Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 120/6 (2009:4)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2464


 



Crise da cultura e suas causas éticas
Relendo análises filosófico-culturais de Albert Schweitzer (1875-1965) e o Espírito das Catedrais de Paulo Duarte (1899-1984)
Reflexões em Haut-Andlau, Alsácia







Haut-Andlau. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Este texto apresenta uma súmula de reflexões de ciclo de estudos, contatos e observações realizados na Alsácia. França. O ciclo teve como tema o complexo de relações "Cultura e Ética", centralizando-se no vulto de Albert Schweizer e suas repercussões no Brasil. Foram aqui lembrados os 40 anos de trabalhos dedicaos á renovação teórica de estudos de relações França-Brasil e Alemanha-Brasi pelo Ano Paulo 2008/2009.


Os trabalhos seguiram impulsos do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004), quando lembrou-se, em colóquio internacional, das relações entre Albert Schweitzer e a Sociedade Bach de São Paulo, presidida por Martin Braunwieser, personalidade de relêvo na tradição em que se insere a A.B.E..


A orientação teórica é marcada pela tradição de pensamento e de iniciativas remontante à sociedade de renovação de estudos e prática cultura fundada em S. Paulo, em 1968 (Nova Difusão), atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais.











Ruínas do castelo de Haut-Andlau. Ciclo de estudos Alsácia-Brasil

Fotos A.A.Bispo 2009

 
As ruínas do castelo de Haut-Andlau, na Alsácia, oferecem condições propícias e sugestivas a reflexões relativas a crises no âmbito de estudos dirigidos à Cultura e Ética em  contextos interculturais.


De sua situação ruinosa em posição elevada, descortina-se, da França, uma paisagem que leva até a Floresta Negra, na Alemanha. Edificado no século XIII por Eberhard de Andlau, foi saqueado durante a conquista da Alsácia, em 1678, desapropriado à época da Revolução Francesa, destruído durante as guerras napoleônicas, utilizado como pedreira para outras construções e hoje se apresenta apenas com os seus muros externos, parte de um dos pátios e paredes com janelas góticas.


Em 2009, foi alvo de projeto de iluminação, com associações simbólicas, transmitido nacionalmente por emissoras francesas.


Há, em debates relativos a questões culturais, frequentemente vozes que se levantam contra a crise ou as crises na cultura, que constatam desenvolvimentos ético-culturais questionáveis e degenerescências. Torna-se oportuno, assim, recordar exames e pronunciamentos do passado, em particular de outras épocas sentidas como críticas.


Ganha-se com esse procedimento maior profundidade histórica nas discussões atuais e subsídios para um prosseguimento teoricamente mais fundamentado das reflexões. Dois contextos históricos merecem ser particularmente considerados sob esse aspecto, o relacionado com a Primeira Guerra Mundial e aquele marcado pela Segunda Guerra.


Cultura, Crise e Ética no contexto da Primeira Guerra Mundial


Em 1923, Albert Schweitzer (1875-1965) abriu a sua exposição sobre a Cultura e Ética, remontante a aulas proferidas na Universidade de Upsala, com a constatação da existência uma grave crise da cultura ocidental (Kultur und Ethik: Kulturphilosophie zweiter Teil, Munique: 2a. ed. Biederstein 1948).


Segundo êle, não seria certo dizer que essa crise teria sido causada pela Guerra que terminara em 1918. A Guerra e tudo que com ela se relacionava seria apenas uma expressão da "falta de cultura". A cultura encontrava-se abalada mesmo em países que não haviam participado da Guerra e não sentiam as suas consequências de forma direta. A situação crítica aqui apenas não se manifestava de forma tão evidente como nos países atingidos pelos acontecimentos bélicos.


Para Schweitzer, a crise cultural teria fundamentos imateriais, ou seja, espirituais. Na consideração dessa crise cultural, o pensador partia de uma distinção entre o material e o espiritual na cultura e tratava da cultura como visão do mundo (Weltanschauung).


O escopo de Albert Schweitzer era o de expor a „a tragédia da visão do mundo ocidental.“ Esse intuito era de longa data, pois já nos seus tempos de estudante ficara surpreendido ao constatar que a História do Pensamento sempre havia sido considerada como uma História de Sistemas Filosóficos, não como uma História de procura de uma Visão do Mundo.


Mais tarde, refletindo sobre o movimento cultural no qual se encontrava inserido, tornou-se consciente dos elos existentes entre cultura e visão do mundo. Qual seria a visão que o pensamento ocidental quis ter e teria alcançado? O que restaria da Filosofia quando dela se tirassem os ornamentos de erudição? O que a Filosofia teria a oferecer ao Homem no sentido de uma vida profunda e atuante?


O pensamento ocidental ter-se-ia esforçado em alcançar uma visão do mundo como fundamento de uma cultura ampla. Ele teria procurado alcançar uma afirmatividade quanto ao mundo e à vida, fornecendo as bases para o Homem procurar progressos e criar valores.


Teria procurado fornecer as bases para que o Homem colocasse a sua vida a serviço de ideais e de outras vidas. Não teria conseguido, porém, fundamentar uma tal visão afirmativa do mundo e da vida. Correspondentemente, a cultura teria permanecido fragmentária e insegura.


Expansão da cultura e da "falta de cultura" da Europa


A questão levantada por A. Schweitzer dizia respeito à falta de preocupação por reflexões mais profundas sobre a crise cultural e sobre as possibilidades de superá-la.


Schweitzer parte de uma crítica ao pensamento de sua época, salientando que os intelectuais encontravam-se perdidos em estudos historiográficos. Procuravam propagar a convicção de que cultura fosse algo por assim dizer natural, florescendo em determinados povos e em determinadas épocas, desfalecendo depois necessariamente, de modo que, sob os aspecto histórico-cultural, as nações estariam sendo continuamente substituídas por outras.


Quais seriam os povos, porém, que estariam em condições de oferecer substitutos à cultura européia? Nenhum país surgia, aos olhos de Schweitzer, como capaz de assumir esse papel.


Todos os povos da terra tinham recebido em grande medida não apenas a cultura, mas sim também a falta de cultura da Europa. Assim, participavam de forma mais ou menos acentuada de seu destino. Em nenhum país podia Schweitzer encontrar idéias que pudessem levar a um significativo e original movimento de renovação cultural profunda.


Insuficiências da História Cultural e de concepções de cultura


Schweitzer criticava uma tendência de intelectuais a considerações cheias de espírito, ao tratamento de pormenores curiosos e a panoramas histórico-culturais interessantes. Defendia a opinião que seria necessário tratar o problema da cultura não tanto sob a perspectiva histórico-cultural, mas sim de forma objetiva e sistematicamente refletida. A primeira questão a ser colocada diria respeito às características da crise da cultura européia e às suas causas.


O grave problema da cultura ocidental residia, para Schweitzer, no fato de ter-se desenvolvido muito mais na esfera material do que na imaterial ou espiritual, de modo que o equilíbrio se encontrava abalado.


Os progressos dos conhecimentos e da técnica tinham sido tão extraordinários que havia modificado profundamente a vida do indivíduo, a dos grupos sociais e a dos estados. As condições de vida tinham melhorado, sob muitos aspectos.


No entusiasmo por esses progressos do saber e do poder, porém, tinha-se adquirido uma concepção falsa da cultura. Passara-se a valorizar excessivamente as conquistas materiais do Homem. Schweitzer utilizava-se aqui da imagem de um navio que, com os aparelhos de direção avariados, se descontrola e leva à catástrofe.


Para Schweitzer, o fundamental na cultura não reside nas suas conquistas materiais, mas sim no fato de que os indivíduos estejam imbuídos de ideais do aperfeiçoamento humano e de melhoramento das condições sociais e políticas dos povos e da Humanidade, deixando-se dominar na sua mentalidade por esses ideais de forma viva e constante.


Somente quando cada indivíduo trabalhar nas forças espirituais em si e na sociedade é que haveria a possibilidade de que os problemas criados fossem solucionados e que se caminhasse a um verdadeiro progresso. Se esse progresso fosse ou não acompanhado por crescimento material, isso não seria o decisivo. A mente é que deveria manter o seu poder sobre os fatos.


Voltando a utilizar-se do símbolo do navio, Schweitzer elucidava a sua posição dizendo que, para que a viagem chegasse a bom termo, isso não dependeria da velocidade da nave, mas sim de seu curso e de ser dirigida acertadamente. Assim como no navio uma velocidade maior e maior complexidade técnica exigem uma direção mais segura e firme, também na cultura o aumento das condições materiais exigem uma atenção ainda maior para o espiritual. Quanto maior o progresso material e o aumento de conhecimentos e de aptidões, tanto mais aumentam as exigências ao espírito. O progresso material leva a sérios problemas que não podem ser totalmente previstos e evitados. Ter-se-ia assim uma paradoxia: o progresso dos conhecimentos e das aptidões não torna mais simples o desenvolvimento cultural, mas sim mais complexo.


O perigo mais generalizado trazido pelo desenvolvimento das conquistas materiais residia para Schweitzer no fato de que o Homem, com as transformações de suas condições de vida, tinha perdido a sua liberdade. Agricultores que cultivavam a sua terra haviam passado a ser operários de fábricas; artesãos e comerciantes livres haviam-se transformado em empregados. Haviam perdido assim a liberdade elementar do Homem que mora na sua própria casa e que se encontra em contacto direto com a terra.


O Homem, assim, não possuia mais a ampla mentalidade de responsabilidade daqueles que vivem do trabalho livre. Eles tinham passado a conduzir a luta pela existência não mais através de maior diligência no cumprimento de seus deveres, mas sim formando grupos de poder para a luta por melhores condições. Havia, assim, uma mentalidade não-livre, caracterizada pela distorção de ideais culturais.


Até um determinado ponto, todos os indivíduos tinham-se tornado subordinados não-livres. Todos sofriam sob o excesso de trabalho físico ou espiritual. Não tinham mais tempo para a contemplação. A perda da liberdade espiritual fora acompanhada pela perda da liberdade material. As organizações econômicas, sociais e políticas haviam-se tornado cada vez mais opressoras. O indivíduo encontrava, sob essas condições, dificuldades muito maiores em desenvolver a sua própria personalidade.


Os progressos da cultura material também aguçaram os problemas sociais e políticos. A máquina e o comércio mundial é que teriam para Schweitzer levado por fim à Primeira Guerra Mundial, e as possibilidades técnicas teriam causado a ruína dos contraentes. As conquistas técnicas possibilitaram que se matasse de longe, abafando assim todo o sentimento de Humanidade.


Conquistas materiais, assim, não significam cultura. São apenas veículos da cultura se atuarem a favor do aperfeiçoamento do indivíduo e do todo.


Seria insuficiente, para Schweitzer, crer num progresso imanente aos fatos. No lugar de se cogitar em ideais ditados pela razão e de se preocupar com a transformação da realidade segundo os seus ditames, passara-se a seguir ideais derivados da realidade dos fatos e das aparências.


Qual teria sido porém a razão da perda da dimensão imaterial na cultura? Para Schweitzer, essa questão exigiria que se remontasse a épocas passadas, em particular ao século XVIII. Entre os Racionalistas teria havido ainda convicção de que a mentalidade é que representa o fundamental na cultura. A atenção fora ainda dirigida ao progresso espiritual do Homem e da Humanidade.


A grandeza de alguns pensadores do Iluminismo residira no fato de terem salientado os ideais do aperfeiçoamente do indivíduo e da sociedade, dedicando-se a êles com entusiasmo. A visão do mundo teria sido ainda otimista e ética. O seu otimismo derivar-se-ia da convicção de que há no mundo uma força intrínseca dirigida ao aperfeiçoamento. Essa visão do mundo levava o Homem à dimensão ética, fazendo que este ponha de lado interesses egoístas. Tratava-se de uma mentalidade marcada pelo Humano como ideal.


A crítica posterior ao Racionalismo salientara a superficialidade do seu otimismo e a sentimentalidade de sua Ética. Perdera-se com isso a energia de uma mentalidade cultural. Para Schweitzer, à medida que a visão do Racionalismo foi sendo abandonada cresceu o sentido pela realidade material, até que, em meados do século XIX, os ideais passassem a ser ganhos não da razão, mas sim da realidade. Atingiu-se, assim, uma situação de falta de cultura e de perda do Humano.


Cultura como resultado de uma visão ética do mundo


Com esse esboço histórico, A. Schweitzer procurou mostrar a existência de um relacionamento entre cultura e visão do mundo. Cultura seria o resultado de uma visão do mundo otimista e ética. Somente uma visão afirmativa e ética do mundo e da vida poderia levar a ideais culturais e torná-los vigentes no indivíduo e na sociedade.


Para A. Schweitzer, cultura diz respeito a todos os progressos do Homem e da Humanidade em todos os campos e sob todos os aspectos, desde que os mesmos sirvam ao aperfeiçoamente espiritual do indivíduo e ao "progresso dos progressos". O motor para alcançar progresso em todos os campos e sob todos os aspectos reside numa visão otimista do mundo, ou seja numa visão que enxerga o mundo e a vida como valiosos. Dela origina-se então a vontade de agir no sentido de melhorar situações individuais e sociais.  Se uma visão do mundo afirmativa da vida, otimista, tem o poder de despertar no Homem impulsos para a ação cultural, só a força ética pode confirmá-lo nesse impulso, mantendo nele sempre presente uma orientação dirigida ao aperfeiçoamento do indivíduo como o principal escopo da cultura. Se a cultura permanecer deficiente ou regredir, isso é um sinal de que a visão afirmativa do mundo e da vida diminuiu ou que a ética retrogrediu.


Na cultura européia ter-se-ia perdido a orientação segundo a ética. Há décadas o europeu ter-se-ia acostumado, de forma crescente, a medir com critérios éticos relativos, não deixando que a ética fosse considerada em todas as questões. A renúncia a um julgamento ético passou a ser sentida como um progresso da objetividade. Também a afirmatividade do mundo e da vida estaria abalada. O indivíduo não mais se sentia impulsionado a pensar nos ideais do progresso dos progressos. Ele ter-se-ia resignado, caindo até mesmo em pessimismo; êle não mais acreditava no progresso ético do Homem e do Humano, o que, para Schweitzer, representava o cerne da cultura.


Essa diminuição da afirmatividade do mundo e da vida e da Ética teria a sua causa na visão do mundo. Desde meados do século XIX vivenciar-se-ia uma crise da visão. Não se conseguiria mais chegar a uma concepção do Universo na qual houvesse um sentido para a existência do Homem. Nessa concepção deveriam estar contidos os ideais derivados da afirmação do mundo e da vida, assim como a vontade ética. De uma falta de visão ter-se-ia chegado a uma falta de cultura.


Se o Homem conseguisse estabelecer de novo uma visão do mundo que incluisse uma afirmatividade ética do mundo e da vida de forma convincente, a crise cultural poderia ser dominada. Uma renovação da cultura poderia assim apenas nascer de uma renovação da visão do mundo, de sua assimilação pela convicção geral, despertando nova ânsia por visões. O Homem, porém, não tinha percebido que vivia com uma visão do mundo insatisfatória ou com falta de visão. A tarefa residia assim na necessidade de levar o Homem de hoje à reflexão elementar sobre a questão do que é o Homem no mundo e o que deseja fazer de sua vida. Somente quando o Homem for tomado pela necessidade de dar sentido e valor à sua existência, despertando sêde e fome por uma visão do mundo satisfatória é que se estabeleceriam para Schweitzer os pressupostos para uma vida interior, apta de novo ao desenvolvimento cultural.


Cultura, Crise e Ética no contexto da Segunda Guerra Mundial


Obra brasileira significativa nas discussões relativas às relações entre Cultura e Ética sob particular consideração de contextos franco-alemães é O Espírito das Catedrais, de Paulo Duarte (São Paulo: Anhambi, 1958). Como o autor expõe nas suas palavras introdutórias, essa obra oferece uma elaboração literária de anotações de Tietê Borba, correspondente brasileiro no período da Guerra na França. Borba teria abandonado o país juntamente com Paulo Duarte à época da entrada dos alemães em Paris, exilando-se temporariamente em Portugal. Colocando-se a serviço da causa aliada, dirigiu-se à Inglaterra; faleceu em Coventry, em 1941. Numa viagem à França, em 1950, depois de um jantar com a presença de amigos franceses, entre êles Paul Rivet, Henri Laugier, Claude Lévi-Strauss, André Blummel, Susanne Blum e Paul Weil, lembrou-se do nome de Tietê Borba. Paulo Duarte resolvera então abrir os materiais a êle entregues e que continham 52 cadernos com anotações quase que diárias do período do correspondente na França: „Aí estava realmente, por inteiro, o testemunho de Tietê Borba sôbre os acontecimentos, sôbre os seus amigos bem como o seu sempre igual imutável amor pela França“ (VIII).


Paulo Duarte traça um perfil de Tietê Borba como um homem inconformado com a situação política européia e com a invasão da França, imbuído porém de uma certeza de que, „afinal, as forças do espírito acabariam vencendo as da brutalidade, certeza que, àquele momento, só a fé poderia dar, pois os fatos afirmavam que tudo estava perdido.“ (op.cit. VII). A sua morte em Coventry surge até mesmo com dimensão simbólica: „Tietê Borba morria com uma das catedrais góticas pelas quais nutriu sempre um fascínio irresistível“. (VIII)


Sobretudo o capítulo que encerra a obra, intitulado de O Espírito das Catedrais, relativo ao exílio em Portugal, oferece subsídios para reflexões sobre concepções culturais e éticas do protagonista do livro - e de seu próprio autor - sob o pano de fundo da invasão da França pelos alemães. É aqui que surge com maior clareza a imagem da catedral e de seu espírito como símbolo de uma posição cultural de orientação ética. Expõe-se aqui uma fé no espírito das catedrais, um espírito que não era compreendido primordialmente no sentido religioso. As catedrais seriam monumentos do espírito, e o Homem deveria ser fiel à legião do espírito, devendo zelar pelas catedrais e arrazar os quartéis da violência.


As reflexões se desenvolvem a partir de uma visita ao Mosteiro dos Jerônimos, em Lisboa. Este tinha sido visitado em meados da década de trinta, causando uma profunda impressão. Após ter conhecido catedrais em outros países europeus, o observador brasileiro receava desiludir-se.


„Havia oito anos que estivera nos Jerônimos. Nesse tempo não conhecia ainda as catedrais da Europa. Pensando nisso e nas impressões inapagáveis de Chartres, Amiens, Rheims, Colonia, Worms e tantas outras, estava com receio de que a nova vista não correspondesse à recordação da primeira. Principalmente quando o exterior não dá a idéia de qualquer aspecto monumental do interior. (...)


Os seus receios eram infundados. A impressão que recebia agora não desmanchava a recordação da primeira visita. Chocava um pouco aquela riqueza de ornamentação das colunas sustentando umas abóbadas originais, como um mar encapelado de gravura primitiva e de cabeça para baixo... (...)


Era realmente uma maravilha de arrôjo e de beleza. Os bocetes de bronze, na intercessão dos artesãos, destoavam, mas a majestade da cúpula impunha-se (...)." (pág. 507 ss.)


„Era diferente de tudo quanto haviam visto nas catedrais francesas e alemãs, porque era uma jóa única. A aplicação do gótico e do renascimento aos motivos marítimos inspirados na navegação, cujos símbolos, instrumentos, emblemas e cordoaria foram estilizados, dera como resultado a arquitetura manuelina“. (pág. 514)


Na argumentação, percebe-se a defesa uma concepção de cultura espiritual (ou civilização segundo o emprêgo francês do termo) distinta daquela da realidade material, exposta de forma particularmente sugestiva na situação de Portugal.


„Não confunda civilização com riqueza. Portugal passou por uma crise longa de decadência e pobreza. Vendo, evidentemente, as crianças pedindo esmola pelas ruas, tem-se impressão lastimável, mas contemplando uma abóbada como esta, a gente sente a mesma civilização latina. Por isso sou perfeitamente preciso quando digo que o manuelino é a perpetuação dessa grandeza.“ (pág. 513).


Com o conhecimento adquirido da visita a catedrais francesas e alemãs, o protagonista brasileiro passa a tecer considerações sobre diferenças culturais e de concepções espirituais manifestadas na arquitetura, em particular comparando experiências interiores vivenciadas na Catedral de Colonia e nos Jerônimos.


"As catedrais góticas impõem um respeito que extasia, que eleva sùbitamente as almas. As orações soltas no interior da catedral de Colonia, por exemplo, ascendem em turbilhões pelas colunas esguias, deslisam pelas ogivas e abóbadas até os coruchéus e agulhas das tôrres. Nos Jerônimos, as preces erguem-se devagarinho, sem pressa de chegar ao céu. Parece que, à influência árabe, se apegam um pouco às belezas da vida que querem apreciar num prisco, antes de ganhar as alturas. (...) O gótico puro impõe aos crentes um respeito fervoroso a Deus. O manuelino impõe amor... Deus manifesta-se aqui dentro, mais como amigo do que como Senhor. Mais equitativo do que rigidamente justo, implacàvelmente justo. Nos Jerônimos, êle parece olhar o companheiro, mais complacente. Em Colonia, é o Deus das salsas ardentes, recriminando Moisés, é o Deus bíblico, circunspecto, de sobrancelhas grossas, que não admite familiaridades, capaz de misericórdia suave do maná sôbre o deserto, mas capaz também de surgir irado, perguntando com severidade: - Que fizeste do teu irmão?... O Deus dos Jerônimos é aquele ente protetor que diz: - Toma a vara, fala à pedra e ela dará água“. (pág. 518)


Perante a situação de crise da Europa, tornava-se difícil manter a convicção da supremacia de uma cultura do espírito e da liberdade:


"(...) às vezes fico pensando se as catedrais e nós não somos velharias inúteis, fora da moda e do tempo.  (...)  Quem sabe a cultura do espírito é mesmo uma estupidez, o homem tenha nascido para a animalidade? (...). A inteligência, essa ânsia de ascensão, a sêde de cultura, a civilização não seriam fruto de uma degenerescência, uma lesão que mutou e se tornou hereditária? Os verdadeiros aleijados seremos nós ou os alemães? Sabe que, às vêzes me torturo nessa dúvida? E fico desesperada, porque mesmo que assim fôsse, preferiria continuar aleijada..." (pág. 518)


Uma análise do desenvolvimento que levara à Guerra, porém, demonstrava as causas éticas da crise e o depauperamento moral das sociedades à base do enfraquecimento dos indivíduos e das nações.


"Essa incerteza é terrível, mas não somos os únicos a ser atormentados por ela. Ainda há poucos dias, um meu amigo e companheiro de exílio que saiu comigo da França, me dizia que muitas vêzes se interrogara se estaria ou não encostado a um tronco apodrecido. Mas depois de raciocinar, chegara à conclusão dfe que o seu apoio era ainda a árvore boa e forte. Dizia-me isso, quando eu havia narrado as mesmas conclusões, depois de contemplar friamente o espetáculo do mundo nessa tendência do completo sacrifício do indivíduo em favor do Estado. Tendência para mim sempre ignominiosa por exigir do cidadão, mais do que deveres, a sua incondicional escravização. Analisando-a e vendo o alastramento da doutrina terrível, interroguei-me várias vêzes, como você e o meu companheiro, se não seria eu quem ia ficando para trás, desambientado da minha época, se não seria o meu espírito que envelhecia e se tornava incompatível com os tempos modernos?... Depois de profundos exames de consciência para que mobilizei todos os estudos feitos, tôda a experiência, tôdas as observações, sempre cheguei à mesma conclusão de que os povos, as nações, esgotados pelas hemorragias e choques das guerras e tumultos, iam chegando a um tal ponto de depauperamento moral que o primeiro aventureiro de audácia e coragem vingava impor a sua doutrina de contrabando. Era como uma moléstia, primeiro apenas contagiosa, depois epidêmica mais pela fraqueza orgânica das coletividades ou pela covardia individual e social do que pela virulência do surto. (...) A nação mesma, esta enfraquece-se, extenua-se, retrograda, decai.. Depois da implantação do totalitarismo, destroi-se a vida espiritual do homem: única coisa que o destaca realmenta das bestas. (...) Foi essa ânsia espiritual que fêz o homem descobrir o utensílio, o fogo, a linguagem, a agricultura, a domesticação dos animais, a olaria, a cerâmica, a escrita, o livro; êsse anelo acima da matéria que lhe permitiu (...) chegar ao domínio das leis naturais pela Ciência; êsse afã de sonho alto que lhe proporcionou, partindo do primeiro golpe de um sílex sôbre outro sílex, na intenção consciente de fazer da pedra um auxiliar, a ascensão aos pináculos da estatuária grega, como pensou o criador da Pré-história. " (pág. 518-519)


A partir dessas análises e convicções, impunha-se que o Homem mantivesse a sua fidelidade às "legiões do espírito", que zelasse pelas catedrais e que se mobilizassem:


"Não vê com que afã os monstros da Europa se atiram sôbre elas? Em 1914 era Reims. Agora, foram as igrejas de Ruão, dentro em pouco tôdas as catedrais da Inglaterra. Em ambas as guerras, a biblioteca de Louvain que é também uma catedral. Você não pode calcular o que eu senti ao saber do bombardeio de Ruão! Quando lá estive, pela última vez, que desespêro (como se coisa da véspera) ao ver os nichos vazios na Cour des Librairies, cujas estatuas foram destruídas pelos huguenotes para limpar a catedral das imagens vãs. A mesma sensação em Toul, vendo os gilvazes deixados em St. Etiènne, com o extermínio da sua estatuária pela Revolução! É o roteiro, sempre o mesmo, daqueles que, confundindo-a com a verdade, adotaram como lema a afirmação de Macchiavel, pela qual os homens sentem menos respeito de ofender quem se faz amar do que quem se faz temer, esquecidos de que o amor impôsto pela violência é hipocrisia pronta a explodir na traição à primeira oportunidade." (pág. 521)

(...)

Por isso, têm horror aos homens significativos que, segundo Keyserling, mais literato do que filósofo embora, são capazes de submeter-se a um ideal, a uma instituição, a um espírito objetivado (...).

(...) são os lúcidos, os que compreendem o espírito das catedrais. Êstes conseguem trazer a beleza dentro de si, a beleza legítima que é incompatível com a crueldade (pág. 522).


     


Catedral de Estrasburgo. Desenho segundo uma fotografia de M. Braun

Élisée Reclus, Géographie Universelle III, Europe Centrale, Paris: Hachette 1878, 535

 

                                                                         

Antonio Alexandre Bispo






  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


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