião", das religiões mundiais e do Ethos global e, por fim, de exemplos da contribuição cristã. Neste sentido, as exigências pós-modernas seriam: não apenas liberdade, mas sim também justiça; não apenas igualdade, mas sim também pluralidade; não apenas coexistência, mas paz, não apenas produtividade, mas solidariedade com o meio ambiente, não apenas tolerância, mas ecumenismo.


No capítulo segundo, dedicado ao caminho ecumênico „entre o fanatismo pela verdade e o esquecimento da verdade“, entre os seus muitos ítens, trata do „Humanum como critério ecumênico fundamental“ e da dignidade humana como base e das relações entre Religião e Humanidade.


Na parte terceira de sua obra ("Prolegomena para uma análise da situação religiosa da atualidade") salienta a necessidade de uma pesquisa de base das religiões, de como História já não pode ser mais escrita (com observações sobre a "Filosofia da História" de G.F.W. Hegel, a "Morfologia da Cultura" de O. Spengler e a "Teoria de ciclos culturais" de A. Toynbee), e trata da aplicação da concepção de paradigmas e suas mudanças aos sistemas religiosos. No caminho para uma Teologia ecumênica dirigida à paz, haveria para Küng imperativos para o diálogo interreligioso: a participação de todos os grupos (políticos, comerciantes, cientistas; igrejas, teologia, professores de religião e representantes de diferentes religiões) e em todos os níveis (diálogos oficiais e não oficiais; cientistas e diálogo espiritual; diálogo quotidiano).


A argumentação de Küng apresenta sob muitos aspectos um cunho histórico-cultural e filosófico-cultural e precisaria ser examinada pormenorizadamente nas suas diferentes inserções e implicações. A própria proposta do projeto também poderia ser considerada como de natureza cultural, ainda que focalizando primordialmente a religião e o diálogo interreligioso.


Uma consideração mais aprofundada e diferenciada do projeto exige porém, sob o aspecto teórico-cultural, o estudo de seus pressupostos e, sobretudo, da sua posição numa história do pensamento dirigida às relações entre a Cultura e a Ética. Somente a partir de um exame mais cuidadoso da história das preocupações e das reflexões sobre a Ética nesse sentido é que se pode constatar a continuidade ou a discontinuidade de correntes de pensamento e de propostas, do desenvolvimento (ou do retrocesso) quanto à coerência e a profundidade das análises e conclusões, o cunho inovativo ou não das aproximações, das idéias e das proposições.




Relembrando Cultura e Ética de Albert Schweitzer


A argumentação no âmbito do projeto Weltethos parte da constatação de que a crise atual do globo não representa um resultado de desenvolvimento recente, mas sim um produto de longos processos críticos. A questão que hoje se coloca de um Ethos global necessitaria ser tratada na consciência de que a situação presente é expressão de uma cisão epocal profunda iniciada pela Primeira Grande Guerra (pág. 20).


É singular que Küng não mencione um dos pensadores e teólogos que mais se destacaram na análise da crise da cultura e de suas relações com a Ética, autor da obra explicitamente intitulada de Cultura e Ética, sobretudo por ter este vivido à época da Primeira Guerra: Albert Schweitzer (1875-1965) (Kultur und Ethik: Kulturphilosophie zweiter Teil, Munique: Biederstein 1923, 7.ed. 1948).


Enquanto Küng dirige a sua atenção aos desenvolvimentos negativos da época posterior à Guerra, à chance perdida de uma nova ordem mundial após 1918 e após o Tratado de Versailles, da incapacidade de criação de critérios éticos que tivessem impedido a crise global posterior à Primeira Guerra, Schweitzer conduziu a sua análise, de forma historicamente mais profunda, às causas que levaram à crise da qual a sua manifestação foi a própria Primeira Guerra.


A reconsideração - e mesmo o redescobrimento de A. Schweitzer - surge como necessária para os estudos culturais em contextos internacionais, em particular sob a perspectiva euro-brasileira.


O esquecimento de sua obra e de sua ação impede o desenvolvimento de exames adequados do desenvolvimento do pensamento ético e ético-cultural em dimensões globais no século XX. Schweitzer alcançou como poucos renome mundial também e sobretudo pelo seu trabalho internacional humanitário de fundamentação ética, em particular na África.


Foi reconhecido pelo seu empenho a favor da paz (Prêmio Nobel) e exerceu considerável influência no Brasil. Os caminhos pelos quais exerceu essa influência foram sobretudo de natureza cultural e por intermédio de círculos culturais e artísticos. O exame dessas vias de transmissão do pensamento ético-cultural de Schweitzer e das rêdes sociais respectivas surge como importante tarefa dos estudos dirigidos às relações entre a Ética e a Cultura.


As similaridades e as diferenças entre as atuais propostas de um Ethos global e o edifício de concepções de Schweitzer são múltiplas. A sua detectação e análise exigiriam porém estudos diferenciados.


No projeto Weltethos, salienta-se a necessidade de uma mudança paradigmática e uma transformação de valores, entre êles o da passagem de uma ciência independente da Ética a uma ciência de responsabilidade ética, e o de uma indústria que não destrua o meio ambiente a uma indústria que fomente os interesses verdadeiros e as necessidades do Homem em harmonia com a Natureza. (pág. 41).


Relativamente às exigências sob o ponto de vista cristão, o autor cita, entre outras, a de que não só a produtividade seja vista como critério, mas sim a solidariedade com o meio ambiente. No terceiro milênio dever-se-ia encontrar um caminho numa comunidade dos homens com todas as criaturas, na qual também os seus direitos e sua integridade sejam respeitados, fora da separação entre os homens e o resto da Criação, fora da dominância do Homem sobre a Natureza, fora de um estilo de vida e de formas de produção que prejudicam seriamente a Natureza e fora de um individualismo que prejudica a integridade da Natureza a favor de interesses particulares.


Necessário seria uma ordem do mundo amiga da Natureza (pág. 95). O Brasil é citado nesse contexto como exemplo dos aspectos negativos das conquistas ocidentais: a destruição das florestas tropicais surge como resultado de um desenvolvimento industrial do Ocidente que não se preocupa pela ecologia (pág. 31).


Na discussão a respeito do Humanum como critério ecumênico comum, que não poderia ser visto como uma superstrutura acima das religiões, e não deveria ser compreendido como resultado do Humanismo europeu, influenciado pelo Cristianismo, Küng afirma que a verdadeira Humanidade seria o pressuposto da verdadeira religião. O Humanum, exigência mínima de cada religião poderia ser definido como respeito pela dignidade humana e valores fundamentais.


Em Albert Schweitzer, porém, a concepção do Humano é ainda mais ampla, mais coerente com todo o edifício de concepções e assume uma conotação menos antropocêntrica. O seu pensamento é marcado pelo motivo condutor da Veneração pela Vida, também e inclusive de outros seres viventes.


O problema da Igreja, segundo Schweitzer, residiria no pêso que esta daria à história, às instituições criadas no decorrer da história e às tradições de pensamento e da vida religiosa. O histórico na sua organização seria mais poderoso do que o fato de ser uma comunidade espiritual no sentido mais profundo e fundamental do termo, Com isso, teria caído no Espírito do Tempo e deixado que o direcionamento à realidade obscurecesse o seu escopo primordial. Este seria o de unir os homens em espiritualidade, e esta deveria ser refletida e de orientação ética.


Para A. Schweitzer, uma mentalidade de Veneração pela Vida poderia contribuir à transformação da Igreja em direção ao ideal de comunidade espiritual no sentido real do termo, uma vez que a própria concepção de Veneração à Vida seria profundamente espiritual. Essa mentalidade dirigiria a atenção em toda a fé formulada historicamente a uma „Mística ética“ do estar unido com a Vontade infinita. Essa Vontade se manifestaria no Homem no amar, princípio básico e o essencial da religiosidade. Dirigindo a atenção ao mais genérico e vital, as comunidades religiosas se libertariam das estreitezas do passado histórico e prosseguiriam no seu caminho em compreensão mútua e unidade.


A mentalidade da Veneração pela Vida contribuiria também à superação da irreligiosidade. Estes teriam perdido os seus vínculos com a religião em parte por falta de reflexão ou de visão espiritual do mundo, em parte também pelo fato de, procurando a veracidade, não serem capazes de permanecer na visão do mundo tradicionalmente representada pela(s) igreja(s). A mentalidade da Veneração pela Vida os faria vivenciar o fato de que toda visão do mundo e da vida que se torna ética, deixando-se guiar segundo o preceito da Veneração pela Vida, necessariamente se torna espiritual. A „Mística ética“ abriria as portas para a religião do amor, necessariamente decorrente da própria reflexão, levando-os de volta aos caminhos dos quais sairam.


O decisivo para colocar em marcha o desenvolvimento do Estado e da Igreja em direção da Cultura seria para A. Schweitzer que muitos estivessem imbuídos dessa mentalidade da Veneração pela Vida. Assim, iria surgir, nas comunidades religiosas e nos Estados um espírito que trabalharia na transformação global em direção ao Ético e Espiritual.


*


A presente edição considera alguns dos motivos desse complexo temático a partir da perspectivas interculturais no contexto das relações franco-alemãs e de suas repercussões no Hemisfério Sul. As reflexões encetadas estabeleceram elos com o Ano do Apóstolo Paulo, com imagens e tradições de vida guiadas por princípios éticos em diferentes contextos e procuraram vir de encontro à exigência de um relacionamento estreito entre ponderações éticas e a pesquisa científica.


Partindo contextualmente das relações franco-alemãs, em particular daquelas historicamente vinculadas com a Alsácia, considera de forma especial o pensamento de Albert Schweitzer, nascido nessa região. O significado da Primeira Guerra Mundial sob o aspecto de uma história da Ética, relembrado na atualidade no âmbito do projeto Weltethos e já salientado por A. Schweitzer, é tratado sob a perspectiva da participação brasileira e do seu significado para a difusão da cultura francesa no mundo.


Sobretudo, porém, é a Ética de orientação segundo a Veneração pela Vida que mereceu ser particularmente considerada pelo seu significado na atualidade, marcada que é por questionáveis desenvolvimentos destruidores da Natureza e de embrutecimento com relação ao tratamento de seres viventes.


Se também documentos eclesiásticos e textos de natureza teológica reconhecem e salientam a necessidade de um maior respeito à Criação, constata-se neles não raro observações relativadoras que refletem um receio de atitudes e concepções panteístas. Tais menções restritivas, que enfraquecem os pronunciamentos, podem ser consideradas como manifestações de insuficiente consciência da magnitude de processos destruidores da atualidade, de suas graves consequências sociais e culturais, e de insuficiente empatia pelo sofrimento de seres viventes. Um estudo mais pormenorizado da história do pensamento voltado à Ética demonstra que as reflexões foram e são em geral muito mais profundas e que exigem consideração teórica diferenciada: insinuações críticas de um suposto panteísmo não são justas e pertinentes.


Antonio Alexandre Bispo




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


  2. A A.B.E. é entidade exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias. É, na sua orientação teórico-cultural, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. A Organização de Estudos de Processos Culturais remonta a entidade fundada e registrada em 1968 (Nova Difusão). A A.B.E. insere-se em tradição derivada de academia fundada em Salzburg pelos seus mentores, em 1919, sobre a qual procura sempre refletir.