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ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

N° 119/16 - (2009:3)

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Colaborações


Léonce de Saint-Martin:

Compositor e Organista


Conferência proferida na Universidade de Uberlândia, Minas Gerais, junho de 2009



Calimerio Soares



Introdução

Em princípio dos anos 1960, na pacata cidade mineira de São Sebastião do Paraíso onde, ainda jovem estudante de música, eu havia sido convidado a ministrar aulas de piano aos alunos do Seminário Nossa Senhora de Sion. O Revmo. Pe. José Chaves - que me havia feito o convite - era homem de grande erudição e cultura musical. Apesar de não se dedicar profissionalmente à música, era bom organista e regente de coro. O Seminário dispunha àquela época de uma excelente biblioteca e discoteca, além de um belo órgão eletrônico (marca Hammond) instalado em sua singela capela.

Certo dia estive em visita à discoteca do Seminário. Enquanto escolhia algumas gravações ali existentes, aconteceu que, em meio a vários antigos discos de 78 r.p.m. e LPs, encontrei um que muito chamou minha atenção: tratava-se de uma gravação especial, trazida da França por algum dos padres daquela congregação religiosa. Era o LP “IN MEMORIAM”, Edition Studio SM 33-22, intitulado Léonce de Saint-Martin aux grandes orgues de Notre-Dame de Paris.

Ao escutar o disco pela primeira vez, fui tomado de grande emoção e admiração, não somente pela magnitude sonora do grande órgão daquela histórica catedral, mas também pela beleza das improvisações e composições brilhantemente executadas pelo organista!

A partir de então, eu havia também tomado conhecimento a respeito do construtor daquele órgão magnífico, que foi Aristide Cavaillé-Coll (1811-1899).


1 - A música em Notre-Dame

•- O órgão:

A música sempre esteve ligada à Catedral de Notre-Dame desde a Idade Média, quando da famosa “Escola de Notre-Dame”, liderada por dois frades músicos, Léonin e Pérotin. Desde a construção da famosa catedral que existiam órgãos, mas Pérotin parece ter conhecido apenas instrumentos muito pequenos.

A partir de então, outros órgãos foram instalados e restaurados, de acordo com o desenvolvimento da arte organária (arte de construir órgãos), suprindo as necessidades sempre crescentes dos organistas. Construtores como Jean Robelin, Pasquier Baullery, Nicholas Dabenet (que viveram entre os séculos XV e XVI), Jehan Titelouse, Valeran De Héman, Pierre, Alexandre e François Thierry (no século XVII) foram responsáveis pelas diversas fases de restauro por que passou o órgão, até que este adquirisse as proporções sonoras desejadas para aquele enorme templo.

François-Henri Clicquot (1732-90) - já em plena era do chamado órgão clássico francês (século XVIII) - renovou em 1783 todo o material do instrumento que se encontrava deteriorado. Seu sucessor, o organeiro Pierre-François Dallery (1766-1833) procedeu (em 1812) a uma entonação geral do instrumento. Em meados do século XIX, a catedral necessitava ser restaurada. Os trabalhos de restauro do templo acabaram por empoeirar o órgão, causando-lhe sérios problemas. Foi quando o organeiro Aristide Cavaillé-Coll (1811-1899) apresentou em 1860 uma proposta para a construção de um instrumento de primeiríssima classe. Os trabalhos foram finalmente entregues à Cavaillé-Coll, a 15 de julho de 1863.

O instrumento que conhecemos hoje em Notre-Dame é um majestoso órgão sinfônico, construído segundo a hábil paleta sonora de Aristide Cavaillé-Coll.

Presentemente, este órgão é considerado um dos maiores da França. A moderna tecnologia digital já lhe emprestou um Station MIDI, responsável pelas múltiplas facilidades de manejo do instrumento pelo organista.


•- Os organistas:

A tradição de organistas-titulares em Notre-Dame remonta ao final da Idade Média. Desde Renaud Dereims (1403-15) até Olivier Latry (a partir de 1985 até o presente), passaram por Notre-Dame 44 organistas-titulares. Os organistas Louis Vierne (1870-1937), Léonce de Saint-Martin (1886-1954) e Pierre Cochereau (1924-84) marcaram época como expoentes compositores, improvisadores e intérpretes da música francesa para órgão do século XX. Em 1968, o organista Pierre Cochereau iniciou a famosa série de concertos realizados às tardes de Domingo em Notre-Dame, tradição que ainda perdura. Presentemente, são três os organistas-titulares de Notre-Dame, tendo iniciado suas atividades em 1985. São eles: Olivier Latry, Philippe Lefebvre e Jean-Pierre Leguay.




2 - Léonce de Saint-Martin (1886-1954)

2.1 - O músico:

Léonce de Saint-Martin nasceu em Albi em 31 de outubro de 1886, à sombra da majestosa Catedral de Santa Cecilia. Desde muito jovem revelou seus dotes musicais incontestáveis. Aos catorze anos foi-lhe confiado o posto de organista suplente do grande órgão daquela Catedral. Casado com uma musicista, inspiradora e guia preciosa, tornou-se, em Paris, o aluno preferido de Adolphe Marty.

A guerra de 1914 interrompe seus estudos. Retornando em 1918 com a “Cruz de Guerra”, reencontra Louis Vierne, organista de Notre-Dame de Paris depois de 1900, com quem prossegue seus estudos. Torna-se organista em Notre-Dame des Blancs-Manteaux, trabalha com Albert Berthelin e faz-se amigo de eminentes organistas, tais como Charles-Marie Widor, Charles Tournemire e Marcel Dupré.

Em 1924, Vierne o torna seu suplente oficial em Notre-Dame de Paris: apresenta-se então em recitais públicos e pelo rádio. Louis Vierne morre em 1937, deixando um grande número de alunos, dentre eles alguns excelentes que poderiam competir pela honra da sucessão. Porém, o Cabido Metropolitano que conhecia o valor e a consciência de Saint-Martin, na certeza de que ele perpetuaria a tradição de Vierne, o designou ‘organista titular’ por unanimidade. Essa controvertida designação do organista ao cargo de ‘titular’ gerou um grande constrangimento entre os organistas da época. Uma vez empossado no cargo, Saint-Martin parte ao cumprimento de sua missão como titular de Notre-Dame de Paris. Segundo palavras do padre Rev. Riquet, “Léonce de Saint-Martin não teve outra ambição, outra preocupação, outro encargo do que dar a catedral de Paris uma alma sonora com as dimensões de seus grandes momentos”.

Foi um organista completo, isto é, um virtuose, um improvisador, um compositor e um auxiliar da Igreja. Por sua modéstia, fineza, nobreza e personalidade, seus amigos, músicos, poetas, artistas de todas as crenças o visitavam a cada domingo na tribuna do órgão. O abade Roussel, verdadeiramente, chamou-o de “Chantre de Notre-Dame” pela beleza de sua obra musical tão ricamente adaptada ao quotidiano da célebre Catedral.

Faleceu a 10 de junho de 1954.


2.2 – As obras:

A inspiração da obra de Léonce de Saint-Martin segue o curso de sua vida. Compõe a Suite Cyclique e, em 1931, a Messe en mi para 4 vozes mistas e dois órgãos. Produz mais de 80 transcrições para órgão de obras de 45 autores.

Sua nomeação como organista-titular em Notre-Dame de Paris muda suas perspectivas. Ele não escreverá outras obras que não apenas para órgão!

Escreve o poema sinfônico Gêneses, tendo em vista uma tournée aos Estados Unidos. Mas a II Grande Guerra o impede de realizar essa viagem. Após escrever a Passacaille - que evoca o povo que marcha nas sombras e vê se abrir uma grande luz - ele não hesita, em plena ocupação alemã, a aclamar o seu patriotismo, escrevendo a paráfrase do hino nacional francês IN MEMORIAM.

Após as sutis registrações da serena Pastorale e, em junho de 1944, ao final da guerra, os prantos e ardentes súplicas do Kyrie funèbre para 4 vozes mistas e dois órgãos, dedicado à memória de sua mãe, aparece - em agosto - a Toccata de la Libération, onde traduz a sua imensa alegria ao ver Paris libertada.

Chega-se, então, à apoteose de suas últimas obras, todas de inspiração religiosa: a Symphonie Dominicale, a Symphonie Mariale, o Cantique Spirituel, alguns versos do Magnificat para coro e dois órgãos, o Scherzo de concert, a Paraphrase du psaume 136, o Postlude de fête, o Choral-Prélude pour le temps de l’Avent, a Salut à la Vierge, mais uma série de peças consagradas à festa do Natal, uma Ave Maria e um Panis Angelicus para voz e órgão.

Suas improvisações gravadas durante o ofício divino revelam um inspirado criador de melodias e harmonias de eloqüente atmosfera mística e espiritual.


3 - Discografia

A discografia de Saint-Martin é ainda bem pequena, se comparada à dos demais compositores franceses para órgão. Até o presente, consta de seis títulos.

O nome de Léonce de Saint-Martin está ligado a uma Associação de Amigos em Paris, entidade responsável pela divulgação de suas obras e preservação de sua memória. Desde a sua fundação em 1963, a associação tem como presidente o Dr. Pierre Baculard, amigo pessoal do célebre organista e responsável pelo registro fonográfico de várias obras de Saint-Martin.

Em 2002, iniciamos os trabalhos de construção de um site na Internet, devotado ao compositor e organista Léonce de Saint-Martin, podendo ser visitado no endereço br.geocities.com/leoncedeesaintmartin/.


4 - Homenagens em Notre-Dame

A catedral de Notre-Dame fez cantar o Kyrie e o Agnus Dei (da Missa em mi) no dia 13 de junho de 2004, data mais próxima a 10 de junho, dia do aniversário da morte do organista;

No dia 27 de junho celebrou-se em Notre-Dame uma missa em homenagem a Saint-Martin. A “Missa em mi” foi também cantada nessa ocasião. O sermão foi proferido pelo Monsenhor Jehan Revert, mestre de capela emérito da catedral e inteiramente consagrado ao organista homenageado.

Ao encerramento das homenagens, o organista Olivier Latry executou magnificamente a Toccata de la Libération



Palestra proferida no dia 01 de junho de 2009, em homenagem ao 55° ano de falecimento do compositor e organista francês Léonce de Saint-Martin, durante as comemorações do “Ano da França no Brasil”, promovido pelo Instituto de Letras e Lingüística da Universidade Federal de Uberlândia.


CALIMERIO SOARES é compositor e pesquisador. Doutor em Música pela Universidade de Leeds, Inglaterra. Membro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM), da Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência e conselheiro do Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes e.V.


NOTRE-DAME DE PARIS: THE ORGANS. Association Maurice de Sully, 1993.


GUÉRARD, Jean. Léonce de Saint-Martin à Notre-Dame de Paris. Paris, les Éditions de l’Officine, 2005.


 

Doc. N° 2457