Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 120/10 (2009:4)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2468


 



Perspectivas católico-francesas:
Cientismo evolucionista como causa do "Pangermanismo" e retrocesso ético-cultural
Paul Bourget (1852-1935) contra Ernst Haeckel (1834-1919)
Reflexões em Obernai - Alsácia






Obernai, Alsacia. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Este texto apresenta uma súmula de reflexões de ciclo de estudos, contatos e observações realizados na Alsácia. França. O ciclo teve como tema o complexo de relações "Cultura e Ética", centralizando-se no vulto de Albert Schweizer e suas repercussões no Brasil. Foram aqui lembrados os 40 anos de trabalhos dedicaos á renovação teórica de estudos de relações França-Brasil e Alemanha-Brasi pelo Ano Paulo 2008/2009.


Os trabalhos seguiram impulsos do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004), quando lembrou-se, em colóquio internacional, das relações entre Albert Schweitzer e a Sociedade Bach de São Paulo, presidida por Martin Braunwieser, personalidade de relêvo na tradição em que se insere a A.B.E..


A orientação teórica é marcada pela tradição de pensamento e de iniciativas remontante à sociedade de renovação de estudos e prática cultura fundada em S. Paulo, em 1968 (Nova Difusão), atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais.






Obernai, Alsacia. Foto A.A.Bispo 2009. Copyright
Nos estudos referentes ao complexo temático Cultura e Ética nos Estudos Interculturais, com especial consideração das relações franco-alemãs, em particular no contexto alsaciano e de suas repercussões no Brasil, cumpre dirigir a atenção a diferentes fatores que possam esclarecer questões de identidade, de suas multiplicidades, instabilidades e transformações.


Tem-se, no caso da Alsácia, uma situação na qual até mesmo o idioma predominante não correspondeu sempre ao sentimento de identificação nacional. Como é que se explicaria que partes da população, de idioma e cultura alemãs tivessem optado por uma vinculação à França?


Um desses fatores foi o confessional. Assim, entre os principais opositores à anexação alemã no contexto da Guerra Franco-Prussiana de 1870/71 encontraram-se representantes do Catolicismo, entre eles um teólogo e historiador eclesiástico nascido em Obernai (Oberehnheim) e formado no Seminário de Estrasburgo, Charles Emile Freppel (1827-1891), futuro bispo de Angers.


Charles Emile Freppel e a restauração católica no século XIX


Obernai, de remotas origens, foi o berço de Santa Otília, padroeira da Alsácia, permanecendo um dos centros do Catolicismo alsaciano, sobretudo após a sua anexação à França, em 1679.


É significativo que, alguns anos após a Primeira Guerra Mundial, tenha-se levantado um monumento a esse prelado em frente à catedral de Obernai. O bispo é
Ernst HAeckel
representado com a carta que dirigira ao imperador alemão, Guilherme I° protestando contra a anexação da Alsácia. 


Freppel surge na História da Igreja como um dos mais enérgicos - e polêmicos - defensores das posições católicas e político-catóilicas do século XIX. Foi um dos críticos de E. Renan (1823-1892) (Examen critique de la vie de Jésus de M. Renan, 1864; Examen critique des Apotres de M. Renan, 1866) e, através dessas obras, influente no clero brasileiro voltado à restauração católica. Internacionalmente, salientou-se pelas suas tomadas de posição na „luta cultural“  (Kulturkampf) na Alemanha e como influente personalidade no Concílio Vaticano I como propugnador da Infalibilidade Papal.


No período da ocupação alemã nacionalsocialista, o monumento foi desmontado, sendo restabelecido após a Segunda Guerra Mundial. Esse monumento de Obernai dirige assim a atenção às aspectos religiosos relacionados com o campo de tensão franco-alemão e à
sua influência nas correntes de pensamento.


No período posterior à Primeira Guerra, com a vitória dos aliados, pensadores católicos franceses passaram a analisar as causas do conflito que teria sido, segundo a perspectiva dos vencedores, de inteira responsabilidade alemã. Uma atenção especial merece neste contexto Paul Bourget, uma vez que uniu as suas posições anti-alemãs com uma crítica de cunho teórico científico.


Paul Bourget


Paul Bourget (1852-1935) alcançara renome na França com a publicação de suas poesias (Poésies, 1885-1887) e de seus romances (Un crime d‘amour, 1886; Le disciple 1889;  Dramas de famille, 1900; L‘étape, 1902; Le démon de midi, 1914, entre outros). Paralelamente, dedicou-se a ensaios de cunho psicológico (Essais de psychologie contemporaine, 1883; Nouveaux essais, 1886; Physiologie de l‘amour moderne, 1891). A sua obra foi difundida também na Alemanha, tendo conhecido várias traduções. Pela sua
tendência psicológica, superando o Naturalismo, é visto por alguns como um dos preparadores da moderna literatura francêsa. Relevante no desenvolvimento do seu pensamento foi a sua tendência conservadora, marcada pelo Catolicismo, sobretudo após a passagem do século.


Por uma coincidência que não deixa de ser simbólica, Ernst Haeckel (1834-1919), zoólogo, filósofo naturalista e um dos principais propugnadores da teoria da Evolução na Alemanha faleceu no ano do Congresso de Versailles, quando a a França celebrava a sua vitória e o realcance de sua posição de predominância européia. Significativamente, em meio a textos que se relacionavam mais especificamente com questões diplomáticas e políticas, Paul Bourget aproveitou da oportunidade para publicar um artigo crítico referente a Haeckel e que pode ser visto como particularmente expressivo para estudos das relações entre esferas alemãs e francesas no mundo científico e na história do pensamento.


Crítica a Ernst Haeckel e ao Monismo


Diferentemente de Darwin, Haeckel tornara-se, já em 1863, representante principal da aplicação da Teoria da Evolução à evolução humana e ao progresso político-social.  Entrou em áreas que levantaram polêmica sobretudo em círculos de fundamentação teológica, tratando da extensão do princípio da evolução sob a perspectiva de uma História Natural da Criação (Natürliche Schöpfungsgeschichte, 1868) e numa Antropogenia ou História da Evolução do Homem (Anthropogenie oder Entwicklungsgeschichte des Menschen, 1874).


Pouco antes da passagem do século, publicou uma de suas obras de maior repercussão e difusão, também em círculos teuto-brasileiros, o „Inigma do mundo“ (Welträtsel, 1899). Nesse estudo procurou ampliar o Evolucionismo em direção a um edifício de concepções fundamentadoras de uma Visão do Mundo (Weltanschauung). Com a teoria do Monismo, Haeckel estabelecia uma ponte entre a Ciência e a Religião. Na mesma época, publicou outra obra de considerável difusão e que demonstrava a sua admiração por assim dizer estética nas formas de arte da Natureza (Kunstformen der Natur, 1899-1903). Sendo Professor da Universidade de Jena, alcançou grande renome na Alemanha, sendo respeitado pela sua personalidade e modos de procedimento mesmo por pensadores que não concordavam com as suas posições (por exemplo Ruldolf Steiner).


Pangermanismo e filosofia biológica


No seu artigo „Hackel et le Pangermanisme“ (L‘Illustration, 25 de agosto de 1919, 146), longe de escrever um necrológio, Paul Bourget expõe a sua opinião de ser Haeckel o teórico do Pangermanismo. Para êle, teria sido o pensador mais sistemático e mais conforme com a tradição do espírito alemão, embora não tão eloquente quanto o publicista político e historiador Heinrich von Treitschke (1834-1896).


Sem entrar em questões propriamente científico-naturais, Bourget salienta de início frases escandalizantes de Haeckel, por exemplo a sua definição de Dever como „une série de modifications phylétiques de l‘écorce grise du phronéma“, criticando a sua linguagem pseudo-científica. Tais frases representariam um gosto pueril de causar espanto, inconveniente a um erudito. Não se poderia imaginar que um Claude Bernard (1813-1878) ou um Louis Pasteur (1822-1895) escrevesse dessa maneira. Em livro que poderia ser considerado como seu testamento espiritual, datado de 1904, em francês Les Merveilles de la vie, onde procurara resumir as descobertas da biologia no século XIX, Haeckel silenciara sobre os pesquisadores franceses.


Bourget lembra que Haeckel assinara, juntamente com Adolf Harnack (1851-1930), Karl Lamprecht (1856-1915), Wilhelm C. Roentgen (1845-1923) e outros cientistas alemães o Manifesto de 15 de setembro de 1914, onde os intelectuais se solidarizaram com a invasão alemã da Bélgica, aceitando assim os métodos de guerra adotados. Esse fato causara estupor no mundo francês. Como é que se compreenderia que homens que se dedicavam a disciplinas universitárias se revelassem cúmplices da mais feroz onda de barbárie que a Europa teria conhecido após séculos? Não haveria na esfera da alta cultura nenhum princípio de progresso?


Esse manifesto, que Bourget qualificava como monstruoso e testemunho de uma barbárie científica teria sido expressão de uma atitude que seria renovada em cada episódio do conflito e no qual a Alemanha encontrara um meio de se manifestar tão cruel quanto inteligente, tão hábil no manejo da matéria, tão engenhosa no emprêgo dos melhores métodos e tão selvagem, tão estranha àquilo que os franceses consideravam como patrimônio da Humanidade, contra o Humano. A leitura dos dois grandes livros de filosofia biológica de Haeckel, Les enigmes de l‘Univers, e les Merveilles de la vie ajudariam a compreender o caminho seguido pela inteligência alemã e como se teria produzido o desvio que deveria servir como uma lição a outros povos.


Ciência, ciências e cientismo


A seguir, Bourget passa a fazer uma distinção entre ciência e cientismo. Não seria possível haver uma barbárie científica, se se considerasse o termo ciência no seu sentido legítimo. Quem falasse em ciência diria ao mesmo tempo civilização. Ciência, porém, não queria dizer scientisme. Os livros de Haeckel permitiam distinguir perfeitamente entre esses dois termos e era urgente estabelecer tal distinção. A inteligência francesa também teria sofrido essa doença que era o scientisme


A palavra ciência significaria o conhecimento exato de uma certa ordem de coisas. Não haveria uma Ciência única, mas várias Ciências, uma vez que haveria uma multiplicidade de ordens de coisas ou fenômenos. A Geometria, por exemplo, seria uma ciência do mesmo modo que a Química ou a Astronomia, uma vez que todas as três procuravam conhecer o seu objeto de estudos; este, porém, seria diferente nos três casos e exigiria métodos distintos. A Geometria empregava a dedução, a Química a indução, a Astronomia a observação. Em todas as ciências haveria uma identidade no seu caráter comum, na exatidão em submissão ao objeto, mas diversidade quanto ao método. O cientismo, porém indicaria uma disposição de espírito muito recente, caracterizada pelo esforço de reduzir todas as ciências a uma só, que seria a Ciência com letra maiúscula, sem levar em consideração a diversidade de seus objetos.


O pensamento de Haeckel forneceria um exemplo dessa confusão de áreas e de seus perigos. Assim, existiria uma ordem de fenômenos psíquicos, entre êles o pensamento, o sentimento e a vontade - e uma ciência que os estuda, a Psicologia. Haeckel constatara porém que tais fenômenos seriam condicionados por fenômenos fisiológicos. Assim, êle suprimira a Psicologia, inserindo-a na Fisiologia.


Ao mesmo tempo, Bourget critica a falta de distinção na consideração do condicionamento de fenômenos. Estes poderiam ser condicionados sob duas acepções, mas Heckel não se preocupara com tal diferença. Ele definia, assim, o cérebro como laboratório químico do pensamento, uma simplificação inaceitável. Os fenômenos fisiológicos teriam por condição, de fato, os fenômenos físico-químicos. Haeckel absorvia assim a Fisiologia na Química física sem justificar essa assimilação do vivente com o não vivente. Os fenômenos físico-químicos, por sua vez, tendo como condição fenômenos mecânicos, levaram Haeckel a inserir a Físico-química na Mecânica, concluindo que a Ciência explicaria o universo inteiro pelo movimento. Designara como substância um resíduo susceptivel de sofrer transformações pelo seu movimento. Condensara assim todas as virtualidades dessa substância num plasma primordial que chamava de monère, um organismo sem órgãos, do qual todos os organismos teriam resultado por evolução.


Consequências políticas do cientismo




Ernest Haeckel
L'Illustration, 23 de agosto de 1919, 146

 
Essa concepção se fundamentaria, na crítica de Bourget, no princípio de que todo o inferior explica o superior. A velha alquimia teria sido menos irracional. A crítica do valor filosófico do Monismo, porém, não era o escopo do texto. Bourget queria demonstrar como essa filosofia tinha consequências políticas, e como tinha dado origem a um Pangermanismo violento. O pensamento alemão teria sempre uma dupla característica, ou seja de ser tão brutal quanto sutil, sendo ao mesmo tempo utilitário e nebuloso.


Se, segundo Haeckel, o mundo humano deriva do mundo animal, e este do mundo físico-químico, seria evidente que a palavra liberdade não teria nenhum sentido. Assim como Haeckel definira biologicamente o termo Dever, toda a ética desapareceria para dar lugar somente ao jogo de energias submissas a um princípio único, o da concorrência vital. Devorar para sobreviver, esta seria a lei que, de uma extremidade a outra do universo governaria as espécies e os indivíduos. Assim se produziria a seleção, que permite ao mais apto sobreviver à custa da supressão do menos apto.


Aplicando-se essa lei ao desenvolvimento das grandes criaturas coletivas que seriam os Estados, ter-se-ia a explicação de toda a política da Prússia após Frederico II e a do Império Alemão após Bismarck. Para a Prússia, como para o Império, a vontade de Poder era a primeira virtude do Estado, ou melhor, era o próprio Estado.


O Estado, segundo Treitschke, seria a expansão a que tem o direito e o Poder de fazer prevalecer pelas armas a sua vontade contra toda a vontade estranha. A afirmação de sua própria personalidade permaneceria a primeira e mais essencial de todas as tarefas. Não se deveria levar em consideração que tal expansão seria limitada pelo direito dos outros Estados à vida. Que êles se defendessem! - seria a resposta de Treitschke e de todo o Pangermanismo.


Ciência, civilização e deshumanização


Para Paul Bourget, a hibris germânica - a falta de meio-termo e moderação que seria uma das principais características desse povo - teria encontrado uma cúmplice nessa doutrina da seleção natural aplicada ao homem. Graças a ela, a Alemanha teria falseado verdades políticas e camuflado em ideologias seus eternos instintos de conquista, já estigmatizados por Tácito.


Bourget concordava que um Estado deveria ser forte para que se mostre capaz de defender a sua independência legítima. Esse fim colocaria o Estado numa situação que não é imoral em si, representada no plano de seus cidadãos por qualidades valiosas: a inteligência dos chefes, a disciplina entre os subordinados, a coragem e a força de trabalho. Essa força do Estado, porém, deveria ser controlada e permanecer humana, a fim de que toda a civilização fosse mantida e desenvolvida. Reduzindo o Estado a uma vontade de poderio, remeter-se-ia a sociedade humana à sociedade animal, chegando, como aconteceu na Alemanha, a uma prática de guerra que não se distinguiria da bestialidade.


Um dos mais renomados naturalistas franceses, Gaston Bonnier (1853-1922), dissera a Bourget, no início das hostilidades entre a França e a Alemanha, que um estudo sobre a guerra entre as abelhas seria de grande atualidade. Forneceria um exemplo dos procedimentos de ataque e de exterminação empregados pela Alemanha. Aqui ter-se-ia o esquema da guerra concebida biologicamente. A Alemanha atuaria segundo a lógica desses cientistas que haviam interpretado no seu sentido mais bestial a hipótese, inverificada e contestável da seleção natural. Esses professores, com Haeckel à sua frente, teriam proclamado o dogma fundamental do Pangermanismo: a Alemanha reconhecer-se-ia como sendo o primeiro povo do mundo.


Se a sociedade nada mais fosse do que um fenômeno biológico, a organização seria a prova de sua excelência. Também aqui encontrar-se-ia segundo Bourget a aplicação aos agrupamentos humanos de leis vigentes para os agrupamentos animais. Seria vão lembrar que a sociedade humana possui um outro caráter e que é constituída por uma sociedade de pessoas de espírito. Para Haeckel, essa concepção seria uma ilusão a ser dissipada pela Ciência. Se a capacidade de organização mede o grau da civilização de um povo, então não haveria nenhum outro povo superior ao alemão. Já Fichte havia dito que a hora da Alemanha soaria, pois se chegaria o século da Ciência, afirmando que o povo alemão seria o melhor preparado pelo seu gênio e método para a atividade científica.


Dever-se-ia lembrar, segundo Bourget, que os alemães tinham sempre reinvidicado para si todos os privilégios. Luther proclamara que seria o povo mais religioso, Friedrich Ludwig Jahn (1778-1852), no seu Deutsches Volkstum, que seria o melhor herdeiro do Helenismo. Seria, também a nação mais próxima do Cristianismo original. Para Haeckel e seus colegas, a nacionalidade alemã teria uma missão mais específica, ela seria a melhor qualificada para a evolução não apenas européia, mas mundial.


Os povos do futuro deveriam, segundo Haeckel nos seus Enigmes, sair do estado de barbárie em que se encontravam seguindo apenas um guia, a razão, a fim de compreender o lugar do homem na natureza. Se a Alemanha era mais capaz do que outro país de realizar esse programa, seria então de interesse universal que ela trouxesse os países atrasados a este estágio mais avançado da cultura, pela persuasão ou pelas armas. O Imperialismo germânico, para Bourget, tornara-se o que fora no passado o Imperialismo Romano, uma propaganda de civilização superior imposta aos demais povos.


O Monismo de Haeckel e de Wilhelm Ostwald (1853-1932) não seria nada mais para Bourget do que a codificação de idéias esparsas na atmosfera intelectual alemã. Seria injusto estabelecer um elo de causa e efeito entre as doutrinas filosóficas e suas consequências, ter-se-ia porém o direito de, confrontando as idéias com os atos, afirmar que uma doutrina permite condenar um ato, uma outra não. Quando um sistema como o de Haeckel não fornece nenhum argumento contra as atrocidades que fêz revoltar a consciência do mundo civilizado, isso indica que o sistema inclui em si um vício inicial. A Alemanha, apesar de todos os seus letrados, seus industriais e seus intelectuais, ter-se-ia deshumanizado sob a influência de uma corrente negativa do pensamento científico: o Evolucionismo aplicado à sociedade humana.


Crítica francêsa e a situação de imigrantes no Brasil


A análise crítica de Bourget surge assim como um documento expressivo do campo de tensões franco-alemãs na esfera do pensamento, devendo ser lido de forma diferenciada sob o pano de fundo da situação de Pós-Guerra e da orientação nacionalista e católico-conservadora de seu autor. Para os estudos euro-brasileiros, porém, a sua argumentação contribui ao exame das repercussões dessa situação conflitante na história cultural do Brasil, uma vez que também o Brasil lutou ao lado dos aliados. Não se pode esquecer que Ernst Haeckel manteve contatos com o Brasil, sobretudo através de correspondência e cooperação com o imigrante alemão residente em Santa Catarina, Fritz Müller (Lei Fundamental Biogenética) e que concepções de um Evolucionismo social e antropológico eram defendidas há muito no Brasil, entre outros pelo diretor do Museu Nacional. (Veja o número anterior desta revista)


A crítica de Paul Bourget, se compreensível e consistente sob o aspecto teórico de crítica ao assim-chamado Social-Darwinismo e digna de atenção por ter apontado as suas implicações políticas e as suas graves e negativas consequências éticas, reflete porém a animosidade da experiência histórica da Guerra. O relacionamento causal que faz entre o Evolucionismo levado às suas últimas consequências e a Alemanha não pode ser corroborado por um estudo mais aprofundado e distanciado. Um pensador como Haeckel sistematizou concepções do inglês Darwin e que, nos seus fundamentos, já eram há muito existentes.


Tais fundamentos não foram tanto resultados da Teoria da Evolução formulada por Darwin, mas sim a ela precedentes, produto de visões do mundo, de teorias e tendências utilitaristas e de mercado vigentes sobretudo no universo britânico.  A crítica de Bourget, assim, deveria antes ser dirigida às bases das concepções criticadas, e essas se localizariam em outros contextos culturais. Assim como o teuto-brasileiro Fritz Müller, também Haeckel foi antes de tudo um propagador de uma teoria desenvolvida na Inglaterra e que refletia, ela própria, uma tentativa de comprovação empírica de concepções vigentes. (Veja a respeito as reflexões expostas no número anterior desta revista)


Entretanto, o recordar de sua posição pode abrir caminhos para análises mais profundas da situação das colonias de imigrantes alemães e de intelectuais alemães no Brasil durante e após a Primeira Guerra e que provavelmente surgiam, aos olhos de intelectuais de formação francêsa, como agentes de um Social-Darwinismo sem escrúpulos éticos.


Antonio Alexandre Bispo




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu


  2. A A.B.E. é entidade exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias. É, na sua orientação teórico-cultural, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. A Organização de Estudos de Processos Culturais remonta a entidade fundada e registrada em 1968 (Nova Difusão). A A.B.E. insere-se em tradição derivada de academia fundada em Salzburg pelos seus mentores, em 1919, sobre a qual procura sempre refletir.