Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Mindelo. Centro Nacional de Artesanato e Design
Fotos A.A.Bispo.
©Arquivo A.B.E.








 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 142/2 (2013:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Universidade de Colonia
Dr. H. Hülskath (Dir. Adm.) e Conselho Científico

Organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa  -
e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2013 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2973




O estudo do Folclore e a recepção da literatura brasileira em Cabo Verde
Necessidade de cooperações recíprocas
na renovação de concepções e interpretações

Em sequência a encontro na Embaixada da República de Cabo Verde em Berlim
Na passagem dos 25 anos do primeiro da série de eventos euro-brasileiros do I.S.M.P.S. e da A.B.E. pelos 500 anos de Descobrimentos portugueses
Centro Nacional de Artesanato e Design, Mindelo

 
Em encontro realizado na Embaixada do Cabo Verde em Berlim, em 2005, manifestou-se o desejo, por parte do I.S.M.P.S. e da A.B.E., de uma intensificação de intercâmbios e cooperações entre os pesquisadores e as instituições euro-brasileiras com aqueles do Cabo Verde. (Veja http://revista.brasil-europa.eu/142/Cabo-Verde-Brasil.html )

Esse desideratum nasceu da convicção, já há muito existente, de que apenas uma colaboração em reciprocidade pode contribuir ao desenvolvimento adequado dos conhecimentos em geral e de iniciativas científico-culturais como vem sendo propugnadas pela organização de estudos de processos culturais em relações internacionais (ND 1968).

Nascida no Brasil da preocupação pela renovação das disciplinas culturais através de um direcionamento da atenção a processos, não a postuladas esferas da cultura - erudita, folclórica, popular -, as reflexões necessariamente referiram-se de forma privilegiada à área do Folclore.

Essa disciplina era então marcada por intensos debates quanto a escopo, redefinições da própria área de estudos e seus métodos, levando a diferentes propostas quando à determinação do "fato folclórico", uma situação que se prolongou pelas décadas seguintes em correspondência a similares desenvolvimentos em âmbito internacional.

A crise da área disciplinar, manifestada em redenominações e identificações nem sempre justificáveis como "Etnologia Européia", que mais colocam problemas do que os resolvem, demonstram que problemas teóricos de base ainda se mantém vigentes.

Uma reorientação da atenção a processos assumiu particular significado em época de sensibilidade aguçada pelo movimento de-colonizador no mundo português, quando tomou-se consciência da necessidade de atualização de perspectivas e questionamentos perante as transformações que então ocorriam.

O compositor português Jorge Peixinho (1940-1995), em conferência realizada na Casa de Portugal, em São Paulo, salientou essa exigência de renovação de perspectivas para os países lusófonos, lembrando que os estudos de Folclore e Etnografia por demais demonstravam vínculos com correntes do pensamento nacionalista do Brasil e com da política colonial do estado autoritário português.

Concepções de Folclore nos seus elos com a política colonial do passado

A passagem dos 40 anos da Primeira Exposição Colonial Portuguesa no Porto, em 1934, e que seguiu-se à Exposição Colonial Portuguesa de Paris, de 1931, levou a uma leitura atenta de conferência do escritor e representante caboverdiano Fausto Castilho Duarte (1903-1953), que surgiu como texto apropriado para a discussão de uma política cultural marcada pelo conceito de assimilação. 

O interesse por expressões então consideradas como etnográficas ou folclóricas de música e dança pelo autor de Auá-Novela negra (1934) - que inclui singularmente não apenas expressões em Fula, mas também em alemão (!) - , encontra elucidações nas reflexões mais sistematicamente expostas de sua conferência na Exposição de 1934. (Da Literatura Colonial e da 'morna' de Cabo Verde. Edições da 1a Exposição Colonial Portuguesa, 1934, Separata).

Nessa sua conferência, o autor esboça uma compreensão do desenvolvimento músico-cultural e do folclore do arquipélago caracterizado por uma gradual superação de resíduos de uma cultura ancestral africana sob a influência corretiva do Catolicismo e que levara à morna como expressão de uma feição típica do Arquipélago e que surgia então como principal agente da Propaganda naquela época do Estado Novo.

"Paulatinamente o folclore das ilhas lendárias foi-se libertando do influxo que a primitiva ascendência deixara impressa na alma do nativo.

A religião corriu os costumes e o novo dialecto - miscelânea das línguas da Guiné com o português da época das descobertas - teve em cada ilha formas diversas, vocábulos típicos, modulações suaves e intonações que variam consoante o cunho da paisagem." (pág. 16)

"A feição típica do Arquipélago reside, pois, na 'morna' que destronou o 'tôrno' e a 'manilha', e no violão que fêz esquecer o 'cimbó' e o tambor das festas gentílicas." (pág. 17)

"Belo e original motivo de propaganda!
Porque foi pela música que certos povos se tornaram conhecidos, Cabo-Verde terá igualmente um valor marcado na vossa sensibilidade. (...)
Belo e original motivo de propaganda, repito."
(pág.18)

Não se pode afirmar, portanto, que Fausto Duarte não tenha considerados processos marcados por transformações culturais. Estes, porém, são tratados em função do que apresenta como um esfera final de compleição cultural denotadora de uma feição típica das ilhas, ou seja de uma esfera da cultura como categoria pré-estabelecida e a serviço de fins político-culturais.

"O batuque apaga-se ante a modalidade da nova dança (= morna) onde não existe qualquer reminiscência da ancestralidade negra. O crioulo, povoando as ilhas, cria o folclore." (pág. 13)

Pedro Monteiro Cardoso (ca.1890-1942) e a introdução dos estudos de Folclore

Significativo impulso para as reflexões sôbre a história do Folclore e de suas concepções em Cabo Verde representou a reedição, pela Associação de Trabalhadores Caboverdianos - Solidaridade Caboverdiana - em França, do Folclore Caboverdiano de Pedro Monteiro Cardoso (ca. 1890-1942), editado no Porto, em 1933 (Pedro Cardoso, Folclore Caboverdiano, Edição da Solidariedade Caboverdiana Paris, Lisboa: Safil, 1983). No prefácio de J. B. Amâncio Gracias,

O autor realizou observações e colheitas acerca do Folclore poético e musical de Cabo Verde nas ilhas de Fogo, Santiago e Brava, referindo-se às outras apenas com base em informações obtidas.

"O estudo do nosso 'Folclore' implica conhecimento perfeito do dialecto e, conseqüentemente, convivência de espaço e íntima com o povo, assistindo às suas festas, jogos e trabalhos, suas lendas e superstições." (pág, 18)

Um de seus informantes no seu empenho de estudar o folclore musical nas suas estreitas relações com o idioma e a poesia em crioulo foi um violeiro de sua terra, a cujo acompanhamento as "cantadeiras" cantavam ao desafio, em quadras, sendo por isso utilizado o termo "codrâ" (quadrar) para o português "trovar".(pág. 19)

Pedro Monteiro Cardoso, autor que recebeu a sua formação no Seminário São Nicolau, surge nas suas próprias palavras como iniciador da área de estudos no Cabo Verde. Após tratar - como em geral na literatura da matéria - da origem inglêsa do termo remontante a W. J. Thoms (1846), o considera como "parte integrante da ciência etnográfica", desde que a sistematização dos conhecimentos até então alcançados no Cabo Verde autorizassem tal designação.

Sôbre a matéria nada há ainda feito, nada escrito com método e seriedade.
Uma ou outra notícia, de vez em quando estampada em almanaques e jornais, tendo por tema o insólito de certas usanças e costumeiras, envolve quàse sempre o propósito de ridicularizar a 'selvagidade' indígena."
(pág. 18)

No prefácio, J.B. Amâncio Gracias, salientando o pioneirismo na área do autor, considera o significado da pesquisa antropológica:

"Cabo Verde presta-se a grandes estudos.
A sua história, pròpriamente dita, está mais ou menos feita, mas, quanto à sua etnografia, nos seus diversos aspectos e modalidades, pouco ou nada vejo escrito.
E, no entretanto, a história hoje adquire mais valor, fixa-se melhor, quando as ciências antropológicas a iluminam com os lampejos das suas investigações acêrca da raça, dos usos e costumes, lendas, mitos, superstições, cantares e folclore dos paises a que respeita.
Muitos factos históricos, que às vezes nos parecem inexplicáveis, têm a sua origem nos caracteres étnicos, nos fenómenos sociais do respectivo povo."
(s/pág.)

Como essas palavras indicam, a pesquisa "da raça", dos caracteres étnicos e do folclore teria a função de trazer luz a questões de origens de fatos históricos, ou seja, uma esfera da cultura definida como folclórica surge como diretriz na consideração historiográfica. Quase que como exemplificando a ambivalência de relações entre os estudos de fontes e os empíricos, a consideração do Folclore Caboverdiano é aberta com um introdutório dedicado ao Descobrimento do arquipélago.

Assim como também no Brasil muitos autores fizeram questão de distinguir o objeto de estudo do Folclore daquele da cultura indígena, este visto antes como objeto da Etnologia, também Pedro Monteiro Cardoso trata de resíduos africanos no Folclore caboverdiano e que era compreendido como português nos seus fundamentos.

"No Folclore caboverdiano deparam-se, é certo, reminiscências de crenças e ritos gentílicos, notoriamente na ilha de Santiago (batuque, tabanca, etc.), onde predomina ainda o elemento etiope sem mescla.
Em geral, porém, transunto do nosso modo de ser psico-social, nêle palpita o vivido, continuo e preponderante, em tôdas as modalidades de sua expressão, o fundo tradicional português (...)."

A música crioula não se resume na 'morna' sòmente, nem esta provém de outra origem que não a do povo que a criou e à sua langorosa cadência se embala, ama e trabalha.
A melopeia com que a raça cativa amenizava as agruras do exílio forçado, e a trova em que emigrados e embarcadiços cantavam a saudade da Pátria distante, contaminando-se e fundindo-se, produziram a 'morna', que em ritmo polariza a Alma Caboverdena."
(pág. 19)

Nesse primeiro livro de Folclore Caboverdiano, é digno de atenção o fato do seu autor ter dedicado um capítulo especial às relações entre o Cabo-Verde e Brasil (pág.33 ss.)

Por razões da similaridades da fala, "como das raças, de cuja mestiçagem saiu o povo irmão de Além-Atlântico", e porque também algumas das quadras em crioulo estudada são traduções ou adaptações de outras brasileiraos, o autor não podia "passar adiante sem especial referência ao riquissimo folclore da grande República Sul-Americana, já suficientemente estudado e recolhido por altas competências filológicas e literárias, desde Melo de Morais e Silvio Romero e Afrânio Peixoto e João Ribeiro." (págs. 33-34)

"A etnografia brasileira caracteriza-se por modalidades várias conforme os grupos em que se subdividem as populações: praieiros, matutos e sertanejos. Assim, de Norte a Sul, os divertimentos populares: o baião e as emboladas, os reizados e cateretês, os sambas e chibas, etc.

Em Cabo Verde há-os também característicos, e todos se prendem originàriamente às festividades religiosas, sendo tradicionais em Santo Antão as romarias por S. João e S. Pedro, estrondeantes de zabumbas; em S. Nicolau, as longas e intermináveis procissões, precedidas de missas solenes; no Fogo, os reinados com os seus têrços cantados, e a s bandeiras com os seus pilões, canizade e cavalhadas, tudo ao ritmo do imprescindível tambor; e em Santiago, cuja população campesina se encontra menos evoluída, os batuques escaldantes de sensualidade e as tabancas com os seus reis e rainhas, suas superstições e cabalas.

Seja nos sambas e cateretês dos praieiros, ou nos feitiços e abusões dos curndeiros caribocas; seja nos bailes dos sampalhudos e batuques dos vadios, ou nas rezas e mezinhas dos jacobosos, há flagrantes vestígios comuns ás duas raças que, fundidas ao fogo do Equador, estatuaram em bronze o tipo mestiço daqui e de Além-Atlântico, cuja unidade etno-fisiológica, porém, levará ainda séculos para se realizar na integração completa e equilibrada dos elementos constitutivos." (38-41)

A recepção de interpretações de expressões culturais através da literatura

A republicação da revista Claridade pelo seu quinquagésimo aniversário de lançamento, em 1986, contribuiu decisivamente para o desenvolvimento das reflexões euro-brasileiras voltadas à consideração da história do pensamento voltado a questões culturais em Cabo Verde.

Sob o título "O fulgor e a esperança de uma nova idade", Manuel Ferreira, Universidade de Bristol, diretor da "Colecção para a História das Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa", apresenta em forma de Prefácio um texto de fundamental significado para o desenvolvimento das reflexões teórico-culturais. No início das suas explanações, descreve como, em 1942, tomou conhecimento, em Mindelo, de números de uma revista que surgiam como modêlo daquilo que ainda não vira em Portugal:

"(....)o social, o concreto como ponto de partida para um projecto literário e cultural nacional".

Mais tarde, foram vezes sem conto que a citámos e não poucas as que a abordámos e comentámos; cada vez mais seduzidos pelo fenómeno caboverdiano, esforçámo-nos por aduzir elementos e argumentos que fundamentassem e justificassem o aparecimento dessa insólita publicação". (op.cit. XIX)

Essa fascinação pela lucidez e nível intelectual do movimento intelectual caboverdiano que se manifesta em Claridade levou a que Manuel Ferreira desse ênfase de início a razões históricas e sociais e a fatores ideológicos da passagem da década de 20 à de 30, reconhecendo, agora nos anos 80, ser necessário ampliar os dados contextuais que explicam tal fenômeno.

Tinha-se feito um esforço para acentuar a importância do contexto sociopolítico, entre êles da recepção da revista portuguesa Presença, de obras do modernismo brasileiro, à influência de escritores portugueses vinculados a modernas correntes literárias no Arquipélago, mas a tendência teria sido sempre "a de se concluir que o aparecimento da Claridade obedeceu a uma espécie de acto explosivo, quase incontrolado, ao sopro de forças desgarradas, sem vinculação precisa com o passado literário longínquo ou próximo." (op.cit. XX)

Nesse sentido, Manuel Ferreira tinha o propósito de contrariar uma idéia geral que se teria construído, concentrando-se, por um lado, na tradição literária caboverdiana e, por outro, nos sinais de mudança antecessores à publicação de Claridade.

Nesse intento, distingue elementos exógenes e elementos endógenos.

Os primeiros, seriam a presença de escritores portugueses, a mencionada revista Presença, a moderna literatura brasileira de sua segunda fase. Os segundos, seriam a tradição literária e cultural caboverdianas, personificadas sobretudo em José Lopes, Pedro Cardoso e Eugénio Tavares, uma espécie de contradiscurso público ao redor de 1929 e um discurso oculto que se desenvolveu no círculo daqueles que fundariam a revista.

Nesse procedimento de Manuel Ferreira, a recepção do pensamento brasileiro é vista como fator exógeno. Para além de influxos vindos de Portugal, aqueles vindos da literatura brasileira teriam sido decisivos. Essa influência teria sido notória desde o príncipio do século, havendo constantes referências em obras literárias e na imprensa. José Lopes, por ex., dedicou obras ao Brasil e a intelectuais brasileiros.

Escritores brasileiros do século XIX encontram-se presentes em textos desse autor e de Pedro Cardoso, sendo que este último teria desconhecido ou propositadamente esquecido o Movimento Modernista de 1922. A influência brasileira não teria sempre vindo diretamente do Brasil para o arquipélago, mas em geral através de Portugal, criando-se um triângulo Brasil-Portugal-Cabo Verde. (op.cit. XXIX)

Tratando do modernismo, Manuel Ferreira cita Baltasar Lopes (1907-1989), que, em 1956, relembra que, na época, êle e companheiros começaram a pensar no problema de Cabo Verde, preocupados sobretudo com a questão da formação social das ilhas, com o estudo das raízes de Cabo Verde"

Para isso, precisaram procurar apoio e direções metodológicas e de investigação através de obras de outras latitudes, e aqui a literatura brasileira desempenhou papel de importância através de um sistema de empréstimo de livros. Livros de José Lins do Rego (1901-1957), Jorge Amado (1912-2001), Marques Rebelo (1907-1973) e outros foram estudados e, no caso da "Evocação do Recife" de Manuel Bandeira (1886-1968), até mesmo aplicado com as suas figuras em situações caboverdianas conhecidas pelo autor.

Como Manuel Ferreira argumenta, essa visão das decorrências de Baltasar Lopes, acentuando a intenção programática da época no estudo da realidade caboverdiana com vista ao melhoramente econômico e social, pode ser mais diferenciada com o depoimento de Manuel Lopes.

Este acentua antes a influência modernista da revista Presença, cujo esforço renovador trouxe "uma baforada de ar do largo à apagada e vil tristeza", um fator antes formal, estético, em esforço de integração européia, seguindo-se então a ela a influência do modernismo e do neo-realismo brasileiros, como expressão definitiva da nacionalização literária brasileira, de identificação com o meio físico e social, "evocando o homem brasileiro e os problemas sociais do Brasil, mas sempre humanos e universais nos sus propósitos revolucionários". (op.cit. XXXI)

Manuel Ferreira menciona também Jorge Barbosa (1902-1971), que acentuou, em 1953, o fato da obra de escritores brasileiros que se voltaram à terra e ao povo ter "contagiado" com novo entusiasmo o pensamento caboverdiano. (loc.cit.)

Para Manuel Ferreira, se esses três fundadores da revista aceitam a importância catalisadora da literatura brasileira, nenhum deles teria dado a essa influência a conotação de dependência ou subserviência, diferenciando-se entre o que é uma força estimulante e despertador de uma força dirigista (loc. cit.). Assim, Manuel Ferreira defende que a presença da literatura brasileira insere-se naquilo que se tornou corrente denominar de intertextualidade. (pág. XXXII)

A questão da influência brasileira no pensamento caboverdiano é tratada também por Manuel Ferreira no ítem dedicado aos "elementos endógenos" sob a expressão "O mito brasileiro". Lembra que tanto José Lopes como Pedro Cardoso "cultuam - e de que maneira! - o mito do Brasil. O Brasil enquanto modelo de virtudes várias, pátria dos grandes valores culturais, lugar onde se forjou uma nova fisionomia humana e social". (op.cit. XXXVII)

A imagem do Brasil seria, porém, diferente nesses autores. A de José Lopes seria antes teórica, vendo no Brasil "o espaço da geografia literária da língua e não da ideologia", em Pedro Cardoso seria antes prática, refletida, como "espaço da fraternidade cultural e literária, a geografia da língua, sim, mas também a da cultura e da ideologia, ponto de ruptura na unidade imperial e, daí, paradigma histórico e político". (op.cit. XXXVIII)

Problemas do tratamento de expressões culturais sob o signo da literatura - o exemplo das "Bandeiras"

Uma das expressões culturais do Cabo Verde mencionadas na revista Claridade que primeiramente trouxeram à consciência dos pesquisadores culturais de contextos euro-brasileiros a necessidade de reflexões sobre os problemas derivados de interpretações de expressões culturais a partir de perspectivas literárias em recepção brasileira foi o texto relativo às Bandeiras de Felix Monteiro (1909-2002) ("Bandeiras da Ilha do Fogo: Senhores e Escravos divertem-se“, publicado em Claridade N°8 (S. Vicente, maio de 1958, página 9-22).

Nesse termo e nas menções das práticas correspondentes, folcloristas do Brasil reconheceram no texto de Félix Monteiro de imediato similaridades com expressões tradicionais vigentes no Brasil, levantando primeiramente questões quanto a caminhos e sentidos que possam explicar relações.

O termo "Bandeiras“, no plural, é empregado na literatura caboverdiana para designar o conjunto de práticas devocionais e lúdicas relacionadas com o culto dos santos festejados no mês de junho, mais especialmente São João Batista (dia 24) e São Pedro (São Pedro e São Paulo, dia 29).

Também em outras regiões do mundo de língua portuguesa, em particular no Brasil, o termo Bandeira surge como denominação de forma abrangente de grupos que, indo de casa em casa, e percorrendo às vezes vastas regiões rurais, cantando e tocando instrumentos, angariam fundos para as festas religiosas respectivas.

Em geral, esses grupos, também denominados de Companhias, levam um estandarte com a representação do Espírito Santo ou a do santo comemorado.

Nessas práticas, significativamente realizadas sobretudo após o período da Páscoa, em particular na época de Pentecostes, assume particular relevância a adoração ao Espírito Santo. Sem a consideração da importância fundamental das concepções relacionadas com a Trindade não é possível compreender o sentido dessas tradições.

O termo Bandeira designa também no sentido genérico o mastro levantado defronte a casas, igrejas e capelas e que apresenta, no seu topo, uma bandeira com a imagem do santo festejado. No Brasil, emprega-se o plural "Bandeiras“ sobretudo para a designação da prática deambulatória dos bandos peditórios, das "Companhias“ já citadas.

No Cabo Verde, porém, denomina-se com o plural "Bandeiras“ também todo o conjunto de práticas religiosas e lúdicas no âmbito das festas de santos comemorados, incluindo não apenas a preparação do mastro, o seu transporte e levantamento, como também a realização de cavalhadas e outros folguedos sobretudo na véspera e no próprio dia de festa, quando então se celebra a missa. O termo assume, assim, um sentido muito mais amplo e indica o extraordinário valor simbólico que deve ser dado ao próprio mastro.

Práticas subsumidas sob esse termo no Brasil haviam sido discutidas sob a perspectiva de processos de recepção cultural no contexto de um primeiro empreendimento de cooperação intelectual euro-brasileira na década de 70 e na sessão levada a efeito no Museu de Folclore da Associação Brasileira de Folclore em colaboração com a Universidade de Berlim do simpósio internacional que se seguiu em São Paulo, em 1981.

As reflexões foram retomadas sob outras perspectivas, com base em fontes documentais então levantadas, no colóquio internacional que reuniu folcloristas e representantes de instituições culturais do Brasil e de Portugal na Alemanha, em 1989. Um dos objetivos desse colóquio foi o de considerar no tratamento de expressões culturais subsumidas sob o termo Folclore a situação e da perspectiva de migrantes portugueses, caboverdianos, brasileiros e de outras regiões do mundo de língua portuguesa residentes em diferentes países europeus e que, no estrangeiro, inseridos em processos de transformação cultural, passam a valorizar e a desejar melhor conhecer a sua própria cultura, necessitando, porém, para isso, refletir sôbre os próprios pressupostos e inserções culturais dos autores da literatura dos diferentes contextos de origem.

A comparação da tradição caboverdiana com as práticas portuguesas e brasileiras relativas ao mastro é de particular importância, pois estudiosos da cultura do Cabo Verde, baseando-se muitas vezes em trabalhos de pesquisadores brasileiros, parecem ter também chegado a interpretações questionáveis. Perante práticas aparentemente inexplicáveis segundo conhecimentos convencionais a respeito da religião do presente, alguns pesquisadores, não considerando mecanismos intrínsecos de representações que ocorrem segundo princípios da mística ou da antiga hermenêutica, tratam de forma inadequada o que lhes surge como sobrevivência de antigas concepções e ritos africanos amalgamados com práticas européias.

Como tratado no decorrer dos trabalhos realizados pelo "Ano Bartolomeu Dias", as colocações relativas à Bandeira de Félix Monteiro não indicam a consideração adequada da introdução de práticas e expressões culturais cristãs-ocidentais da Idade Média no mundo extra-europeu, o sentido da linguagem visual de suas manifestações e os mecanismos intrínsecos que permitem a sua adaptação e transformação em diferentes contextos.

Para Félix Monteiro, o programa das Bandeiras deixaria entrever uma parte impregnada por festividades de origem gentílica, introduzidas pelos antigos escravos, e uma festa castiça propriamente dita, que começa na véspera do dia consagrado ao santo festejado. A primeira parte seria a dos dias dos preparativos da festa. Seria caracterizada por uma certa improvisação, nascida na varanda da qual se apreciavam as apresentações africanas, os bailes após o "pilão“ e as danças dos canisades.

Félix Monteiro chegou - inspirado em autores brasileiros, em particular Arthur Ramos (1903-1949) - chegou à conclusão sob muitos aspectos questionável de que a cultura que mais se evidencia nas Bandeiras da Ilha do Fogo seria oriunda do Daomé, embora não pudesse afirmar que a população local fosse constituída exclusivamente ou mesmo predominantemente formada por descendentes de daomeanos.

A partir dessa convicção, Félix Monteiro desenvolveu uma hipótese de explicação dos fatos de amplas conseqüências. Para ele, no concernente às Bandeiras, teria sido o acolhimento favorável, o interesse dos brancos pelas danças e cânticos dos negros, apreciados como divertimentos, que teria estimulado a preservação de fatos exóticos integrados hibridamente no contexto da festa de origem européia. Com a diluição gradativa das culturas africanas, ter-se-iam apagado também os últimos vestígios da cultura de origem do Daomé, não fora a integração dos elementos no conjunto programático das Bandeiras.

O recém-inaugurado Centro Nacional de Artesanato e Design em Mindelo

Devido aos estreitos elos entre o desenvolvimento do pensamento brasileiro e o caboverdiano, a revisão de hipóteses e modêlos interpretativos da literatura antropológico-cultural de décadas passadas - e que tendem a ser empregadas hoje ainda de forma pouco refletida - é uma tarefa que se impõe a estudiosos de ambos os países e que deveria ser realizada em cooperação intelectual recíproca. Essa tarefa não é apenas teórica, mas tem consequências para a prática cultural.

Em Cabo Verde constata-se uma sensibilidade aguçada para tendências atualizadoras nesse sentido, podendo-se ver no Centro Nacional de Artesanato e Design recém-inaugurado em Mindelo a principal expressão de intuitos de fomento do artesanato e, ao mesmo tempo, de criação de elos entre os artesãos, a sociedade e a economia do país.

À formação profissional de novos artesãos dedica-se o seu responsável, Manuel Fortes, licenciado em Artes Visuais e professor de Educação Artística.

O Centro procura promover um espírito de empreendedorismo de artesãos, para superem a sua dependência de patrocínios e subvenções. Concomitantemente, o Centro pretende ser uma instituição agregadora e dinâmica através da realização de exposições, simpósios, discussões e palestras. ("Estimular o empreendedorismo dos artesãos nacionais", Nós Genti 2, Cabo Verde, Praia: Palanca 2012, 122 ss.; "Albertino Silva, O associativismoe fundamental para o futuro do artesanato nacional", op.cit. 131 ss.)

O Centro encontra-se instalado em edifício histórico, a residência do Senador Augusto Vera-Cruz, construída ao redor de 1880, por êle cedido para o estabelecimento do primeiro liceu da Ilha de S. Vicente. Foi, posteriormente, ocupado pelo Clube Recreativo, a seguir denominado de Grémio do Mindelo. Na década de cinquenta do século XX, criou-se ali a Rádio Barlavento. Após a independência, ali funcionou a Rádio Voz de São Vicente e o edifício foi cedido ao Centro Nacional das Artes. Após um período sem atividades, o Centro foi reaberto como Museu de Arte Tradicional e, a seguir, redenominadoo como Casa do Senador. O atual centro insere-se, assim, em longa história de atividades voltadas à cultura e marcada por transformações quanto a concepções e orientações. ("A história da casa do Senador Vera-Cruz", op.cit. 128 ss.)


Ciclo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo

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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "O estudo do Folclore e a recepção da literatura brasileira em Cabo Verde. Necessidade de cooperações recíprocas na renovação de concepções e interpretações". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 142/2 (2013:2). http://revista.brasil-europa.eu/142/Folclore-Cabo-Verde-Brasil.html