Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 120/5 (2009:4)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2463


 



Contextos franco-alemães no Movimento Bach e suas extensões no Brasil
Órgãos da Alsácia e o Movimento Organístico

Charles-Marie-Widor (1844-1937) e Albert Schweitzer (1875-1965)
Reflexões em Molsheim, Alsácia








Molsheim. Fotos A.A.Bispo 2009.Copyright
Este texto apresenta uma súmula de reflexões de ciclo de estudos, contatos e observações realizados na Alsácia. França. O ciclo teve como tema o complexo de relações "Cultura e Ética", centralizando-se no vulto de Albert Schweizer e suas repercussões no Brasil. Foram aqui lembrados os 40 anos de trabalhos dedicaos á renovação teórica de estudos de relações França-Brasil e Alemanha-Brasi pelo Ano Paulo 2008/2009.


Os trabalhos seguiram impulsos do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004), quando lembrou-se, em colóquio internacional, das relações entre Albert Schweitzer e a Sociedade Bach de São Paulo, presidida por Martin Braunwieser, personalidade de relêvo na tradição em que se insere a A.B.E..


A orientação teórica é marcada pela tradição de pensamento e de iniciativas remontante à sociedade de renovação de estudos e prática cultura fundada em S. Paulo, em 1968 (Nova Difusão), atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais.









Imagens de Molsheim. Ciclo de estudos Alsácia-Brasil

Fotos A.A.Bispo 2009

 
Movimento Bach como fenômeno histórico-cultural


Em entrada enciclopédica hoje já clássica sobre J. S. Bach e sua pesquisa, o musicólogo Friedrich Blume (1893-1975) salientou a singularidade do compositor na História da Música e a do Movimento Bach na História Cultural.


Bach teria sido respeitado e apreciado sob certos aspectos pelos seus contemporâneos, estes porém não o tinham compreendido como luminar extraordinário. Os seus sucessores nele viram, de início, apenas um mestre capaz. Após 50 anos de sua morte, porém, tendo-se completado uma fase de compreensão por assim dizer em continuidade geracional, deu-se início a um processo que levou a um crescimento inacreditável de sua valorização. A ação tardia de Bach perduraria então mais de 150 anos.


O Movimento conseguiu por fim influenciar profundamente a vida e o pensamento musical de toda uma era. (Friedrich Blume, J.S.Bach, Musik in Geschichte und Gegenwart 1, Kassel und Basel 1959-1951, 1036)


Blume salienta sobretudo o relacionamento entre o Movimento Bach e o Historismo do século XIX. O Movimento teve o seu início no despertar da consciência histórica; nele e através dele procedeu-se toda a historização da vida e da pesquisa histórico-musical dos séculos XIX e XX.


Tudo o que se fizera no âmbito da História da Música e da pesquisa de suas fontes, o renascimento da música antiga e a renovação da linguagem musical derivariam em grande parte do Movimento Bach. A reorientação da criação musical, do Romantismo às novas tendências do início do século XX teriam muito a dever ao redescobrimento do contraponto de J.S.Bach. (loc.cit.)


Essas palavras de F. Blume, escritas há mais de meio século, necessitam ser consideradas em estudos dedicados à recepção de J. S. Bach e do Movimento Bach nos países de todos os continentes.


Também no Brasil - ainda que pouco considerado na literatura - pode-se constatar vínculos entre o Movimento Bach, o redescobrimento da música antiga e a tendências de renovação cultural através da difusão da música contemporânea européia nas primeiras décadas do século XX. Se F. Blume mencionou essa extensão global do Movimento, não entrou porém em considerações acerca de sua extraordinária relevância para a singularidade por êle apontada na História Cultural e que não se restringe geograficamente à Europa.


Também as relações entre o Movimento Bach e o Historismo salientadas adquirem dimensões globais e significado para os estudos culturais dos diferentes países. Com a reorientação teórico-cultural que se processa também na Musicologia Histórica, cumpre aqui rever limitações geográficas e nacionais, dirigindo a atenção sobretudo a processos interculturais e interconfessionais na cultura. Sob esse aspecto, tornam-se necessárias visões diferenciadas do decorrer da história do redescobrimento da música de J. S. Bach e do Movimento segundo esferas culturais e confessionais na própria Europa, estudando-a nos diversos centros em que mais particularmente se desenvolveram.


Nesse sentido, a Alsácia, região de encontros do mundo cultural alemão e do francês, do Protestantismo e do Catolicismo, desempenhou um importante papel.


Reforma organística da Alsácia e Movimento Organístico francês


O desenvolvimento histórico do redescobrimento da música de J.S.Bach, um fenômeno em princípio da história cultural evangélica da Alemanha, encontrou na França diferentes pressupostos. Uma das razões da diferença de situações residiu em grande parte na destruição de antigos órgãos à época da Revolução, o que impediu uma continuidade de tradições sonoras e de práticas de execução, Essas circunstâncias dificultaram a compreensão e a interpretação da música de J.S.Bach.


Com a edição gradual de sua obra completa pela Sociedade Bach alemã, também os músicos franceses passaram a incluí-las no seu repertório. O surgimento de grandes órgãos sinfônicos e a correspondente cultura auditiva e estética prejudicaram a recepção e o cultivo da música de Bach.


Uma das cidades mais significativas para estudos da tradição organística do período anterior à Revolução Francesa é a cidade de Molsheim, próxima de Estrasburgo, um dos grandes centros católicos da Alsácia.


De remotas origens, provavelmente celtas ou romanas, a cidade ganhou significado à época de Carlos Magno e no âmbito de um conflito entre os bispos de Estrasburgo e os imperadores. Um periodo altamente relevante na história cultural de Molsheim foi o compreendido entre meados do seculo XVI e meados do século XVII, época da Reforma Protestante em Estrasburgo.


Os católicos que abandonaram Estrasburgo transformaram Molsheim em centro de resistência católica e de cultura contra-reformatória. As construções barrocas da cidade perpetuam essa fase de apogeu. Assim, em 1580, com a vinda dos Jesuítas, a cidade transformou-se em centro cultural, educativo e espiritual, ali criando-se um Colégio e uma Universidade (1581-1765).


A igreja do antigo Colegio de São Jorge é não apenas significativa como monumento arquitetônico, mas sim e sobretudo por abrigar um órgão Silbermann, de 1781. Trata-se de um instrumento de Johann Andreas Silbermann, filho de Andreas Silbermann.


Este, juntamente com o seu irmão Gottfried Silbermann, foi um dos principais construtores de órgão da Alemanha do século XVIII. Johann Andreas e seu filho desenvolveram as suas atividades sobretudo na Alsácia.


Entre outros, Andreas Silbermann construiu órgãos para a catedral e duas outras igrejas de Estrasburgo, entre elas a da Wilhelmskirche, local de atuação de A. Schweitzer; Johann Andreas Silbermann foi o construtor, entre outros, de órgãos da Thomaskirche de Estrasburgo e da catedral de Arlesheim.


O conhecimento dos antigos órgãos da Alsácia seria ponto de partida para que A. Schweitzer passasse a questionar os órgãos modernos de sua época e que levaria à Reforma Organística da Alsácia e, após a Primeira Guerra, ao Movimento Organístico, este conduzido no „espírito de Silbermann“.


Charles-Marie Widor (1844-1937)


A principal personalidade que serviu de ponte entre as esferas culturais e confessionais alemãs e francesas, e possibilitou a transformação de concepções e modos de apreciação na França foi o organista e compositor Charles-Marie Widor.


Nascido em Lyon, onde o seu pai era organista de igreja católica e onde já com apenas 11 anos passou a atuar como organista no liceu local, a sua tradição musical familiar o levava à Alsácia, pois ali trabalhara o seu avô como organeiro. Recomendado por Aristide Cavaillé-Coll (1811-1899), renomado organista de St. Supilce, em Paris, passou a estudar no Conservatório de Música de Bruxelas. Obteve orientação em órgão com Jacques-Nicolas Lemmens (1823-1881) e em composição com François-Joseph Fétis (1784-1871), um dos grandes nomes da musicologia histórica do século XIX e, ao mesmo tempo, um dos fundadores da musicologia comparada e da história da música em contextos globais.


De ambos recebeu profunda influência quanto a concepções musicais e histórico-musicais. Lemmens inseria-se numa linha de continuidade que levava a Bach, e nessa corrente posicionou-se o discípulo Charles-Marie Widor. Foi, assim, formado segundo tradições alemãs da interpretação da música do compositor. Permaneceu durante toda a sua vida leal ao ideal de uma continuidade histórica - e de sua recuperação. Confrontou-se porém com as dificuldades de sua realização na prática das igrejas francesas. Na sua atividade múltipla, sobretudo na década de sessenta em Lyon e em várias regiões da França, Ch.M. Widor teve a oportunidade de obter uma visão ampla da realidade dos instrumentos e da prática de execução no país.


Com a morte de Louis Lefébure-Wély (1817-1869), foi nomeado para o grande órgão de Saint-Sulpice, Paris, um cargo que conservaria por mais de seis décadas e no qual teria como sucessor Marcel Dupré (1886-1971). Foi regente de Concordia, uma sociedade coral especializada em oratórios. Ao falecer César Franck (1822-1890), assumiu a classe de órgão do Conservatório de Paris. Widor tornou-se o principal mentor do redescobrimento da antiga escola de órgão, voltando-se à renovação da prática de execução e da interpretação. Dedicou-se à propagação da música de Bach, sendo a sua preocupação voltada à recuperação de interpretação „autêntica“ e a uma precisão na leitura das partituras.


Em 1896, passou da classe de órgão à de composição do Conservatório, assumindo aqui o posto de Théodore Dubois (1837-1924) e que agora passava a dirigir a instituição. Nas suas aulas, também de composição, fazia uso copioso das obras de Bach, influenciando, com esse método os seus numerosos alunos. Entre os seus alunos de órgão destacaram-se Charles Tournemire, Henri Libert, Louis Vierne, Alphonse Schmidt, Louis Andlauer, Albert Schweitzer, Marcel Dupré e, entre aqueles do Brasil, Furio Franceschini (1880-1976). Dentre os seus alunos de composição, destacaram-se Gabriel Dupont, Honegger e Darius Milhaud, este último também estreitamente relacionado com o Brasil.


Como homem de vasta e diversificada erudição, foi nomeado em 1914 Secretário permanente da Académie des Beaux-Arts. O seu contato com o mundo ibérico e latino manifestou-se no seu empenho pela fundação da Villa Vélazquez em Madrid, um paralelo à Villa Medici em Roma. A intenção era a de criar um centro na Península ibérica onde os artistas franceses poderiam estudar a cultura hispânica.


Contextos de língua alemã


O grande colaborador no ideal de Widor e posteriormente o grande nome da pesquisa de Bach que estabeleceria a ponte com a Alemanha e com a esfera do Protestantismo foi o seu discípulo Albert Schweitzer. Este também tinha, na sua tradição familiar, um renomado construtor de órgãos. O contato entre Schweitzer e Widor foi estabelecido em 1893 por Mathilde Schweitzer, esposa do irmão mais velho de seu pai e que residia na capital francesa. Após os seus estudos, Schweitzer ia todos os anos por algumas semanas a Paris, encontrando-se com Ch. M. Widor na primavera e, às vezes, também no outono.


Widor, que lamentava não haver uma obra que introduzisse os artistas franceses e os alunos do Conservatório de Paris na arte „autêntica“ de Bach, sugeriu a A. Schweitzer que escrevesse um livro para os seus discípulos durante as férias de outono de 1902. Este, seguindo uma tendência que se poderia chamar caracteristicamente alemã, prometeu-lhe tratar da „essência“ da música do compositor. Ambos procuravam, assim, criar uma obra que diferisse da literatura biográfico-essaística da época.


Schweitzer aceitou essa tarefa com boa vontade, pois teria aqui ocasião de expor os conhecimentos teóricos e práticos que ganhara como organista do Coro Bach na igreja St. Wilhelm. O trabalho prolongou-se nos anos seguintes de 1903 e 1904, ocupando-lhe todo o tempo livre. Foi facilitado sobretudo pelo fato de obter a edição completa das obras de Bach, então rara, de modo que já não precisava procurar partituras na bibliteca da Universidade de Estrasburgo. Obteve essa edição de uma senhora parisiense que havia feito há anos uma subscrição da obra para apoiar a Sociedade Bach da Alemanha.


Schweitzer estava consciente da ousadia do seu empreendimento. Apesar dos seus vastos conhecimentos musicais, não era um musicólogo. Ele não pretendia, porém, realizar uma obra musicológica, mas sim tratar de Bach de „músico para músicos“. Procuraria, como mencionado, interpretar a „essência da música de Bach“ e tratar de questões relativas ao modo de executá-la. Tranquilizava-se pelo fato de não estar escrevendo uma obra para o meio alemão, onde a pesquisa já estava estabelecida, mas sim para a França, onde a arte de Bach necessitava ainda ser difundida e era muito menor o grau de conhecimentos acerca do mestre alemão. Não era fácil, porém escrever uma obra em francês quando, ao mesmo tempo, pensava e dava aulas em alemão. De muita utilidade para o seu trabalho foram os conselhos estilísticos de Hubert Gillot, docente de francês na Universidade de Estrasburgo.


Para Schweitzer, a diferença entre as duas línguas poderia ser elucidade com uma comparação: francês seria como um passeio em belas alamedas de um parque, alemão poderia ser comparado como uma caminhada em magnífica floresta. A perfeição do francês residia para êle no fato de poder exprimir os pensamentos de forma clara e breve; a do alemão, na multiplicidade de sua forma. No outono de 1904 o livro foi terminado, fato comunicado imediatamente a Widor, então em férias em Veneza.


Do francês para o alemão


Embora apenas quisesse ter preenchido uma lacuna na vida musical francesa, a sua obra foi bem aceita na Alemanha. Na revista Kunstwart surgiu um comentário recomendando que fosse traduzida para o alemão. Em outono de 1905, contratou-se uma edição alemã com a renomada editora Breitkopf & Härtel. Ao tentar traduzir a sua própria obra do francês para o alemão, A. Schweitzer constatou poém não poder fazê-lo, parecendo-lhe melhor reescrever o livro. De uma obra de 455 páginas tornou-se uma de 844. As primeiras páginas escreveu-as em Bayreuth. Terminou-o em dois anos, apesar de estar imerso nos seus estudos de medicina, de dar aulas e fazer pregações.


As suas concepções sobre a execução e a essência da música de Bach tiveram ampla repercussão, pois chegaram à época certa. Com o estudo das obras editadas em fins do século XIX, os músicos tinham percebido que ele seria diferente dos representantes de uma música clássica acadêmica. Procuravam um estilo de execução mais adequado para a música de Bach. O livro de Schweitzer apresentou assim pela primeira vez concepções que os músicos já traziam em si. Entre as repercussões positivas, salienta-se a de Felix Mottl (1856-1911), o regente de Leipzig, Siegfried Ochs (1858-1929), o regente Bach de Berlim e a rainha da Rumênia, Elizabeth Pauline Ottille Luise zu Wied (1843-1916), conhecida pelo pseudônimo de Carmen Sylva, amante da música de Bach, e que manteve longa correspondência com Schweizer. Convidou-o várias vezes para passar férias na sua casa, em troca de aulas de órgão.


Posição perante Wagner. Música Pura? Poesia, Pintura, Plástica e Arquitetura em Bach


A. Schweitzer, com a sua admiração pela música de Wagner, não aceitava a posição dos anti-wagnerianos que procuravam retornar a um suposto ideal da música pura, livre de associações poéticas e pictóricas. Estes, ao tomarem conhecimento da obra de Bach, com a difusão de suas obras no decorrer do século XIX, o haviam inserido no ideal da arte clássica. A. Schweitzer via aqui uma diferença com relação a Philipp Spitta (1841-1894). Este o teria tratado como clássico na sua obra - um trabalho fundamental para a pesquisa histórica das fontes e até hoje livro básico nos estudos de Bach.


Schweitzer criou, assim, uma outra imagem de Bach: a do poeta e pintor na Música. J. S. Bach teria dado atenção especial ao significado das expressões do texto, às imagens e a tudo o que fala aos sentimentos, procurando reproduzir esses conteúdos com grande vitalidade e clareza na matéria dos sons. Seria porém mais pintor sonoro do que poeta sonoro. A sua arte estaria mais próxima da de Berlioz do que da de Wagner. Quando o texto fala de neblina, que se levanta e cai, de ventos que sopram, de rios que correm, de ondas do mar que sobem e descem, de sinos que dobram, tudo isso poderia ser ouvido na sua música. Bach teria uma linguagem sonora. Haveria sempre motivos rítmicos de felicidade de paz, de alegria viva, da dor forte.


O impulso para expressar pensamentos visuais e poéticos pertenceria segundo A. Schweitzer à „essência“ de sua música. Ela se voltaria à fantasia criadora do ouvinte e teria como objetivo nele produzir sentimentos e visões. A sua música seria poética e pictórica, pois os seus temas teriam nascido de imagens poéticas e pictóricas.  Delas se originaria uma arquitetura de linhas sonoras perfeita. Sendo, na sua „essência“, música poética e visual, apareceria como „gótica“ na sua realização sonora. O maior nessa arte, para Schweitzer, é Espírito que dela emana. Seria expressão de uma alma que almeja alcançar a paz na agitação do mundo, transmitido a paz que já goza aos ouvintes.


Prática de execução


A arte de Bach deve, para A. Schweitzer, ser recriada como uma plástica viva. Esse seria o princípio fundamental da execução e que ainda precisava ser propagado. Seria uma afronta ao estilo da música de Bach executá-la com grandes orquestras e grandes coros. As Cantatas e Paixões seriam para 25 ou 30 vozes, também a orquestra deveria ter um número correspondente de músicos. Ela não acompanharia o coro, mas seria a ele equivalente. Para a execução de Bach seria necessário apenas coros de 40 a 50 vozes e orquestras de 50 a 60 instrumentos. A textura das vozes deveria ser apresentada com transparência. Para o contralto e o soprano, Bach empregara vozes de meninos, também para os solos. Coros de vozes masculinas formariam assim um todo homogêneo. Pelo menos dever-se-ia colocar meninos junto a cantoras. Como ideal, também os solos de contralto e soprano deveriam ser cantados por meninos.


A música de Bach seria Arquitetura. Por essa razão, crescendi e decrescendi,  como em Beethoven, não seriam adequados. Passagens entre o forte e o piano apenas seriam adequadas se servissem a mostrar a diferença entre frases principais e secundárias. Apenas dentro desses forti e piani seriam possíveis crescendi e decrescendi declamatórios.


Como uma Fuga de Bach sempre começa com a parte principal e com ela termina, o início e o término da obra não deveriam ser executados de modo introdutório ou esvaecente. Acima de tudo, Bach seria tocado demasiadamente rápido. A rapidez numa música que pressupõe uma concepção visual de linhas sonoras levaria ao caos. Sobretudo a frase deveria recriar no ouvinte a plasticidade das linhas sonoras. Se no decorrer do século XIX ter-se-ia executado Bach sobretudo em staccato, tinha-se caído a seguir em outro extremo, em legato monótono. Assim teria A. Schweitzer aprendido com Widor. Somente com o tempo percebera que Bach exigia uma fraseação vital, diferentemente daquela ensinada por Widor. A razão desse fato era a de que J. S. Bach teria pensado como violinista. As notas deveriam ser unidas e separadas a modo violinístico, determinado pela condução do arco. Tocar bem uma peça para piano de Bach significaria assim executá-la como se o piano fosse um quarteto de cordas.


A boa fraseação deve ser acompanhada para Schweitzer por uma adequada acentuação. As notas decisivas para a linha sonora devem ser salientadas. Para a estrutura de seus períodos seria característico que não começam com um acento, mas que a êle conduzem. A fraseologia seria concebida anacrusicamente. Os acentos não coincidiriam com os acentos de compassos, mas seriam livres com relação desses. Dessa tensão entre os acentos da linha sonora e o dos compassos resultaria a extraordinária vitalidade rítmica da música de Bach.


Exigências interiores


Esses seriam as exigências externas da execução de Bach. Haveria também as internas. Para A. Schweitzer, o músico deve-se tornar compenetrado e interiorizado para poder transmitir algo do profundo Espírito dessa música.


Aspectos da recepção de J.S.Bach no Brasil


Um marco fundamental na história da recepção de J.S.Bach no Brasil foi a fundação da Sociedade Bach de São Paulo, em 1935. Seus principais mentores foram Tatiana e Martin Braunwieser. Em 1962, Tatiana Braunwieser proferiu uma conferência que oferece vários pontos de partida para reflexões (Veja também outros textos nesta edição).


Em primeiro lugar, a autora salientou que os princípios interpretativos e de prática de execução propugnados por A. Schweitzer correspondiam àqueles defendidos pela Sociedade Bach de São Paulo. Esses ideais tinham levado à fundação da entidade antes de seus mentores terem conhecimento da existência de A. Schweitzer e de sua obra. Teriam sido portanto trazidos para o Brasil pelos seus mentores em fins da década de 20, remontando às suas experiências na Europa, e essas diziam respeito à Europa Central de língua alemã.


Essa constatação demonstra o que o próprio Schweitzer mencionou na sua obra, ou seja, que o seu trabalho chegou na hora certa, uma vez que as aspirações voltadas à prática de execução histórica eram já existentes no meio musical, ainda que não sistematizadas. Martin e Tatiana Braunwieser procuraram realizar assim as concepções expostas por A. Schweitzer no Brasil independentemente de sua obra.


Os princípios porém que orientavam tais ideais de restauração de práticas históricas de execução contrariavam práticas e estilos interpretativos do Brasil, ainda ligados à tradição romântica. As palavras de Tatiana Braunwieser permitem constatar que tais ideais pareciam estranhos a ouvintes acostumados a interpretações mais marcadas por exteriorização de sentimentos e por manifestações de virtuosidade vocal e instrumental. Eram, por assim dizer, estranhas a uma mentalidade musical reinante no país.


Logo ao lêr pela primeira vêz o livro J. S. Bach (....) tivemos a imensa satisfação de poder constatar que as nossas idéias referentes à interpretação da música de Bach concordavam plenamente com as de Schweitzer. Quantos amigos e ouvintes perdemos por não concordar com o exagêro de coros de 300 - 400 vozes? De executar os solos das Cantatas com vários cantores do mesmo naipe? Por não concordar com a interpretação de Bach sem expressão, como se fosse estudo técnico, sem pedal no piano e sem dynâmica? Por não concordar com virtuosismo em sua interpretação?


Pois tudo isso concordava plenamente com as idéias de Schweitzer e nós nos sentíamos pela primeira vêz apoiados por parte de uma autoridade. (...)


Quem conhece os folhetos que imprimimos logo no início das atividades da Sociedade, vê que seu conteúdo combina perfeitamente com as idéias acima citadas. Quanta gente os desdenhou: Nunca esqueceremos o desprêzo e a indignação de um conhecido pintor moderno que, ao lêr um dos folhetos, chegando à frase: „duvido que um homem moderno, que admite exclusivamente a matéria, a máquina, o progresso técnico e o amor sexual, possa sentir alguma coisa daquilo que Bach sentiu e expressou em suas obras“ - disse "que bobagem“ e nunca mais voltou aos concertos da Sociedade. Entretanto aquela frase continua válida e recebeu mais força ainda hoje (...).


Os ideais do Movimento Bach representado através de Tatiana e Martin Braunwieser tiveram também influência na sua ação pedagógica, ou seja, na formação musical de instrumentistas, compositores e professores de música. Assim, um novo repertório passou a ser praticado e a análise e exercício dos Corais de Bach tornaram-se matéria básica na educação musical praticada por esses defensores do ideal Bach no Brasil. Os Corais de Bach não foram apenas empregados em análises de sua linguagem técnica ou em cursos de harmonia e contraponto, mas sim examinados quanto às relações entre a música e o texto, este traduzido ao português. Procedia-se, assim, a uma divulgação de conteúdos e concepções. Na sua conferência, Tatiana Braunwieser menciona esse significado atribuído aos Corais de Bach na exposição relativa à formação musical de A. Schweitzer.


Seu primeiro contato com a obra desse gigante data desde sua mais tenra idade.

As primeiras noções de música foram-lhe ministradas pelo pai antes ainda da idade escolar. Desde o início preferia tocar melodias de canções e corais, inventando acompanhamentos próprios.


Em 1885, transferido para o ginásio de Muehlhausen, foi morar com seus tios avós e é em casa deles que seus estudos de piano ficaram mais metódicos. Sua tia zelava minuciosamente por que não perdesse as suas horas de estudo diário. Porém, seu professor, Eugen Muench (tio de Charles Muench, conhecido regente atual), não se mostrava satisfeito com o aluno. Albert Schweitzer é minha tortura, costumava dizer no princípio. Só mais tarde, quando o discípulo conseguiu vencer sua inibição e começou a tocar com „sentimento“, descobriu o professor as amplas possibilidades ocultas atrás da aparente indiferença e daí em diante o progresso foi rápido.


Com 10 anos o menino subia todos os sábados à tribuna da igreja de Muehlhausen para assistir aos preparativos do organista Eugen Muench para a liturgia do dia seguinte. Foi este mestre que introduziu o rapazinho Schweitzer na música de Bach, principalmente nos segredos dos Corais. Com 15 anos, Schweitzer vai pela primeira vez a Paris para tomar aulas de aperfeiçoamente com Charles Widor e acaba, simultâneamente, a revelar-lhe os segredos dos Corais de Bach que Widor confessa não conseguir decifrar. „Certamente“, responde o aluno, „pois êles se explicam somente através dos respectivos textos“. E então, solicitado pelo professor, traduz, de memória, os textos para o francês, descortinando assim, perante seu professor, toda a imensa profundidade das idéias musicais e do contraponto de J. S. Bach.


Satisfazendo o pedido do seu mestre, o jovem músico escreve um artigo sobre os Prelúdios dos Corais para os organistas franceses, porém, à medida que escreve, percebe a necessidade de falar também sôbre as Cantatas e Paixões e, ampliando cada vez mais no papel tudo o que traz no coração sôbre o seu tema tão querido, acaba escrevendo em francês uma biografia que aparece em 1905 sob o título Jean Sebastien Bach - le musicien-poéte e, em 1908, ampliada e escrita de novo pelo próprio autor em alemão, sob o simples título J. S. Bach.


As concepções relativas a J.S.Bach dos fundadores da Sociedade Bach de São Paulo remontavam a estudos da obra biográfica clássica de Spitta desenvolvidos no âmbito de sua formação no Mozarteum de Salzburgo em fins da Primeira Guerra Mundial. Os princípios interpretativos, porém, haviam sido sobretudo recebidos sobretudo de Bernhard von Paumgartner (1887-1971), diretor do Mozarteum e do qual Martin Braunwieser fora principal discípulo. Paumgartner escreveria, em 1950, uma Biografia de Bach. Em 1974, Martin Braunwieser escrevia ao editor desta revista, então empenhado no estabelecimento europeu da organização Brasil-Europa: 


Para mim, Spitta foi um erudito de grande significado, que dedicou toda a sua vida ao estudo pormenorizado, atencioso, competente do caminho de Bach. Entretanto, o que Bach fêz em Lüneburg está segundo a minha opinião ainda mais bem estudado no primeiro volume da biografia de Bach do meu inesquecível professor, Bernhard Paumgartner.


Com a tomada de conhecimento da obra de A. Schweitzer pelos fundadores da Sociedade Bach após a Segunda Guerra, o seu livro passou a ser a referência principal.


(...) Pois até aquela época a monumental biografia de Johann Sebastian Bach de Spitta era considerada como evangelho e nenhum musicólogo alemão teve coragem de apresentar novo trabalho sôbre esse assunto, aliás, isso parecia totalmente desnecessário tal a minuciosidade dos dados biográficos, análises musicais, pareceres sôbre as obras etc., etc. Entretanto, quem conhece as duas obras: de Spitta e de Schweitzer não pode deixar de se sentir atraído pela segunda, por várias razões:

  1. 1)o livro de Schweitzer tem 792 páginas (incluindo os prefácios), o de Spitta 1756!

  2. 2)a parte histórica, propriamente dita, abrange no livro de Schweitzer aproximadamente 240 páginas, sendo o resto uma viva e interessantíssima análise das obras do compositor com valiosíssimos conselhos de sua interpretação que se beseam sôbre profundos conhecimentos musicológicos e, não menos, sôbre a prática de um dos maiores e mais honestos intérpretes de Johann Sebastian Bach. Esta distribuição do material facilita muito a sua leitura, pois um leigo que se interessa apenas pela vida e figura de Bach e não tanto pela parte técnica de sua obra pode parar, chegando à página 240. No livro de Spitta a sequência histórico-biográfica é constantemente interrompida não só por análises e críticas das obras de Bach, como principalmente por intermináveis biografias e análises das obras de outros autores, contemporâneos de Johan Sebastian, alguns importantes como Buxtehude, Boehm, Pachelbel, mas outros sem valor e influência sôbre o biografado, apenas organistas, príncipes, pastores de igreja etc. que, embora dignos de serem mencionados, por terem tido amizade com o músico, não interessam, porém, a ponto de lhe estudarmos as longas biografias.


Quanto aos dados históricos, Schweitzer basea-se incondicionalmente sôbre Spitta, proclamando-se seu devedor. Espiritualmente, porém, como músico, musicólogo, biógrafo, personalidade em geral, cativa-nos extraordinariamente e parece-nos muito mais próximo, mais humano, mais universal do que o enciclopédico Spitta. A razão disso, parece-nos, se oculta, além dos fatos apontados, na falta de uma qualidade no Spitta que, Schweitzer possui em alta dose e que emana de cada uma das suas sentenças: a qualidade de unir harmoniosamente os três aspectos - religião, ciência e arte. (...)


Os princípios de prática de execução histórica defendidos pelos fundadores da Sociedade Bach de São Paulo relacionavam-se também, como na Europa, com movimento organístico e, consequentemente, com uma mudança de concepções relativamente à restauração e aquisição de órgãos no Brasil.


Outro grande mérito do Dr. Schweitzer em relação a Bach, ou melhor à música em geral, é a sua campanha contra os órgãos modernos e a favor da restauração piedosa dos órgãos de Silbermann. Essa campanha trouxe-lhe inúmeros inimigos, pois a maioria dos organistas, fabricantes de órgãos e técnicos estavam a favor dos órgãos modernos, feitos em série de sonoridade sempre mais pujante, vigorosa e mecânica mais complicada, com prejuízo da afinação e beleza do som. Após várias tentativas mais ou menos infrutíferas de influenciar os organistas e construtores, só em 1909 pode Schweitzer registrar um primeiro sucesso. O Presidente do Congresso Internacional de Música em Viena, Guido Adler, convidou-o para falar durante o Congresso sôbre a construção do órgão e suas possíveis melhorias. A preparação dessa conferência foi vasta e minuciosa, começando por uma consulta feita a organistas e construtores de todos os países europeus. Foram poucas as pessoas que responderam objetivamente, colaborando e compreendendo a importância da questão. A maioria receava um prejuízo para sua indústria. O congresso de Viena realizou-se em Maio de 1909 e Albert Schweitzer venceu. E, se atualmente nem todos aderem às idéias dele, existe uma elite que é continuadora de sua batalha ganha a favor do órgão idealizado por Bach, entre os quais é preciso salientar a fábrica Walcker.


(...)


A.A.Bispo






  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


  2. A A.B.E. é entidade exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias. É, na sua orientação teórico-cultural, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. A Organização de Estudos de Processos Culturais remonta a entidade fundada e registrada em 1968 (Nova Difusão). A A.B.E. insere-se em tradição derivada de academia fundada em Salzburg pelos seus mentores, em 1919, sobre a qual procura sempre refletir.