Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 120/17 (2009:4)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath

Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2475


 


Educação Musical a serviço da Ética


Aula inaugural do projeto de Licenciatura em Educação Musical à distância, Universidade Federal do Rio Grande do Sul
sob a direção da Profa. Dra. Helena de Souza Nunes
Porto Alegre (2008)



A.A.Bispo 2009
Antonio Alexandre Bispo



Imagens do Palácio do Govêrno do RS (1-5), Palácio Farroupilha (6), do monumento a Júlio de Castilhoas (1860-1903). Fotos A.A.Bispo 2008

 
Senhoras e Senhores,


o Brasil nasceu sob o signo da Educação Musical: da espontânea e da dirigida.


Quando, na missa após o Descobrimento, como nos relata a carta de Pero Vaz de Caminha, os indígenas, não entendendo o sentido das palavras e dos atos, escutaram silenciosos o Canto Gregoriano e o órgão dos Franciscanos, documentaram pela primeira vez à História a atitude receptiva que fundamentaria o poder da música na formação do Brasil: fascinação pelo desconhecido, ininteligível, incompreensível e inalcançável, pelo novo e tecnicamente superior, abertura de sentidos, encanto da percepção.


É compreensível, assim, que o caminho musical tenha sido aquele utilizado pelos missionários na atração daqueles com os quais não podiam comunicar-se com palavras. Cativar os corações, conquistar afetivamente os nativos foi sempre o primeiro passo, seja com música européia, seja com imitações das sonoridades indígenas. A lei do vibrar em simpatia, do mover e do deixar atrair-se pelos apelos dos sons e dos movimentos, levando ao congraçamento pela emoção na alegria e na tristeza foi a via emotiva, não-racional do conquistar e do deixar-se conquistar. A música, a tão decantada linguagem universal, foi realmente principal veículo do encontro e da aproximação de culturas que não se podiam compreender.


A carta do Descobrimento oferece porém um outro testemunho, não apenas derivado da atitude receptiva, por assim dizer contemplativa e indicadora de um significado tão freqüentemente negado da vida interior dos indígenas.


Quando, após o culto, no ambiente festivo da época pascal, marinheiros desceram à terra com instrumentos que traziam de Portugal para o seu divertimento, ocorreu a primeira interferência ativa de culturas, a primeira integração dos nativos nas folganças dos recém-chegados.


Tomados pelas mãos, contrariamente a seus hábitos, entraram na dança dos forasteiros e assistiram atônitos a um jogo de destreza acrobática que, com as suas rasteiras, poderia ser visto como emblemático da transformação cultural que vivenciariam.


Os instrumentos que então conheceram eram os de pastores, camponeses, homens simples da terra, aqueles homens que, no imaginário cristão dos navegantes tinham sido aqueles do presépio, os representantes de uma humanidade terrena, rústica, dominada pelos sentidos do corpo e na qual, na visão cristã, o Logos, a Sabedoria havia encarnado há 1500 anos atrás.


Os nativos do Brasil integraram-se assim, sem o saber, no mundo das representações medievais simbólicas do homem velho, da velha humanidade e do Velho Testamento, superado pelo Novo, expressões de um homem carnal visto pelos cristãos renascidos não como ameaça, mas como grotesco.


A jocosidade satírica dessas expressões deveria desde então marcar o processo de metamorfose cultural dos nativos e dos mecanismos que passariam a ser empregados de forma sistemática pelos missionários, sobretudo da Companhia de Jesus.


O Brasil formou-se assim sob o signo da lúdica: da espontânea e da dirigida.


À medida em que os nativos passavam a participar dos folguedos cristãos, misturando-se com os seus ornamentos e cocares às máscaras de velhas e velhos lúbricos, de figuras ridículas da falta de virtudes, mesclando-se, com as suas maracas e flautas às gaitas, aos chocalhos e pandeiros de insinuações animalescas ou carnais dos europeus, tornavam-se objeto de uma carnavalização no sentido literal do termo.


Passavam a ser identificados com uma esfera inferior da cultura, com todas as suas conotações negativas. Na medida em que desvalorizavam os seus instrumentos e outros atributos de sua cultura ancestral, misturando-os com figuras grotescas destinadas a fomentar o riso, expunham não apenas o seu mundo ao ridículo, mas passavam gradualmente a vê-lo sob esse prisma, desqualificando-o.


Esse foi o mecanismo certamente mais eficiente da transformação cultural: o da negativização subreptícia da cultura consuetudinária em aparente tolerância de formas externas. Uma re-educação, na qual a música exerceu fundamental papel: maracas e outros instrumentos indígenas passaram a misturar-se com sistros e outros instrumentos populares europeus, podendo substituí-los ou ser por eles substituidos, em múltiplas possibilidades de relações, transformados em sinais diferentes de um só conteúdo, de tipos diferenciados de um anti-tipo.


Gradualmente afastavam-se os indígenas de sua cultura, passavam a vê-la sob a perspectiva dos descobridores, internalizavam seus valores e normas, integravam-se no seu mundo. A adoção oficial da nova identidade, pelo sacramento, pelo sinal do batismo, surgia assim como um sêlo de uma transformação já há muito ocorrida, inconscientemente, em meio a festas, danças e júbilos.


A nova situação, porém, foi sempre marcada por grande instabilidade. O próprio sistema de folguedos transplantado para os países descobertos demonstrava simbolicamente o constante perigo de uma queda no estado anterior, o retrocesso do homem espiritualizado a uma fase por êle superada.


Para isso, tornava-se necessário repetições constantes, uma freqüente desvalorização de suas expressões originais pelo rir nos folguedos que se realizavam anualmente ou até mesmo várias vezes por ano por ocasião de festas religiosas.


O neófito agora identificado com o universo dos europeus encontrava-se porém ainda muito próximo emocionalmente da cultura de sua infância, de seus pais e de sua gente. Sentia-se obrigado a afastar-se daquilo a que estava preso por laços de coração, e para isso recorria à estrategia de transformar o afeto em repulsa, o amor em ódio, de marcar o seu afastamento pelo corte definitivo, de aumentar a distância com o mundo de onde provinha, intensificando a sua identificação com o universo branco através do domínio mais completo possível de suas expressões.


O querer tornar-se mais europeu do que os europeus, mais cristão do que os cristãos foi um dos resultados. A labilidade da nova situação era, porém, também social e étnica.


Por mais que se esforçasse, por mais que procurasse aprender e dominar aquilo que os europeus faziam, o neo-brasileiro sempre continuava a sentir-se visto como inferior, discriminado pela origem, pelo sangue e pela cor.


O único caminho para a ascensão na nova sociedade permanecia aquele do ganhar prestígio e granjear reconhecimento pelo domínio de suas técnicas. Não podendo competir na esfera intelectual pelas dificuldades de língua e por falta de inserção na tradição filosófica e histórica do Ocidente, apenas restava a possibilidade de dar provas de destreza física e de inteligência prática. Indígenas cristãos e mestiços de todos os cruzamentos se tornaram assim pela sua força, agilidade ou outras qualidades físicas não apenas insubstituíveis guias, companhias de desbravadores e combatentes, mas também exímios músicos práticos, instrumentistas, copistas de partituras e construtores de instrumental na América Latina, como nos prova os testemunhos de vários países.


O extraordinário florescimento da música orquestral nas igrejas dos tempos coloniais, o desenvolvimento singular dos conjuntos instrumentais e bandas em quase todas as regiões do Brasil e sobretudo o surgimento de grandes instrumentistas e virtuoses não foi apenas um produto do ensino formal, mas sim resultado de um processo amplo de formação cultural que teve as suas origens nos primeiros momentos do encontro entre a Europa e o mundo nativo das Américas e da África.


Labilidade e inquietude de auto-afirmação e superação foram duas faces de uma situação humana que levou à intensificação de expressões, estilos e práticas, à extrapolação da via média, à perda de equilíbrio, ao exagêro. Viajantes estrangeiros de séculos passados se assombravam em constatar aqui a exuberância sonora que lhes surgia como exteriorizante da execução instrumental e da interpretação vocal, o alegre mais alegre, o sentimental mais sentimental, o grandioso mais apoteótico, as alusões sensuais das danças mais explícitas.


*


Quando, há 200 anos, o Rio de Janeiro se transformou no centro do império português, - fato que rememoramos em 2008 -, iniciou-se um desenvolvimento que traria músicos, compositores e professores de renome da Europa para o Brasil.


Grupos privilegiados da sociedade passaram a receber ensino musical esmerado e tomar contato com as mais atuais tendêncas estilísticas e de concepções estéticas vigentes na Europa. Muitos dos imigrantes, músicos que aqui se estabeleceram e seus alunos passaram a ser multiplicadores. Ingentes esforços foram feitos não apenas para a criação de um Conservatório Imperial de Música para a formação especializada de músicos e compositores como também de um ensino musical nos colégios que então procuravam ser modelares.


Não houve época no Brasil na qual tanto se acreditou numa formação com bases universais e no significado do homem assim educado para o futuro do país do que o Império sob a égide de Pedro II°.


Com extrema seriedade de propósitos observava-se o desenvolvimento de técnicas de ensino e de concepções, realizavam-se exposições pedagógicas com a participação das mais diversas nações. Nas escolas mais renomadas cultivavam-se cantos em vários idiomas e as datas pátrias e escolares eram festejadas eruditamente com canções em francês, inglês ou alemão.


Passou-se a admirar de forma crescente a fundamentação teórica que levara à excelência do ensino musical profissional e escolar da Europa Central e vários brasileiros da República que então se instalou foram ali procurar bases e incentivos para a sua obra composicional e de ensino.


Se anteriormente, no Império, a música era vista antes na sua qualidade de elemento básico da formação integral do homem, conjuntamente com a educação física em antiga tradição filosófica, agora o pensamento positivista dirigia a atenção ao fenômeno sonoro em si, à linguagem musical tal como se ouve.


Foi essa atenção à música na sua realidade acústica e às leis que se supunham universais do progresso de técnicas e de estilos que fêz com que a prática musical e o ensino das primeiras décadas republicanas, lideradas pelo Instituto Nacional de Música, adquirissem excelência formal e de execução comparável àquela dos modêlos europeus.


O lema  Ordem e Progresso teve a sua expressão musical no cultivo de tendências estéticas vistas como sinais de um caminho evolutivo da arte musical e no domínio de técnicas que exigiam especial disciplinação, do contraponto, da fuga, da forma, da orquestração.


A educação musical nas escolas, por seu lado, também refletia esse espírito positivista do tempo: no assim chamado método analítico procurava-se educar sistematicamente o ouvido da criança para o discernir de intervalos e ritmos, para a percepção racionalmente consciente da música como fenômeno acústico, e um dos seus caminhos era passar para o papel o que se ouvia, através do ditado musical.


Poder-se-ia dizer que o Ditado foi um emblema pedagógico-musical da República.


Um fato singular ocorreu porém nesse clima positivista de atenção à música na sua realidade sonora, na sua fenomenalidade audível. Os músicos e professores, que muitas vezes às expensas do Govêrno se dirigiam à Europa para observar os mais atuais métodos e as mais recentes tendências musicais, confrontaram-se com intuitos de criação de uma música característica em diversos países emergentes como nações através do uso de elementos melódicos, rítmicos e expressivos de danças e outras expressões tradicionais.


Também o Brasil, seguindo o progresso, deveria integrar-se nessa fase de um suposto desenvolvimento evolutivo da linguagem musical. Para isso, porém, tornava-se necessário pesquisar as manifestações sonoras folclóricas, ouví-las e analisá-las segundo os seus aspectos formais e estruturais, ordenando e sistematizando os resultados. Não importava de qual contexto as melodias, os rítmos e as formas provinham, qual o sentido das danças, folguedos e cortejos nos quais se integravam, o importante passou a ser a constatação de configurações melódicas e rítmicas, de formas e de instrumentos característicos, de ocorrências sincopadas e cortes de danças típicas, ou seja, também aqui de elementos musicais na sua realidade sonora, de constâncias perceptíveis pelo ouvido, desvinculadas de contextos e processos.


Não apenas esses elementos assim ganhos quase que em procedimento anatômico deveriam criar uma linguagem musical nacional; não, o procedimento inverso também passou a ser preconizado. Essa linguagem musical, esses rítmos, essas fórmulas melódicas, esses instrumentos deveriam contribuir à formação de uma consciência nacional do povo.


Para isso, a educação musical necessitaria ser ampla, abrangente e dirigida segundo o edifício teórico que se construiu. Isso também explicável pelo fato de que os descendentes de imigrantes, que vivenciavam um processo similar àquele dos primeiros séculos, caracterizado pela labilidade e ímpeto de superação, procuravam autoafirmar-se superando a cultura dos pais imigrados, tornando-se mais nacionais do que os nacionais, mais patriotas do que os patriotas.


Um já antigo movimento de educação musical francesa, o chamado Canto Orfeônico, reconhecido também no mundo português pela sua impressionante efetividade organizativa de arregimentação do povo e disciplinação escolar, e o movimento do Canto Popular da Europa alemã, com as suas associações operárias e sindicais foram algumas das ocorrências paralelas que influenciaram o maior movimento de educação musical e das massas que o Brasil já possuiu: o movimento orfeônico sob a liderança de Heitor Villa-Lobos.


Expressão educativa por excelência de época autoritária da história política do Brasil, esse movimento, com instituições de formação de professores, tendo à frente o Conservatório de Canto Orfeônico do Distrito Federal, com rêdes de multiplicadores e de coros, com a organização de concentrações em estádios, com publicações especializadas e criação de repertórios próprios, foi muito mais do que um grandioso esforço de musicalização da infância, da juventude e de promoção da alegria dos trabalhadores nas suas horas livres.


Representou expressão eminentemente política e político-cultural, foi veículo de conformação de massas, de fortalecimento de sentidos de coesão social, de congraçamento de classes sob a vigência de lideranças altamente hierarquizadas, em estruturas de coros e conjuntos guiados por sub-regentes, que por sua vez eram regidos por outros guias até o líder máximo, o regente.


Para a criação de tal disciplina e sentimento de totalidade, a música, unificada nos seus elementos sonoros, era principal veículo: crianças, jovens e operários de todo o Brasil, do Guaporé e do Rio Branco ao Nordeste e ao Extremo Sul, nas grandes capitais e no interior deveriam aprender a vibrar não apenas com hinos pátrios, mas com os mesmos ritmos sincopados, as mesmas bandinhas rítmicas, as mesmas melodias populares, independentemente das regiões e dos contextos de onde inicialmente provinham.


Uma similaridade de fenômenos pode ser constatada entre essa fase da história da educação musical do Brasil e aquela dos primórdios da colonização. Em ambas a música serviu como veículo de atração, de fascinação, em ambas a participação ativa em cantos e danças levava à formação e consolidação de identidades coletivas.


Em clima de festa, a mudança de sentidos e sensos e a sua constante consolidação processava-se nos dois casos de forma não dolorosa, espontânea, não conscientemente refletida. Uma diferença fundamental, porém, houve entre os dois fenômenos: no primeiro, a música que não era de culto fazia parte de um sistema de sinais que, na sua aparência, representavam o grotesco do homem terreno, no seu sentido, porém, indicavam a existência de uma outra realidade, esta intangível, espiritual.


Era um sistema de fundamentação metafísica e ontológica e servia à metamorfose cultural, relembrando constantemente as fraquezas do mundo terreno. No segundo caso, o da época autoritária, orfeônica, a música fazia parte de um sistema construtivo de identidade, constituido não porém como sinais que indicavam uma realidade outra, a que eles mesmos não pertenciam, mas que surgiam como materiais concretos de estruturação e de expressão. Também aqui visavam uma unidade, não porém religiosa, mas sim de Estado. No primeiro caso, utilizava-se de expressões da realidade sonora como tipos que sinalizavam anti-tipos, no segundo, procurava-se fazer dos tipos elementos construtivos de uma identidade-tipo.


Numa visão histórica ampla, poder-se-ia dizer que essas duas fases da história educativa fizeram parte de um processo transepocal de secularização, de perda do sentido religioso e metafísico.


A questão é porém mais complexa e necessita ser considerada de forma diferenciada. Os elementos para a construção da nova identidade, do novo homem do Estado Novo, adquiridos através da análise anatômica da realidade sonora, eram, na sua inserção original em contextos simbólicos, elementos de uma representação grotesca da existência, representação essa aqui implantada pelos colonizadores.


Um edifício de expressões configurador de identidade assim levantado trouxe e traz em si a constante mácula de poder surgir como jocoso, não-sério, não-digno de uma imagem mais elevada do homem, se refletido por aquele que se situa em sistemas de fundamentação metafísica. Essa inserção de grande parte da população em universo de orientação ontológica é, porém, uma realidade altamente atual, levando-se em conta, por exemplo, a intensidade de movimentos religiosos no país e do mundo.


Há porém um problema mais grave do que a concomitância de sistemas de ordenação cultural discrepantes, com as suas tensões e incoerências.


A construção cultural e de uma linguagem musical performadora de identidades baseada em elementos ganhos da percepção superficial de sinais pode encobrir a vigência continuada de mecanismos intrínsecos ao processo colonial e, portanto, de situações de labilidade, de ímpeto de superação e inquietude perene de auto-afirmação. Assim como na ordem simbólica implantada no passado colonial elementos indígenas e africanos surgiam ao lado e com similar significado de elementos judaicos, ciganos, da Antiguidade pagã e do campôneo europeu, em sistema secularizado a diversidade de elementos considerados e integrados não é, por si, garantia de que não haja discriminação ou injustiça.


Também no passado foram apenas as expressões externas das culturas indígenas, africanas e outras que foram consideradas quase que de forma emblemática num sistema que, na verdade, as desvalorizava.


O discurso relativo à diversidade cultural que nos últimos anos vem predominando nas reflexões educativas necessita, assim, ser considerado de forma mais cuidadosa. As relações entre Diversidade e Unidade são pluridimensionais, mais complexas e profundas do que muitas vezes suposto.


A Unidade, a Unidade na Pluralidade, não pode ser focalizada apenas sob o aspecto de uma homogeneidade da linguagem musical a ser criticada a partir de uma visão negativa decorrente dos problemas atuais da globalização. A dimensão da Unidade diz respeito também e sobretudo à Ética, ao Direito Humano e até mesmo ao Direito dos seres viventes em geral e à Natureza, direitos que não podem ser relativados.


Sob esse aspecto ético, a Unidade, - Unidade na Diversidade e Diversidade na Unidade - deveria permanecer instância constantemente refletida e até mesmo orientadora das reflexões e das práticas educativas.


O objetivo da formação de especialistas em Educação Musical não deveria ser o da habilitação de agentes perpetuadores de processos colocados em andamento no passado, seja de metamorfose cultural com bases simbólico-religiosas, seja o de construção cultural a partir de elementos das realidades sonoras captáveis sensorialmente.


A sua função é mais digna do que a de criador de atmosferas festivas, nas quais o cidadão e a criança são fascinados, atraídos e integrados irrefletidamente em sistemas culturais. O Educador deveria ser o competentemente sensibilizado e o sensibilizador para o fato de que o Homem está imerso em complexos processos de natureza formativa e de configurações educativas, desencadeadaos de forma espontânea ou dirigida, que se perpetuam quase que por misterioso e assustador automatismo, e que, nessa inserção, o seu desenvolvimento cultural reside em agir refletidamente de dentro do próprio processo.


O Educador Musical surge, nessa perspectiva, como um agente de libertação.


De libertação de dependências de mecanismos no qual a música é instrumentalizada a serviço de um sistema de concepções e normas que, por último, acentuou desde o início uma dicotomia entre o homem culto e o homem inculto, compreendido este como o terreno, animal, supostamente natural,  ou seja, uma dicotomia entre Cultura e Natureza. O aperfeiçoamento da acuidade para o fato de que Cultura não é oposta à Natureza, de que Cultura não significa a desvalorização e a destruição da Natureza, mas sim que Cultura se manifesta na forma com que o Homem se comporta para com os outros homens, os seres viventes e a Natureza em geral surge como uma tarefa ampla, nacional, que exige a cooperação de muitos, em todas as regiões do país.


A função do Educador Musical não diz respeito portanto apenas à Estética, mas sim também à Cognição e, sobretudo, à Ética.


O Brasil nasceu sob o signo da Educação Musical: da espontânea e da dirigida.


A hora atual é a de uma Educação Musical a serviço da Ética. É nesse sentido ético e esclarecedor que o projeto que hoje se inicia apresenta-se particularmente promissor, pois possui, além da grandiosidade de sua abrangência nacional, deveres transcendentes, humanos, universais.


O Educador Musical não é o músico, o instrumentista e o cantor, e o seu escopo não é apenas o do criador de situações festivas ou o treinamento da percepção sensorial. Ele tem a sua atenção dirigida a uma percepção mais profunda, a de Valores, e se ocupa constantemente com a questão do reconhecimento e atribuição de Valores e com a justiça das Valorações.


Dedicando-se acima de tudo à formação ética da criança e do jovem através da música, necessita estar sempre atento às suas próprias inserções em universos sistêmicos instáveis e que o impelem de forma pouco digna à autoafirmação vaidosa e à superação não-solidária e não-cooperativa do próximo e do outro.


O Educador Musical não deve apenas saber ler e analisar os sinais de nossa realidade sonora diversificada – deve estar preocupado com o aprimoramento do próprio caráter. Ele não é, reiterando, o esteta, nem também o cientista ou o filósofo. O seu objetivo último é a inteligência, não porém aquela capacidade do intelecto, da razão, mas sim a de uma instância mais profunda e fundamental: a inteligência dos corações.


Agradeço pela atenção