Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 120/13 (2009:4)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2471


 


"Ordem e Progresso" no Brasil e na esfera britânica
Análise de concepções éticas de fins do século XIX em contextos internacionais


150 anos de Samuel Alexander (Sydney 1859-Manchester 1938) - Sydney e Christchurch, Nova Zelândia







Este texto apresenta uma súmula de reflexões encetadas no decorrer de ciclo de estudos, contatos e observações realizados na Austrália e Nova Zelândia no âmbito do programa Atlântico/Pacífico da ABE/ISMPS pelo Ano Paulo 2008/2009 e Ano Darwin 2009. O evento foi preparado no contexto dos cursos "Música no Encontro de Culturas" (1998-2002) e "Música na Oceania" (2008) levados a efeito na Universidade de Colonia sob a direção de A.A.Bispo.


O programa de trabalhos - o primeiro do gênero - concretizou impulsos partidos do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004), do II° Congresso Brasileiro de Musicologia (RJ 1992), do Encontro Regional para a América Latina e Caribe ICM/UNESCO (SP 1987) e do projeto "Culturas Musicais Indígenas" patrocinado pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha (1992-).


Os trabalhos procuraram dar continuidade aos impulsos decorrentes do simpósio de renovação dos estudos interamericanos e transatlânticos (Leichlingen/Colonia 1983). A orientação teórica é marcada pela tradição de pensamento e de iniciativas remontante à sociedade de renovação de estudos e prática cultura fundada em S. Paulo, em 1968 (Nova Difusão), atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais.

Instituições envolvidas e visitadas: Academia Brasil-Europa, Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes e.V./IBEM, National Maritime Museum (Sydney), Tasmanian Museum (Hobart), State Library of New South Wales (Sydney), Western Australian Museum (Albany), Pacific Cultures Gallery (Adelaide), Royal Exhibition Building (Melbourne) e Viktoria Library (Melbourne)






Christchurch. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright

Parte de quadro com a bandeira criança da República
Museu da República, Palácio do Catete

Fotos A.A.Bispo 2007

 
O lema „Ordem e Progresso“, presente na bandeira brasileira desde a proclamação da República (1989), tem sido considerado sob diversos aspectos na literatura cívica e histórico-política.


Nesses textos, tem-se apontado por vezes os seus elos com o Positivismo francês. Não se tem considerado, porém, que no mesmo ano da instauração da República publicava-se a obra Moral, Order and Progress: An Analysis of Ethical Conceptions, de Samuel Alexander (1859-1938).


O título da obra chama a atenção para a necessidade de reflexões mais profundas sobre o lema Ordem e Progresso, uma vez que correspondia a concepções difundidas em fins do século e que necessitam ser analisadas diferenciadamente.


A perpetuação dessa combinação de conceitos filosóficos - sem a menção do termo Moral - através de sua menção expressa em símbolo nacional, fato por si já singular, exige que se reflita mais profundamente sobre os contextos pertinentes da história do pensamento em contextos internacionais.


Devido a essa posição privilegiada, ainda mais intensificada pela sua universalização em esfera celestial que substituiu o anterior brasão, o lema atualiza constantemente, de forma muitas vezes inconsciente, concepções e imagens de uma época da filosofia e da história das idéias do Ocidente.


Os distintivos da bandeira e das armas nacionais, dos selos e sinetes da República foram estabelecidos pelo Decreto n. 4, de 19 de novembro de 1889. O decreto-lei n° 4545 de 31 de julho de 1942, que dispõs sobre a forma e a apresentação dos símbolos nacionais sob o govêrno de Getúlio Vargas, publicado no Diario Oficial de 5 de agosto de 1942, estabeleceu em pormenores a utilização da legenda.


Christchurch. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright


Secção II. Da Bandeira Nacional


(...)

  1. VIII.As letras da legenda ORDEM E PROGRESSO serão escritas em cor verde. Serão colocadas no meio da faixa branca, ficando, para cima e para baixo, um espaço igual em branco. A letra P ficará sobre o diâmetro vertical do círculo. A distribuição das demais letras far-se-á conforme a indicação do anexo n.2. As letras da palavra ORDEM e da palavra PROGRESSO terão um terço do módulo (0,33 M) de altura. A largura dessas letras será de três décimos de módulo será de três décimos de módulo (0.30 M).. A altura da letra da conjunção E será de três décimos de módulo (0,30 M). A largura dessa letra será de um quarto de módulo (0,25 M)

(...)

  1. XI.Para exata e mais facil disposição das estrelas e constelações, poder-se-á dividir o círculo azul em quadrículos (....), verificando-se, entre outras localizações, que a Espiga da constelação da Virgem, acima da faixa branca, corresponde à terceira letra de PROGRESSO, que Prócion fica sob a letra O de ORDEM, que a estrela mais da direita da constelação do Escorpião fica sob a última letra de PROGRESSO, e que as estrelas Sigma do Oitante, Alfa e Gama do Cruzeiro do Sul e a petra P de PROGRESSO ficam sobre o diâmetro vertical do mesmo círculo. (Símbolos Nacionais, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional 1942, pág. 4)


A inserção de um país de forma tão explícita em determinadas correntes de pensamento de fins do século XIX  surge não apenas como um curioso objeto de estudos histórico-culturais e uma manifestação máxima de esforços de perenização de uma fase da história do pensamento científico europeu no Novo Mundo.


A sua consideração representa uma tarefa necessária à formação cívica consciente e à configuração de uma identidade refletida teoricamente sob o aspecto de processos histórico-culturais globais. O que se não tem considerado com a devida atenção são aqui as implicações éticas, ou melhor, o relacionamento desse lema com preocupações relativas à Ética na história do Pensamento ocidental da época. O próprio título da obra de Samuel Alexander indica expressamente esses vínculos, uma vez que fala de Moral, Ordem e Progresso e propõe uma análise de concepções éticas.






Samuel Alexander e os estudos da contribuição judaica à Filosofia e à Psicologia


Samuel Alexander foi um dos filósofos de origem judaica de maior renome na Europa de fins do século XIX e primeira metade do XX, em particular na esfera britânica e em determinados círculos da Alemanha. A sua vida oferece particular interesse para estudos culturais por estar vinculada à história de migrações, do retorno de migrantes à Europa e da história cultural do judaísmo em contextos internacionais.


Ambos os seus pais eram judeus que haviam alcançado prosperidade na Austrália, residindo no centro comercial de Sydney. Após a morte de seu pai, mudou-se em 1863/64 para Victoria. Em 1871, em Melbourne, cursou o Wesley College e, a partir de 1875, a University of Melbourne.


Em 1877, transferiu-se para a Inglaterra, pretendendo prosseguir os seus estudos. Desenvolveu-os no Balliol College, em Oxford. Durante a sua atividade de tutor de filosofia no Lincoln College, de 1882 a 1893, passou a interessar-se pela Psicologia.


Em 1887, ganhou um prêmio de Filosofia Moral com uma dissertação dedicada à questão: Em que direção a Filosofia Moral parece admitir ou requerer um desenvolvimento? Esse trabalho forneceria as bases para a obra Moral Order and Progress, publicada dois anos depois. Essa obra, de larga divulgação, fundamentou o seu renome pela passagem do século. O autor, entretanto, mudaria suas concepções alguns anos mais tarde (1912).


Após a edição dessa obra, Samuel Alexander dirigiu-se à Alemanha, atuando em Freiburg no laboratório psicológico de Hugo Münsterberg (Danzig 1863- Cambridige/Mass. 1916). Münsterberg, também de ascendência judaica, que havia realizado o seu doutoramento com Wilhelm Wundt (1885) em Leipzig, e outro, em Medicina, em Heidelberg (1887), criara um laboratório psicológico (1888-1892) que, pela sua orientação empírica, passou a atrair estudantes da esfera da língua inglesa.


Ao transferir-se para os Estados Unidos, onde atuaria em Harvard e em outras instituições de renome e tornar-se-ia presidente da American Psychological Association (1898), parte do seu laboratório foi levado para Londres (James Sully, University College). Münsterberg tornar-se-ia uma das mais relevantes personalidades nas relações teuto-norteamericanas, defendendo porém patrioticamente posições alemãs no período da Primeira Guerra.


Um dos aspectos de seu pensamento que mereceria ser salientado nesse contexto foi o da necessidade de criação de símbolos fundamentados socio- e psicologicamente para a renovação de sociedades.


Samuel Alexander tornou-se posteriormente  influente Professor da Universidade de Manchester e autor de várias obras (entre outras: The Basis of Realism, 1914; Space, Time and Deity, 2 vols, 1920; Spinoza and Time, 1921); Beauty and Other Forms of Value, 1933). Manteve-se vinculado aos problemas judaicos, apoiando iniciativas várias no âmbito do Sionismo. As tentativas de apreciação de suas concepções salientam tendências a uma Metafísica evolucionista e, ao mesmo tempo, orientações cienífico-naturais. Na Teoria do Conhecimento, tem sido considerado como Realista.


Alexander na análise de concepções éticas por A. Schweitzer


A intenção de realizar uma análise de concepções éticas, expressamente mencionada na obra de Samuel Alexander, foi similar à de A. Schweitzer na sua obra Cultura e Ética, considerada também em outros textos desta edição (Kultur und Ethik: Kulturphilosophie zweiter Teil, Munique: Biederstein 1923, 7.ed. 1948).














Também a questão do Progresso tratada por Samuel Alexander é levantada por A. Schweitzer. No capítulo XVI, Schweitzer cita Moral Order and Progress, inserindo o pensador em linha de pensamento de Henry Sidgwick (1838-1900), autor de The Methods of Ethics (1874, trad. alemã 1909) e Leslie Stephen (1832-1904), cuja principal publicação era The Science of Ethics (1882). Menciona também Wilhelm Wundt (1832-) com a sua obra Ethik: Eine Untersuchung der Tatsachen und Gesetze des sittlichen Lebens (1888); Friedrich Paulsen (1846-1908), com o seu System der Ethik (1889); Friedrich Jodl (1849), autor de Geschichte der Ethik als philosophischer Wissenschaft; Georg von Gizyki (1851-1895) com a sua Moralphilosophie allgemeinverständlich dargestellt (1888) e Harald Höffding, autor de Ethik (em dinamarquês 1887 e em alemão 1888). („Der Ausgang des abendländischen Ringens um Weltanschauung“, in Kultur und Ethik, op.cit. 176 ss.)


Para A. Schweitzer, esses autores teriam procurado construir uma ponte entre uma Ética dirigida à personalidade individual e a Ética orientada segundo a sociedade. Seriam pensadores característicos de uma fase da história da disciplina de fim do século XIX e que não poderia ser considerada favoravelmente.


Uma série de obras similares no seu conteúdo havia surgido nessa época, sobretudo textos de cunho acadêmico. Nessa ponte, um dos pilares da Ética seria a disposição ética do homem; outro poderia ser visto nas necessidades da sociedade que influenciam a consciência do indivíduo. Esses pensadores teriam tentado criar um elo entre a ética individual e a social através dos meios então modernos da Psicologia, Biologia e Sociologia. No fundo, não fariam nada mais do que renovar com novos meios a posição de David Hume (1711-1776), o grande economista e filósofo britânico defensor do Empirismo.


Entre esses pensadores lembrados por Schweitzer na sua crítica, alguns emprestavam maior significado à disposição ética do indivíduo, outros ao bem da sociedade. Todos, porém, uniam a Ética da personalidade ética com aquela do Utilitarismo, sem considerar uma unidade maior que as pudesse unir. Por essa razão, os textos nos quais tratavam dos fundamentos do Ético seriam sempre os menos claros e menos vitais de suas obras. Tinha-se a impressão de que procuravam abandonar tão logo quanto possíveis tais reflexões, passando para exposições de cunho histórico ou ao tratamento de questões da prática ética. Quando, porém, tratavam da prática, deixavam perceber a insuficiência dos fundamentos. Uma real elucidação e aprofundamento do conceito do Ético não seriam encontrados nas suas obras.


Pontes entre a ética individual e a social e o auto-aperfeiçoamento


Schweitzer lembra que essa Ética de mediação ou de estabelecimento de pontes entre a Ética individual e a social já tinha sido criticada por vários pensadores, entre êles Hermann Cohen (1842-) e Wilhelm Hermann (1846-1922). Na França, um de seus críticos fora Charles Renouvier (Science de la morale, 1869). Nos países anglofones, A. Schweitzer cita os sucessores dos Intuicionistas, tais como James Martineau (1805-1900), F. H. Bradley (1846-), Th. H. Green (1836-1882), Simon Laurie (1829-1909) e o filósofo escocês James Seth (1860-1925).


Esses, porém, também não teriam evitado derivar a Ética tanto da disposição ética do homem quanto das exigências da sociedade: a Ética seria produzida pela Personalidade ética, ou seja, pelo indivíduo que sai de si e trabalha para o bem do Todo. Martineau, Green, Bradley, Laurie e Seth teriam procurado chegar a uma Ética unificada partindo da necessidade individual de auto-aperfeiçoamento. Entre êles, James Martineau se aproximaria dos pensadores éticos de Cambridge do século XVIII, segundo os quais o homem traria em si o ideal da perfeição inculcado pelo Criador. Outros pensadores mostravam mais uma influência de J. G. Fichte (1762-1814).


O Ético estaria fundamentado na idéia de que o homem se compreende como personalidade atuante, procurando alcançar uma comunidade com o Espírito. Th. H. Green basearia nesse sentido o relacionamento entre Cultura e Ética, afirmando que todo o desenvolvimento da ação humana, em particular o aperfeiçoamento político e social, ganharia significado apenas se contribuisse para um maior aperfeiçoamento interior dos indivíduos. Na América, representante dessa concepção de uma Ética do aperfeiçoamento espiritual teria sido Josias Royce (1855-1916).


Para A. Schweitzer, a concepção desses pensadores que derivavam toda a Ética do aperfeiçoamento pessoal, ou seja de uma necessidade interna, representaria, de fato, uma Ética viva. Esses pensadores teriam ido tão longe nas suas reflexões que compreendiam a Ética como uma afirmatividade elevada da vida, constituída pelo vir de encontro à ação do Espírito no homem. Aproximar-se-iam da mística da ação de J. G. Fichte. Uma questão que permanecia em aberto, porém, seria a de como uma afirmatividade da vida levaria a um ato que estaria em oposição ao que acontece no mundo. Esse pensamento concebe a afirmatividade de vida como dedicação de si, ou seja, como afirmatividade de vida que atua na negação da vida. Aqui residiria um paradoxo: porque o homem precisaria ser diferente do mundo para estar em harmonia com o Espírito que atua no mundo?


Ética e Filosofia Natural


Schweitzer insere outros pensadores nessas suas considerações, dedicando particular atenção a dois filósofos franceses (op.cit. 181 ss.). Uma conceituação de Ética como superior afirmação da vida marcava o pensamento de Alfred Fouillée (1838-1913) e Jean Marie Guyau (1854-1888). O primeiro era autor de uma Critique des systèmes de morale contemporaine (1883); Evolutionisme des idées-forces (1890) e La morale des idées-forces (1907); o segundo, seu discípulo, publicara La morale anglaise contemporaine (1879), Esquisse d‘une morale sans obligation ni sanction (1885) e L‘irreligion de l‘avenir (1886).


Schweitzer reconhecia que os pensadores franceses iam mais a fundo do que os representantes inglêses e norteamericanos da Ética do auto-aperfeiçoamento, uma vez que procuravam compreender a Ética segundo a Filosofia Natural. Surgia, assim, pela primeira vez, o problema das bases, do princípio fundamental do Ético. Schweitzer admirava o modo com que Fouillée procurava tratar a questão da vontade de viver. As idéias dirigidas a ideais éticos que surgem no indivíduo não seriam resultado de algo pensado, mas expressão de forças que levam ao aperfeiçoamento do ser.


A evolução que o ser experimenta seria determinada por idéias forças e poderiam então ser elucidadas psicologicamente. A Ética seria assim um resultado da evolução do mundo. A idéia do auto-aperfeiçoamento que o indivíduo sente em si surge como uma manifestação natural da vontade dirigida à vida. O eu que atinge um grau elevado do querer e do imaginar cresce de forma a alcançar outra esfera do existir. A dedicação, assim, não seria renúncia do eu, mas sim uma expressão de sua expansão. Assim como no mundo físico há uma força que leva à reprodução, também na esfera espiritual o indivíduo desejaria expandir a sua existência em vidas semelhantes. A perfeição do homem consiste, assim, na mais perfeita comunicação. Para Schweitzer, o conceito de simpatia de Hume alcançaria aqui uma grande profundidade. Da idéia do vir-a-ser ético da vontade à vida, ambos os filósofos chegam à Filosofia da Natureza: numa Filosofia Natural afirmativa do mundo e da vida procuraram fundamentar uma Ética como aprofundamento necessário da afirmação de vida.


O novo no pensamento dos filósofos franceses, porém, seria o fato de terem reconhecido por fim uma impossibilidade da tarefa de justificar a Ética e uma concepção ética do mundo a partir da Filosofia da Natureza. Para elucidar a idéia de que uma força interna conduz o indivíduo para a frente, sem que esse saiba para onde, utilizaram uma imagem: o "homem ético" viajaria no oceano dos acontecimentos como se estivesse no navio avariado, sem controle e mastro, esperando alcançar terra em qualquer lugar. Para Schweitzer, essa frase demonstraria o fim de uma interpretação ético-otimista do mundo. Fouillée e Guyau, porém, não teriam levado as suas concepções às últimas consequências, não questionando a razão de um conflito entre a visão do mundo e a visão da vida, a causa da razão pela qual a visão da vida ousaria ir de encontro à visão do mundo.


Ética como ciência positiva


Neste contexto, A. Schweitzer menciona um pensador alemão, o médico Wilhelm Stern, que realizara um estudo sobre a origem histórico-evolutiva da Ética e que Schweitzer considera como sendo um pensador que foi mais a fundo com a teoria da evolução do que Darwin (Grundlegung der Ethik als positiver Wissenschaft, 1877). A essência do Ético seria o instinto de conservação da vida através da defesa de todos os ataques nocivos, na qual os indivíduos sentem a comunhão com os outros seres viventes relativamente aos perigos naturais. Através das muitas gerações de lutas com as forças naturais e entre si, deixariam de ser inimigos e procurariam uma caminho comum perante o risco da destruição. Esse processo teria marcado a psique do ser vivente.


A Ética seria uma afirmação da vida determinada pela imagem do perigo existencial vivenciado coletivamente. Ao contrário de Darwin, Stern teria desenvolvido a idéia de uma espécie de solidariedade entre todos os seres vivos. O ser humano vivenciaria a comunidade com o animal, assim como este com o ser humano. Ética não seria algo que o indivíduo se apropria, mas algo que estaria presente em toda a criatura. Dedicação surge como uma experiência mais profunda do instinto de conservação. Tanto de forma ativa ou passiva, toda a criatura deveria ser inserida no princípio fundamento do Ético. O princípio fundamental da Ética seria, portanto, que o indivíduo não faça sofrer nenhuma criatura viva, nem mesmo as mais inferiores, a não ser que seja a isso obrigado por uma necessidade de defesa; deve procurar compensar esse ato na medida das possibilidades através de um agir positivo a favor de outras formas de vida.


Novo caminho: Ética de Veneração à Vida e o progresso


Para A. Schweitzer, todo o indivíduo que é guiado na sua vontade de viver pela Ética de veneração pela vida interessa-se necessáriamente por todo o tipo de progresso. Ele possui critérios para avaliar corretamente e criar uma mentalidade na qual todos atuam em conjunto. (op.cit. págs. 264 ss.)


A cultura seria definida por quatro ideais: o ideal do Homem, o ideal da configuração social e política da sociedade, o ideal da configuração comunitária espiritual-religiosa e o ideal da humanidade. Com base nesses quatro ideais, o pensamento do indivíduo se ocuparia necessáriamente com o progresso em plural. Sob o aspecto da cultura, haveria para Schweitzer três tipos de progresso: o progresso do saber e das aptidões, o progresso da constituição social e o progresso da espiritualidade. A consideração isolada de uma dessas formas de progresso seria insuficiente. Não representaria assim um progresso no sentido pleno do termo.


Progresso do saber


O progresso dos conhecimentos possui um significado espiritual direto se os conhecimentos forem assimilados e elaborados pelo pensamento. Esse aumento do saber permite que se reconheça que tudo o que existe é força, e essa seria a vontade de vida. Através dos conhecimentos que se ampliam, o ser humano é impulsionado para uma admiração cada vez maior pelos mistérios da vida. Do conhecimento, o homem alcança também poder sobre as forças da natureza. A vitalidade e a atividade do indivíduo intensificam-se e a sua vida se transforma. Tal progresso, porém, não possue apenas aspectos positivos.


Com o poder que o Homem ganha sobre as forças da Natureza, dela liberta-se e faz com que entrem a seu serviço. Com isso, porém, desvincula-se da natureza. As forças da natureza são utilizadas na máquina. Reportando a uma antiga tradição da filosofia, A. Schweitzer salienta os perigos que advém da transformação do coração do indivíduo em máquina e da consequente perda de pureza.


O trabalho mecânico tornara-se destino de muitos indivíduos que com isso perderam o vínculo com a casa e com a terra e que passaram a viver numa situação de falta de liberdade e opressão. Com as transformações trazidas pela máquina, os homens passaram a ter uma vida estreita, demasiadamente regrada e por demais fatigante. Não dispõem mais a possibilidade de se concentrarem e, portanto, de reflexão. Correm o risco de se transformarem em objetos humanos, não vindo a se desenvolver como personalidades.


O aspecto negativo do progresso do conhecimento e do saber leva assim a uma deterioração material e espiritual da existência. Totalmente imersos na luta pela existência, muitos indivíduos já não teem possibilidades de pensar em ideais dirigidos à cultura. Todos os sentidos estão voltados à melhoria da sua própria existência. Os ideais que desenvolvem para essa luta pensam ser ideais culturais. Esses, porém contribuem para uma desorientação na conceituação de cultura.


Progresso e o "Homem de Cultura"


Para que se possa estabelecer uma diferença entre os aspectos positivos e negativos do progresso do saber  das aptidões, deve-se segundo A. Schweitzer  refletir sobre o ideal do ser Humano e procurar meios para realizá-lo. O ideal do "Homem de Cultura" não seria outra coisa do que o indivíduo que conserva em todas as situações a sua verdadeira humanidade. Apesar das condições adversas da atualidade, os homens devem permanecer humanos. Apenas a reflexão sobre tudo aquilo que pertence a uma verdadeira humanidade pode evitar o paradoxo da perda de cultura numa situação de maior progresso exterior. Somente quando a ânsia do ser verdadeiramente humano for despertada no homem atual, cego pela vaidade do saber e do orgulho do conhecimento, é que esse poderá lutar contra a pressão das circunstâncias de vida que ameaçam a sua humanidade.


A Ética de Veneração à Vida coloca como ideal do ser material e espiritual do indivíduo o dever de que este, dedicando-se na medida das possibilidades ao desenvolvimento de todas as suas capacidades procure ser verdadeiro consigo mesmo e trazer participação empática e de auxílio a toda a vida a seu redor. Ocupando-se seriamente consigo mesmo, ele deve compenetrar-se da responsabilidade que deve sentir, conservando uma espiritualidade viva na sua relação com o mundo. Como verdadeiramente humano deve procurar ser ético, o que apenas pode ser alcançado em atitude de Veneração à Vida.


O objetivo da cultura é para Schweitzer que todo o indivíduo alcance a humanidade em estado verdadeiramente digno do humano. A supravalorização a-crítica das exterioridades da cultura, recebida do século XIX, deve ser superada. Deve-se procurar distinguir cada vez mais entre o essencial e o acessório na cultura. O orgulho cego de ser culto perde então o seu poder. O indivíduo consegue assim ter a coragem de enxergar a verdade de frente, ou seja, de reconhecer que o alcance da cultura não se torna mais fácil com o progresso do saber e das aptidões, muito pelo contrário. O problema das relações entre o material e o espiritual torna-se evidente. Deve-se ter a consciência de que jamais um indivíduo pode ser transformado em objeto. Deve-se superar a convicção de que cultura é privilégio de uma elite e de que o homem do povo é apenas um instrumento para realizá-la. Essa concepção impede que se auxilie aqueles indivíduos que lutam para alcançar a humanidade à qual teem direito. A ética de Veneração à Vida revolta-se contra essa convicção e cria uma mentalidade na qual todo o homem adquire o valor humano e a dignidade. O homem necessita assim apenas lutar contra as circunstâncias, não mais contra o homem. Além do mais, a mentalidade da Veneração à Vida ajuda àqueles imersos na luta pela existência a conservar viva a imagem do Humano como um bem a ser conservado. Ela o impede de perder-se na corrida que leva à servidão material, possibilitando a concentração e a interiorização.


Progresso na esfera imaterial e mentalidade de Veneração à Vida


Para A. Schweitzer seria necessária uma espiritualização do indivíduo e da sociedade. Os muitos indivíduos devem tornar-se pensantes sobre a sua própria vida, sobre o que desejam alcançar na luta pela existência, sobre as circunstâncias que o dificultam e sobre as suas próprias falhas. Haveria falta de espiritualidade devido a existência de uma inadequada concepção de espiritualidade. Esquece-se do Pensamento, pois o indivíduo desacostumou-se de pensar nos aspectos fundamentais do edifício das concepções. Se, porém, pensamentos de Veneração à Vida forem cultivados e exercitados, então tem-se um pensar que age em todos os campos, despertando uma espiritualidade que se torna viva.


Também aqueles que se encontram na mais difícil luta pela existência chegam aqui a uma situação de auto-reflexão e interiorização, recebendo novas forças. Sabendo-se conjuntamente que a conservação da cultura depende da abertura das fontes da vida espiritual, os problemas econômicos e sociais podem ser enfrentados com mais coragem e diligência. Consegue-se, assim, atingir uma situação da mais alta liberdade material para o maior número possível de indivíduos.


O fato de se não possuir de momento poder sobre a situação econômica não surge como desencorajadora. A falta de poder origina-se do sentido da realidade. Alcança-se muito mais quando se decide resolver os problemas através da consciência e da mentalidade. As lutas de poder com base em teorias e utopias econômicas não levaram a fins favoráveis e colocaram o ser humano em situações deploráveis. Somente uma mudança radical, a procura da solução de problemas através da compreensão e da confiança poderiam levar a soluções positivas, e para isso surge como pré-condição uma mentalidade de Veneração à Vida. Somente a partir dessa mentalidade tem-se, segundo Schweitzer, os critérios para a justiça econômica.


Todo o progresso do saber e do poder age de forma prejudicial se o indivíduo não manter sobre êle controle através de um progresso de sua espiritualidade. Com o poder que o homem alcança sobre a natureza tem-se também a questão do poder de um indivíduo sobre outro. Trata-se apenas de saber quem é o violentador e quem é o violentado, papéis que sempre se alternam. Ajuda nessa situação apenas pode ser alcançada através de uma deposição do poder que se tem sobre outros. Essa renúncia seria também um ato da espiritualidade.


Cegos pelo progresso do saber e do poder, o homem esqueceu-se de cuidar do progresso na esfera imaterial. Com isso, sem pensar, caiu no pessimismo, no crer em todo o tipo de desenvolvimento e progresso, menos naquele imaterial do homem e da humanidade.


Também aqui A. Schweitzer utiliza-se do símbolo da nave. Um navio que está em perigo numa tormenta lança com o seu movimento toda a tripulação de um lado a outro. Perde-se a esperança no progresso do ser humano e da humanidade como sendo algo impossível de ser alcançado. Com coragem, porém, o homem deve mantê-la. Todos, em conjunto, devem querer de novo o alcance do progresso espiritual do homem e da humanidade e esperá-lo. Aqui ter-se-ia a mudança no pilotar do navio, necessário para não deixá-lo sossobrar com os ventos. Apenas porém numa mentalidade de Veneração pela Vida é que o homem poderá tornar-se capaz dessa mudança.


Veneração à Vida e Logos


A utilização dessa antiga imagem do nave testemunha o quanto a argumentação de A. Schweitzer se insere na tradição simbólica do pensamento. Desde as mais remotas épocas, o símbolo do mastro foi interpretado como cruz e o seu ápice nas alturas como indicador do Logos. Considerando-se que o Logos é a Vida („Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida“) e que em certas correntes da Antiguidade surgia até mesmo como forma da Vida, ou seja, a Vida surge como matéria do Logos, constata-se a fundamentação e a coerência do pensamento de A. Schweitzer.


Essa coerência, porém, apenas pode ser compreendida à luz da concepção uno-trinitária. Venerar a Vida significa sob esse aspecto venerar a Vida configurada pelo Logos, a Vida em toda a Criação, não apenas aquela do ser humano. Nela se reconhece, através da contemplação e da observação de regularidades, leis e estruturas, em atitude de veneração, vestígios da passagem do Princípio Ordenador, da Primeira Pessoa no ato da Criação. No pensamento de Schweitzer, dela irradia o progresso no sentido pleno do termo e que diz respeito ao ser humano e à comunidade. Também aqui Schweitzer se insere em antiga tradição de pensamento.


O progresso, se compreendido sob o aspecto que sempre implica em movimento, em direcionamento ascensional, corresponde segundo a tradição de pensamento teológico aos vestígios da passagem do Espírito, da Terceira Pessoa. Seguindo-se a argumentação de Schweitzer, ter-se-ia aqui de um lado o movimento que se contempla na Criação, performado pelo Espírito do Pai e de outro, o progresso no sentido imaterial do termo da coletividade como comunidade imaterial, performada pelo pensamento iluminado pela Veneração à Vida e, portanto, pelo seu princípio. Pelo caminho da Veneração à Vida, portanto, chegar-se-ia ao Pai, que é o amor, e esse corresponderia à Ética como princípio, e que se manifestaria no amor à Criação, à Vida no seu todo e à Comunidade.


Ética, Lógica e Estética encontram-se em estreito e indissolúvel relacionamento, e nenhuma dessas três partes integrantes de um todo único pode ser esquecida ou não-considerada. Essa tríade poderia ser designada com outros termos (ainda que de forma menos apropriada), por exemplo Ética, Ordem e Progresso. A redução dessa tríade aos termos Ordem e Progresso apenas seria admissível se a Ética continuar a ser subentendida. A não citação da Ética, porém, dá margens a mal-entendidos, a interpretações superficiais e à não-compreensão de todo o sistema de concepções.


Seria inadmissível sob esse aspecto que um lema seja restrito às palavras Ordem e Progresso, sem a consideração da sua fundamentação ética. Ordem significaria aqui não a ordem no sentido de disciplina exterior do indivíduo e da sociedade, por assim dizer sob um aspecto militar ou político, mas sim o reconhecimento do vestígio do Princípio Ordenador que se manifesta na Vida de toda a Criação, sendo esta o ponto de partida. Progresso, significaria aqui não apenas o desenvolvimento técnico e científico, mas sim o crescimento que se contempla nos seres viventes da terra e o progresso imaterial da comunidade humana. Fundamento da Ordem e do Progresso assim compreendidos é a compaixão, o que exige empatia do homem com todos os demais seres viventes. Sem a Veneração pela Vida, sem o respeito pela Criação no seu todo, em particular sem o respeito por todos os seres viventes não há Ordem e Progresso.


Pode-se constatar, na cultura brasileira, devido à formação cristã de seu vir-a-ser histórico, concepções provindas de remoto passado, nem sempre conscientes, mas intrínsecas a edifícios de imagens e expressões culturais. A consideração desse sistema de visão do mundo torna-se necessária para um desenvolvimento coerente das reflexões.


Entretanto, deve-se reconhecer que o conceito de cultura na argumentação de orientação ética difere do conceito de cultura desenvolvido por correntes de pensamento antropológico-cultural posteriores e vigentes na atualidade. A re-consideração teórica desses problemas na concepção do termo surge como uma das fundamentais tarefas teórico-culturais do presente. A Ética define limites à relativação de concepções e imagens concernentes à cultura. A reconsideração crítica de premissas de ciências culturais que não se prendem a responsabilidades éticas surge como uma exigência atual.



Antonio Alexandre Bispo




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


  2. A A.B.E. é entidade exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias. É, na sua orientação teórico-cultural, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. A Organização de Estudos de Processos Culturais remonta a entidade fundada e registrada em 1968 (Nova Difusão). A A.B.E. insere-se em tradição derivada de academia fundada em Salzburg pelos seus mentores, em 1919, sobre a qual procura sempre refletir.