Revista
BRASIL-EUROPA
Correspondência Euro-Brasileira©
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Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 118/15 (2009:2)
Editor: Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Direção administrativa: Dr. H. Hülskath
Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais (ND 1968)
Academia Brasil-Europa
Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (ISMPS 1985)
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2009 by ISMPS e.V. Edição reconfigurada © 2014 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Doc. N° 2422
Colombia-Brasil
Inquisição em contextos euro-latinoamericanos e os judeus portugueses em Cartagena
Ao diplomata Eduardo de Affonso Penna, Embaixadas do Brasil da Alemanha e no Panamá, em gratidão pelos apoios
O programa de trabalhos - o primeiro do gênero - concretizou impulsos partidos do Congresso Internacional "Música e Visões" pelos 500 anos do Brasil e triênio subsequente (1999-2004), do II° Congresso Brasileiro de Musicologia (RJ 1992), do Encontro Regional para a América Latina e Caribe ICM/UNESCO (SP 1987) e do projeto "Culturas Musicais Indígenas" patrocinado pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha (1992-).
Os trabalhos procuraram dar continuidade aos impulsos decorrentes do simpósio de renovação dos estudos interamericanos e transatlânticos (Leichlingen/Colonia 1983). A orientação teórica é marcada pela tradição de pensamento e de iniciativas remontante à sociedade de renovação de estudos e prática cultura fundada em S. Paulo, em 1968 (Nova Difusão), atual Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais. Principais colaboradores dos projetos interamericanos: Prof. Dr. Francisco Curt Lange (Montevideo) e Prof. Dr. Samuel Claro-Valdés (Chile).
Instituições envolvidas e visitadas: Academia Brasil-Europa, Institut für Studien der Musikkultur des Portugiesischen Sprachraumes e.V./IBEM, Museo Nacional, Consejo National de la Cultura, Catedral de San Jose/Curia Metropolitana, Teatro Nacional, Museo Teatro El Coliseo (Costa Rica), Museo de la Inquisitión , Academia de la Historia de Cartagena de Indias, Biblioteca Bartolome Calvo e Museo Petrus Claver (Cartagena).
Trata-se de uma fase histórica no qual as duas esferas coloniais - a espanhola, orientada ao Ocidente e ao Pacífico - e a portuguesa, orientada ao Oriente, e decididamente marcada pelo Atlântico - mais profundamente se interferiram, inseridas que foram no novo contexto geoestratégico criado pelo regime da União Pessoal entre Portugal e Espanha.
Cada vez mais se reconhece a relevância histórica e a gravidade das consequencias de processos transatlântico-pacíficos então postos em vigência ou intensificados.
Neles se inserem, entre outros desenvolvimentos trágicos, o incremento do tráfico de escravos de regiões de influência portuguesa da África para o Caribe e a terra firme espanhola nas Américas, o aumento da violência marítima, de flibusteiros e piratas, e a instauração do tribunal da Inquisição no Novo Mundo.
A modificação nas relações entre os dois países ibéricos foi acompanhada por novas configurações políticas internacionais que tiveram influência decisiva no vir-a-ser- histórico das regiões colonizadas.
Inimigos continentais da Espanha passaram a agir em regiões sob a influência portuguesa no mundo. Tensões internas do mundo português - compreendendo portugueses da diáspora -passaram a ser sentidas em regiões sob a dominação espanhola.
Para os estudos euro-brasileiros, um aspecto dessa nova situação chama particular atenção: a atividade de portugueses, sobretudo de portugueses judeus ou cristãos novos a territórios espanhóis da América Latina.
Essa ocorrência foi tão relevante que, em várias regiões, a designação de português já valia para que se subentendesse tratar-se de cristão-novo ou de judeu: português tornou-se em regiões da América hispânica sinônimo de judeu. Na época, a lei espanhola não permitia a presenca judaica nas regiões coloniais; estes eram designados como portugueses.
O estudo das causas desse fenômeno precisaria ser conduzido de forma diferenciada.
Dado o significado da colonia portuguesa judaica de Amsterdam, por exemplo, constituída sobretudo por descendentes de fugitivos e exilados das perseguições na Península Ibérica de fins do século XV e do século XVI, pode-se compreender que, sob a nova situação política criada à época da União Pessoal, a presença judaica haja aumentado na esfera colonial portuguesa que passou a ser alvo dos Países Baixos, tal como o Nordeste do Brasil.
Tudo indica tratar-se de uma expansão de rêdes de contatos já existentes nas costas africanas marcadas pelos portugueses sob as novas condições de passagem à esfera espanhola sob a situação da União Pessoal.
A rêde comercial de judeus estabelecia elos entre Cartagena e o Panamá, entre a região mineira de Zaragoza em Antioquia e Bogotá, ligava Cali, Popayan a Quito e Lima. O comércio dos portugueses entre Lima e Popayán-Cali formava um triângulo que incluia o Panamá.
A ação de judeus portugueses foi marcante no comércio europeu-africano a partir do século XV e a presença de exilados e cristãos-novos decisiva em várias regiões da Costa Ocidental da África.
Com os novos mercados abertos pela maior possibilidade de transpasse de fronteiras entre as esferas coloniais ibéricas na América, compreende-se a extensão de rêdes comerciais e de tráfico luso-africanas à América hispânica.
Não se pode deixar de considerar, porém, o relacionamento possibilitado pela língua e pela religião dos judeus portugueses e cristãos novos de ambas os contextos, aquele integrado na esfera protestante dos Países Baixos e aqueles das regiões lusas da África.
Supõe-se ter havido uma mistura de judeus conversos obrigatoriamente, os anusim, e os judeus sefarditas de Amsterdam, Marrocos e da Turquia.
O português como sinônimo de cristão-novo tornou-se, assim um veículo mediador no campo de tensões internacionais, deslocando-se entre as esferas de influência política. Era alvo tanto de desconfiança e temores pela labilidade de sua situação religiosa, questão de tanta importância para a identidade ibérica, como por contatos com esferas de países reformados da Europa.
Relacionavam-se portanto com um duplo perigo: o da recaída no judaísmo de conversos e o da expansão do protestantismo em nações católicas. Os judeus aprisionados pela Inquisição eram identificados como portugueses, e não havia português aprisionado que não fosse considerado como sendo judeu.
A presença da língua e da cultura portuguesas nas regiões vizinhas ao Brasil insere-se assim em complexos histórico-culturais altamente problemáticos dessa época, relacionados, entre outros, com o comércio de escravos e com a Inquisição.
Essas relações já foram tratadas em eventos da Academia Brasil-Europa realizados em universidades européias e no Caribe. Em particular a Sinagoga e o Museu de Curaçao foram objetos de particular atenção. Relatos desses trabalhos o leitor poderá encontrar em números anteriores desta revista.
Para o tratamento da outra face dessa problemática realizou-se, em dezembro de 2008, uma visita ao principal centro da ação inquisitória - e da atividade de judeus portugueses nas Américas, à Cartagena de las Indias.
De 1580 a 1635, judeus desempenharam um importante papel no comércio de Cartagena. Entre 1635 e 1645, vários deles foram aprisionados por práticas de judaismo, desaparecendo a comunidade judaica da vida pública.
Entre os nomes portugueses mencionados nos estudos específicos, poder-se-ia citar um Domingo de Sosa (Souza), aprisionado em 1650. Os judeus que permaneceram na Colombia após 1650 passaram a ser conhecidos como cripto-judeus.
Principal monumento historico da Inquisição no Novo Mundo, o edifício da Inquisição em Cartagena das Índias, que hoje abriga um museu, é um dos mais expressivos exemplos da arquitetura colonial da cidade e da América Latina em geral.
O material ali exposto poderia ser discutido sob diferentes pontos de vista, todos eles de interesse direto ou indireto para os estudos brasileiros. No prédio encontram-se instalados o Museu Historico, o Arquivo Histórico municipal e a Academia de História. A atenção dos visitantes do Museu da Inquisição de Cartagena é sobretudo dirigida para as técnicas e os aparelhos de tortura ali expostos, entre eles o potro e o cordel, e aos Atos de Fé. Pela fogueira, foram condenados a morrer cinco pessoas nos séculos de atividades da Inquisição.
O Tribunal de Penas do Santo Ofício em Cartagena foi instituído por Felipe III, em 1610. Ali funcionou até o dia 11 de novembro de 1811, sendo reestabelecido temporariamente de 1816 a 1821. A ação da Inquisição em Cartagena prende-se assim à história colonial e a sua abolição com a história da emancipação nacional da Colombia. O primeiro ato do Tribunal, em Cartagena, é datado ao redor de 1614. Foi voltado contra delitos tais como bruxaria e bigamia, ou seja, práticas não de protestantes, que se definiam pela severidade de costumes, mas sim de criollos e de cristãos novos.
Dando continuidade à tradição ibérica, o tribunal nas Américas representava sobretudo uma polícia de costumes, procurando reprimir abusos e práticas heterodoxas, em geral de caráter místico e mágico, além de impedir um retorno do islamismo e do judaísmo ao mundo ibérico. Mais tarde, a principal tarefa seria a de combater heresias reformistas.
Estudos da Inquisição em contextos euro-latinoamericanos
Constata-se, nas últimas décadas, um crescente interesse pelo papel desempenhado pela Inquisição na história. Vários estudos são dedicados ao seu vir-a-ser na História da Igreja e do Ocidente, e às características que tomou nas diversas nações européias, a seus métodos e às consequências de sua ação. Salienta-se porém sempre as dificuldades para estudos abrangentes e pormenorizados devido à situação das fontes.
Os documentos relativos à Inquisição no início da época colonial eram, em princípio, conservados en arquivos diocesanos. A organização da Inquisição espanhola, a partir de meados do século XVI, possuiu quarteis centrais em Madrid e tribunais em várias cidades da Espanha e no Novo Mundo.
Instalaram-se três tribunais: um na cidade do México com jurisdição sobre a região norte do continente e para o Panamá e Filipinas. Outro tribunal foi estabelecido em Lima, no Peru, para a maior parte da América do Sul. O terceiro, em Cartagena, servia à manutenção da pureza dos costumes e das concepções em Nueva Granada, na costa norte da América do Sul e para o Caribe. Sob a jurisdição de Cartagena encontravam-se as arquidioceses de Santa Fe e de Santo Domingo, assim como as dioceses de Cartagena, Panamá, Santa Marta, Popayán, Venezuela, Puerto Rico e Santiago de Cuba.
Dos estudiosos que se dedicaram a essa reconstrução histórica cumpre salientar Fermina Álvares Alonso, autora de trabalho apresentado à Universidad Complutense de Madrid, e que dirige a atenção ao papel da Inquisição no combate aos herejes (Herejes ante la Inquisición de Cartagena de Indias).
Ela inicia o seu estudo lembrando que, na mentalidade do século XVI, o termo heresia designava êrro no entendimento, com pertinácia na vontade, contrário à verdade da fé católica. Salienta que a época da implantação da Inquisição nas América coincidiu com a da expansão da reforma protestante na Europa e suas tentativas de difusão no Novo Mundo. Também em Cartagena, tudo indica que a atenção dos inquisidores dirigia-se de forma especial a impedimento da difusão de idéias e concepções de movimentos protestantes.
Piratas, corsários flibusteiros e outros, sobretudo inglêses, foram alvo de denúncias e condenações por motivo de suas orientações confissionais. Além de condenados ingleses, os documentos inquisitórios registram holandeses, franceses e alemães, além de, em menor número de acusados da Espanha e de Portugal. A maior parte dos condenados era constituída por gente do mar: marinheiros, pescadores, artesãos de navios e piratas; uma parte menor era representada por outras profissões, soldados, cirurgiões e músicos, entre outros.
Em análises de 1500 causas julgadas pelo Santo Ofício na América, José Toribio Medina permite porém que se perceba a preocupação especial dos inquisidores pelo retorno de cristãos novos ao judaísmo. Nada menos de 243 acusações diziam respeito à judaização, número suplantado apenas por aquelas relativas à conduta (298 por bigamia e 40 por „aberrações sexuais“).
Que o perigo de retorno ao islamismo era menor nas Américas do que na Espanha é compreensível (apenas 5 casos de moriscos). Seguindo-se às acusações de judaização, vinham, em número, aquelas de bruxaria (172). As de heresia, blasfêmia e protestantização perfaziam respectivamente 140, 97 e 65 casos.
Os estudos da Inquisição têm sido desenvolvidos sobretudo sob perspectivas historiográficas. Entretanto, a consideração de novos aportes provenientes de enfoques teórico-culturais poderiam abrir novas perspectivas.
Para o pesquisador empírico da cultura e interessado em ciências comparadas da religião, o Museu de Cartagena surge como de particular significado sobretudo pela exposição que oferece sobre o combate à feitiçaria desenvolvido pela Inquisição.
Em quadros ilustrativos, expõe-se ali os questionários aplicados aos acusados (ou melhor, sobretudo às acusadas). Tratam-se, entre outras, de questões relativas a pormenores nas relações com espíritos malignos, incluindo perguntas referentes a danças praticadas, à música, a alimentos e a experiências físicas, a orações não codificadas, por exemplo contra mal-olhado e quebranto.
O estudioso cultural do Brasil e de Portugal reconhecem, nesses questionários e nos textos ali expostos práticas e concepções da tradição religiosa popular portuguesa, também vigentes no Brasil e já registradas em vários estudos de folcloristas.
Muitas dessas práticas foram errôneamente vistas como de origem africana, trata-se, porém inquestionavelmente de tradições religioso-culturais ibéricas, de práticas de uma esfera religioso-cultural por assim dizer submersa.
O Museu de Cartagena e os estudos da Inquisição mostram assim a necessidade de uma nova distribuição de pesos nos estudos de práticas e concepções religiosas nos estudos latino-americanos.
A atenção necessitaria ser dirigida de forma mais sistemática aos substratos europeus do universo religioso heterodoxo e sobretudo ao papel desempenhado pelos cristãos novos na sua situação extremamente instável de identidade cultural e diferenciadora no avassalador processo aglutinador de estabelecimento e manutenção da unidade religiosa.
Cartagena foi um dos grandes centros da heterodoxia religiosa das Américas. Entretanto, sob a perspectiva dos estudos euro-brasileiros, em particular na sua inserção no complexo das relações Atlântico/Pacífico, é sobretudo o elo que une a Inquisição com os portugueses cristãos-novos e judeus a perspectiva mais prometedora para um trabalho em comum.
A cooperação entre estudiosos brasileiros, portugueses e colombianos poderia ser particularmente produtiva na elucidação de problemas ainda não solucionados satisfatoriamente. Brasileiros e portugueses conhecem, da própria cultura orações, fórmulas e práticas de benzedura que foram acusadas de atos de feitiçaria pelo tribunal de Cartagena.
Em Lima, sobretudo, com jurisdição sobre o Chile e Buenos Aires, procedeu-se contra portugueses acusados de judaísmo. Morreram assim queimados Maldonado Silva, médico de Concepción (Chile), executado na fogueira a 23 de janeiro de 1639, e a mesma sorte teve Manuel Batista Pérez.
Da cultura judaica na Colombia, sabe-se que alguns haviam estudado em Tessalonica e outros centros europeus, mantendo práticas e tradições.
Na década de vinte do século XVII, celebrava-se Minyan na casa de Blas de Paz Pinto. Este possuía a bíblia e uma versão do Siddur, textos ilegais nos territórios coloniais. Uma prova de tendência judaizante para a Inquisição era a reza de salmos sem o Gloria Patri.
É a tradição oral, porém, que sobretudo abre caminhos e novas perspectivas para os estudios culturais. Os registros indicam que alguns portugueses observavam o sábado como dia de guarda, além de prescrições alimentares judaicas. Festejavam Purim e a celeberação de Esther.
Dentre as festas populares, registra-se a celebração de festas judaicas na Colombia, tais como a Fiesta de las candelillas e a Pascua de las Cabañuelas. Para a análise de expressões tradicionais de dança e música até hoje praticadas na Colombia tais indicações oferecem novos infoques interpretativos.
Parte-se do pressuposto de que também escravos ter-se-iam convertido ou estavam influenciados pelo judaismo. A influência judaico-portuguesa procedeu-se também através da miscigenação. Dentre os judeus portugueses, as pesquisas teem demonstrado que se casavam também com mestiças, tais como um Manuel Antonio Paz, ou com mulatas, tais como um Luis Franco.
A.A.Bispo
Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização de Estudos de Processos Culturais em Relações Internacionais - Academia Brasil-Europa (A.B.E.) - e do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (Institut für Studien der Musikkultur des portugiesischen Sprachraumes, I.S.M.P.S. e.V.), visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens: http://www.brasil-europa.eu
A A.B.E. é entidade exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias. É, na sua orientação teórico-cultural, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. A Organização de Estudos de Processos Culturais remonta a entidade fundada e registrada em 1968 (Nova Difusão). A A.B.E. insere-se em tradição derivada de academia fundada em Salzburg pelos seus mentores, em 1919, sobre a qual procura sempre refletir.