Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

_________________________________________________________________________________________________________________________________


Índice da edição     Índice geral     Portal Brasil-Europa     Academia     Contato     Convite     Impressum     Editor     Estatística     Atualidades

_________________________________________________________________________________________________________________________________

Trollstigen. Foto A.A.Bispo 2012 ©

Trollstigen. Foto A.A.Bispo 2012 ©

Trollstigen. Foto A.A.Bispo 2012 ©

Trollstigen. Foto A.A.Bispo 2012 ©

Trollstigen. Foto A.A.Bispo 2012 ©

Trollstigen. Foto A.A.Bispo 2012 ©

Trollstigen. Foto A.A.Bispo 2012 ©

Trollstigen. Foto A.A.Bispo 2012 ©

Trollstigen. Foto A.A.Bispo 2012 ©

Trollstigen. Foto A.A.Bispo 2012 ©

Trollstigen. Foto A.A.Bispo 2012 ©

Fotos A.A.Bispo, Trollstiegen (2012) ©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 139/10 (2012:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N°2928




O Troll na Noruega e o Curupira/Caipora no Brasil

Do Folk-lore comparado à análise do edifício cultural e suas transformações
em enfoques transnacionais

 
Troll.Foto A.A.Bispo 2012 ©
O ciclo de estudos euro-brasileiros realizado na Noruega em 2012 teve como um de seus objetivos procurar elucidar concepções e imagens subjacentes a construções culturais nacionalistas, contribuindo à superação de situações obscuras e mesmo de movimentos obscurantistas em cumprimento à função esclarecedora que os Estudos Culturais devem cumprir.


Diferiu, assim, do ciclo anterior, dedicado primordialmente ao esclarecimento de situações obscuras e tendências obscurantistas de fundamentação religiosa. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Estudos-e-Esclarecimento.html)


O tratamento do tema sob a perspectiva das relações Brasil/Noruega justifica-se pelos estreitos elos entre o movimento nacional na cultura da Noruega do século XIX com aquele do Brasil, evidenciado sobretudo na vida e na obra de Alberto Nepomuceno (1864-1920). (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/139/Luzes-nordicas.html)


Sendo os esforços de criação de uma arte nacional fundamentados em expressões tradicionais da cultura popular, o movimento nacional do Romantismo que tanto marcou a história de ambos os país que conquistaram a sua independência no século XIX relacionou-se estreitamente com o desenvolvimento da própria pesquisa do Folk-lore.


Esse termo, que singularmente foi e ainda é em geral compreendido tanto como determinação do objeto de estudos como designativo do próprio ramo disciplinar, tem sido alvo de reflexões que marcam já há muito a discussão teórico-cultural. Já em fins da década de sessenta do século XX reconheceu-se, no Brasil, que uma atualização de disciplinas culturais como a do Folclore devia partir de uma superação de categorizações de esferas culturais através de um direcionamento da atenção a processos, uma orientação que marca hoje o desenvolvimento dos estudos euro-brasileiros.


Esse escopo pode ser exercitado na consideração relacionada de expressões afins da Noruega e do Brasil compreendidas como folclóricas, assim como o papel que hoje exercem na compreensão da própria cultura, na representação de ambas as nações e nas suas aplicações na educação no fomento do turismo.


Esses estudos relacionados de expressões culturais levam primeiramente a que estas sejam compreendidas nas suas inserções em processos histórico-culturais experimentados por ambas as nações nos seus paralelos e nas suas concomitâncias, merecendo o século XIX particular atenção.


A intensificação da consciência de uma cultura nacional através da valorização do passado medieval, da mitologia, do idioma e da tradição popular no século marcado pelo Romantismo e pelo movimento nacional levou à revitalização de expressões culturais, de danças, música e narrativas e de figuras de lendas e mitos que se manifestam ainda hoje singularmente presentes na Noruega.


A consideração relacionada desses desenvolvimentos históricos afins experimentados por ambas as nações representa apenas um ponto de partida para estudos voltados à análise de processos culturais. Uma leitura mais sensível de expressões tradicionais observadas no presente levantam questões que exigem a consideração de características internas do próprio edifício cultural, de estruturas na ordenação de imagens, de mecanismos intrínsecos a um sistema marcado por dinâmica e suas transformações no decorrer dos séculos, em particular naquele que levou à sua reconstrução romântica sob critérios nacionais.


Como se explicaria, caso contrário, que figuras que desempenham hoje função significativa para a identidade cultural, para a imagem do país, para a sua representação, em textos infantís e escolares e mesmo na recepção de estrangeiros surjam como objetos de sorrisos, de brinquedo, de gracejos e, ao mesmo tempo, manifestem conteúdos assustadores e aterrorizantes?


A desativação desses sentidos negativos através da distância possibilitada pelo riso apenas pode ser entendida a partir de mecanismos intrínsecos ao próprio edifício cultural no qual tradicionalmente se inseriram.


Tendo sido as expressões tradicionais reordenadas sob novos princípios no século XIX, levantam-se questões que dizem respeito não apenas às transformações internas do sistema de imagens como também relativamente à presença do grotesco no complexo cultural compreendido como nacional e que representa êle próprio um fenômeno altamente singular, apenas não percebido como tal devido à própria inserção do observador no seu contexto, ou seja, à sua pouca distância relativamente ao objeto de estudo.


Este deve colocar-se em posição de perguntar como é que podem nações que se dedicam com tanta seriedade à valorização de sua consciência cultural fazer-se representar por expressões gracejantes, hilariantes ou grotescas se estas não forem percebidas, ainda que subconscientemente, como expressões de mecanismos de alta seriedade no edifício cultural.


Troll.Foto A.A.Bispo 2012 ©
O exemplo do Troll, Tröll ou Trold


Para o exercício dessas análises culturais oferece-se de forma exemplar o Troll (Tröll, Trold), uma figura vista como expressão de Folk-lore que, embora presente na Islândia, na Dinamarca, na Suécia e conhecida em outros países europeus, pode ser encontrada com particular frequência na Noruega.


Em bonecos de diferentes tamanhos e formas, vendidos como brinquedos, enfeites ou souvenirs, representados em desenhos e
ilustrações de estórias e mesmo em figuras de grandes dimensões para fins de propaganda comercial ou recepção de turistas, os Trolle caracterizam-se pela feiura de traços e expressões, apresentando feições de velhos e velhas, de anões ou gigantes com narizes e órgãos genitais de dimensões exageradas, com atributos animalescos ou cobertos de folhagens ou musgo, com ninhos à cabeça, com só quatro dedos ou outras deformações nas mãos e nos pés, às vezes com um só olho, com rabos ou várias cabeças.


Essas características da linguagem visual denotam que o Troll pertence ao repertório de representações grotescas desativadoras de sentidos negativos pelo humor conhecido de outros contextos, também no Brasil.


O conteúdo negativo - desativado - do Troll manifesta-se na noção de que se trata de um ser da noite, vivendo em regiões escuras de florestas, grutas ou montanhas, longe do mundo habitado das povoações, da cultura e da civilização, sempre fugindo à luz.


Os Trolle surgem como seres encantados, misteriosos, "gigantes" - embora anões, perigosos, ludibriadores, trickser, coléricos, malignos porém sem maior inteligência ou compreensão, desajeitados e fácil de serem enganados.


Vivendo no mundo "de fora" e das trevas, representam um risco
para o viajante que percorre regiões afastadas dos povoados e é alcançado pela noite. Aquele que encontre um Troll na escuridão acha-se perdido, nada adiantando defender-se ou atacá-lo, nem mesmo cortar um de seus membros, pois estes crescem de novo. A única possibilidade de salvação reside na tentativa de enganá-lo até o amanhecer, quando então fugem com o despontar da luz; quando atingidos pelos raios do sol, transformam-se em pedras ou explodem.


Somente a astúcia, ou seja meios intelectuais, podem enganá-los. São assim, êles próprios seres espirituais ou naturezas intelectuais, manifestações diversas do demoníaco, distintos daqueles positivos das ninfas, dos elos e das fadas.


Como seres espíritos elementares que habitam as florestas, surgem como seus senhores e guardiães, dominando matas, montanhas, rios e mesmo pontes. Em cavernas ou no coração de matas escondem as suas riquezas.


Há, assim, apesar da fundamental negatividade dos perigosos elos dos Troll com as trevas, aspectos antes positivos de sua atuação no mundo vegetal, animal e material em geral, sendo visto como promotor do crescimento da vegetação e propiciador de riquezas materiais. Assim, sobretudo na Suécia há o costume de fazer-se uma casa para o Troll no quintal ou no jardim de casas, ou seja, fora do seu interior, o que é visto como garantia de prosperidade. Surge como ato de inteligência considerá-lo em primeiro lugar antes de despachá-lo, pois auxilia o crescimento material. O Troll surge, assim, estreitamente relacionado com a matéria ou a terra, explicando-se também o seu relacionamento com montes e montanhas.




Trollstigen - a montanha ou a escalada do Troll e o seu centro de acolhimento

Há uma região da Noruega que se oferece de forma particularmente favorável para estudos relacionados com o Troll: o Trollstigen. Trata-se do caminho ao alto, ao cume de elevadas montanhas, cujo cimo oferece ampla e espetacular visão do mundo montanhoso da Noruega, aqui marcado pelos cimos do bispo (Bispen), do rei (Kongen) e da rainha (Dronningen) e pelas suas numerosas cascatas, entre elas a de Stigfossen, de 320 metros de altura.


O Trollstigen é conhecido e procurado por visitantes de todo o mundo que o atingem por uma estrada em serpentina que escala as encostas, das baixadas do Isterdal até o passo a 700 metros do nível do mar. Antes da construção dessa estrada provincial (N° 63), inaugurada em 1936, o Trollstigen era de difícil acesso, e ainda hoje a estrada é intransitável à época do inverno.



No cimo, de onde se avista o panorama a partir do Utsikten, construiu-se um centro de acolhimento (Trollstigen Fjellstue), com salas de conferências, e que surge como relevante obra da arquitetura contemporânea nórdica pelas relações com o meio envolvente que revela.


Nesse edifício, que adquire a feição de centro cultural, o visitante toma a consciência que se encontra em região conotada como o interior por excelência, como o longínquo, o afastado, de difícil acesso, a área distante da comunidade.


O Trollstigen surge para o homem do litoral povoado e de suas redondezas como o interno da terra, inculto, atemorizador, misterioso e pleno de riscos. O caminhante podia perder-se constantemente, estando continuamente rodeado por abismos, e ali encontrar-se ao cair da noite significava no passado perigo de vida.


O visitante compreende, assim, o significado da imagem gigantesca do Troll no porto de Andalsnes, à entrada da região do Trollstigen. Essa figura, com traços de um velho calvo, traz um cajado nas mãos, como se fosse um errante em regiões afastadas.


Os "homenzinhos de pedra" como proteção de caminhantes contra Trolles


No próprio Trollstigen e em outras regiões de cimos e altiplanos, o visitante depara-se com uma quantidade inesperada de montículos de pedras por todos os lados, aos quais os caminhantes ajuntam novas pedras, os "homens" ou "homenzinhos de pedra".


Ainda que conhecendo esse costume de remotas origens em outras regiões, onde esses montes de pedra têm sido vistos como marcos de caminhos, percebe no contexto do Trollstigen que se relacionam com concepções vinculadas ao Troll, podendo ser nesse sentido interpretados e revelando assim sentidos até hoje não suficientemente considerados.


Esses montículos de pedra não servem aqui à marca de caminhos, pois são edificados foras de picadas, até mesmo em picos e saliências de rochas em locais de risco, podendo-se relacionar com a concepção de caminho apenas em sentido lato ou figurado do termo. A própria denominação, com as suas equivalências na Europa central alemã, sugere tratar-se de construções antropomórficas (Steinmann, Steinmännchen, Steinmanderl).


Esse contexto com os Trolles sugere que a usual interpretação da função orientadora desses montes de pedras necessita ser questionada. Esse costume de remotas origens, vistos como marcadores de caminhos, têm sido explicados como provenientes de concepções relacionadas com Hermes. Também essa interpretação forneceu as bases para as reflexões no ciclo de estudos realizados anteriormente no contexto Mediterrâneo/Atlântico, mais particularmente em Santiago de Compostela (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Compostela.html).


As considerações agora em Trollstigen obrigam a uma diferenciação maior de modêlos interpretativos. Segundo a tradição norueguesa, cada caminhante deve colocar uma pedra a mais nos montículos para não ser alvo dos Trolles.


O relacionamento desses montículos com os Trolle traz à tona os seus elos com o externo, com a região regiões de risco onde perambulam seres ameaçadores, errantes, afastados dos centros de moradia, transformados em senhores dessas regiões ermas. A edificação de montículos de pedras por caminhantes que atingiram a salvo o seu objetivo e que pretendem prosseguir com sucesso o seu caminho poderia ser entendida como um sinal de proteção, uma espécie de sinal aos Trolles que, caso sejam atingidos pela luz, transformar-se-ão em pedra.


Esses montículos de pedras não são, assim, expressão de antigos ritos propiciatórios a esses seres errantes de características demoníacas, o que seria pouco compreensível, mas sim sinais indicadores da proteção divina dos caminhantes, do princípio da luz que faz com que esses espíritos se transformem em pedras ou retornem a esse estado da matéria do qual se originaram. Compreende-se, assim, que em algumas regiões, sobretudo nos cimos mais altos, montes de pedra maiores substituem cruzes ou podem ser substituídos por cruzes.


Paralelos do Troll com o Curupira/Caipora


O pesquisador de assuntos culturais brasileiros reconhece nos Trolles da Noruega similaridades constatáveis em figuras vistas como expressões folclóricas no Brasil e que já têm sido alvos de vários estudos.


Essas similaridades dizem respeito sobretudo ao Curupira e ao Caipora, ambos termos indígenas. O termo Curupira tem sido explicado como indicador de que aqui se trata de um ser de tamanho de menino, desproporcionado relativamente à sua cabeça, ou seja, de uma espécie de anão. O termo Caipora significa serem habitantes do mato. Ambas designações, portanto, correspondem àquelas dos Trolles noruegueses, que também são representados como anões de grandes cabeças e são vistos como habitantes do mato ou de regiões ermas, fora de povoados.


Mais do que essas explicações terminológicas, narrativas e constatações da pesquisa empírica revelam surpreendentes similaridades entre o Troll nórdico e o Curupira/Caipora. Também no Brasil esses seres surgem como espíritos que assolavam caminhantes à noite, surgindo de repente, causando pavores, também fugindo da luz, de modo que aqueles que se atreviam na escuridão do sertão ou de matas levavam consigo uma tocha.


Como na Noruega, esses seres surgem na tradição brasileira como enganadores, mentirosos, fazendo com que os caminhantes se percam, desorientando-os ou fazendo com que se esqueçam dos seus caminhos ou objetivos da viagem. A função desorientadora do Curupira é expressa no fato de ter pés para trás, deixando pegadas que sugerem outra direção.


Também no Brasil surgem como "senhores" dessas regiões ermas, e portanto de matas, árvores e animais.


Os próprios atributos relativos à aparência denotam também surpreendentes similaridades entre o Curupira/Caipora e o Trolle: grandes cabeleiras vermelhas, hirta, olhos enjetados e de brasa, corpo cabeludo, dentes desproporcionais, azuis ou verdes, com grandes órgãos genitais, cavalgando animais, sobretudo porcos, agitando galhos, muitas vezes com um pé só. Também como na Noruega, o Curupira/Caipora não toleram alho, esperando porém dos caminhantes fumo e aguardente.


É significativo que a crença nesses seres foi constatada nas fases iniciais da cristianização dos indígenas, sugerindo aqui relações com processos de transformação cultural.


Citando José de Anchieta, Luís da Câmara Cascudo (Dicionário do Folclore Brasileiro, Belo Horizonte: Itatiaia 5a. ed. 1984, 273) registra que missionários constataram já no século XVI que indígenas já em contato com os europeus costumavam deixar em caminhos agrestes que levavam ao interior ou no cume da mais alta montanha objetos como "uma espécie de oblação" para que nada de mal lhes ocorresse.


Essas menções parecem indicar já a vigência de um processo de transformação cultural e de identificação cristã, uma vez que o Caipora, como habitante do mato, era visto em correspondência ao indígena não catequizado, morador fora das aldeias sob a direção missionária. Consequentemente, os missionários viam no Caipora figura do demônio em feição humana.


O que não tem sido suficientemente considerado, é que os missionários traziam da sua própria tradição cultural similares imagens. Sobretudo na Península Ibérica viviam em expressões populares e lúdicas imagens que representavam ao mesmo tempo anões e gigantes, cabeçudos com corpos atarracados e disformes, com conotações negativas e mesmo assustadoras, desativados porém na sua potencialidade aterrorizadora pela inversão ridicularizadora ou de cunho carnavalesco porque passavam.


Se os missionários não reconheceram essas similaridades de concepções, isso pode ser explicado devido às diferenças quanto a formas de expressão de um sistema de ordenações de imagens que, como uma de suas principais características sistêmicas, possui a de permitir a atualização de tipos nas diversas circunstâncias.


Como as imagens constatadas no Brasil possuiam conotações indígenas em nomes e formas de expressão, adaptadas estas também à situação do país em fase de transformação cultural dos indígenas em contato com o Cristianismo, os próprios missionários não puderam lê-las segundo o seu sentido mais profundo, uma vez também que já não compreendiam sentidos de antigas imagens que permaneciam vivas nas suas próprias culturas. Essas figuras conservavam-se ou nos folguedos festivos, ainda que inseridas no ciclo de festas do calendário religioso, ou em costumes de procissões, já não mais refletidos no seu sentido, muitas vezes por esse motivo até mesmo objeto de combates de sacerdotes contra supostos resquícios de paganismo.


Teria havido, nesse sentido, complexos desencontros culturais que explicam a não-compreensão de similares sentidos de sinais que só na aparência visível se diferenciavam.


O mecanismo do sistema de ordenação de imagens que elucida as dificuldades de compreensão de sinais de sentidos similares em diferentes contextos é aquele derivado do fato de que essas imagens sinalizadoras indicam um sentido outro do que aquele nela própria representado.


Devido às características tipológicas do sistema, representados são tipos do superado, do velho, morto ou terreno, indicando aquele renascido, novo ou espiritual. O representado indica que o tipo, nas suas múltiplas conotações negativas, encontra-se superado, desativado na sua potencialidade de perigo pelo riso decorrente do seu emprêgo em expressões de folguedo.


Esse mecanismo próprio do sistema explica o cunho fundamentalmente grotesco das representações. Estas têm sobretudo a função de lembrar àqueles que estão livres e em condições de ver o representado à distância, reconhecendo o ridículo a êle inerente, o risco de uma recaída na situação superada.


Essa função das representações subentende, portanto, que a crença na existência e mesmo na vigência do superado encontre-se mantida. Este superado, porém, faz parte de toda um sistema de ordenação de imagens de antiga proveniência, relacionado com o mundo perceptível pelos sentidos, com o ciclo natural e concepções filosófico-naturais, nos seus fundamentos remontantes a elementos da matéria.


Explica-se, assim, que o Caipora registrado pelos missionários, temido pelos índios aldeados e em processo de cristianização, referia-se àquele que vivia fora, na mata, o verdadeiro Caapora, em situação de vida na qual o neófito não devia recair. A crença implica em valorações expressas  na negativização ou demonização do superado, significando um corte com o contexto e o grupo abandonado, cisão fundamental no processo de transformação cultural e de identidades.


Duas possibilidades de entendimento abrem-se para aquele que procure explicar a vigência de um sistema imagológico com tais características entre os indígenas constatado pelos missionários.


1) Uma delas é a de que os indígenas teriam assimilado no processo de transformação cultural um sistema de imagens subjacente à cultura dos colonizadores e missionários, por estes não compreendido ou não consciente, presos que estavam ao predomínio do histórico-narrativo.


A cristianização dos indígenas ter-se-ia processado fundamentalmente através de uma assimilação de um sistema de ordenação imagológica da visão do mundo, não através da comunicação verbal, fato compreensível já pelas dificuldades de compreensão de idioma estranho, e não através primordialmente através de uma inserção na história cristã, o que pressupunha transmissão de conhecimentos sôbre decorrências a partir da perspectiva cristã-ocidental.


2) Outra possibilidade para a compreensão reside na suposição de que já tivesse existido no mundo indígena um sistema cultural de características similares àquele dos colonizadores e missionários, havendo um encontro de complexos imagológicos de sentidos intrínsecos e consequentes interações.


Essa hipótese implica na suposição de que já no mundo indígena vigorasse uma distinção valorativa entre habitantes do espaço de uma aldeia ou povo e aqueles de fora, ou do mato. Essa hipótese levanta naturalmente a questão de como se explicaria a existência de sistema de ordenação imagológica da visão do mundo similar no continente americano àquele subjacente à cultura dos colonizadores.


Essa questão pode ser respondida ou supondo-se o surgimento de sistemas similares em diferentes regiões ou a difusão de um complexo cultural de visão do mundo em remotas eras. Esta última hipótese surge como a mais plausível, uma vez que estudos mais pormenorizados do relacionamento de imagens indicam uma fundamental norteação. Esse caminho explicativo foi aquele também defendido por alguns pesquisadores, entre êles Luís da Câmara Cascudo, que via na existência de similares concepções ao Curupira/Caipora brasileiro em outras regiões do continente americano um indício de que a crença tivesse a sua origem no Norte.


A discussão dessas diferentes possibilidades explicativas relativamente a complexos imagológicos indígenas e europeus foi um dos objetivos do Congresso Internacional dedicado aos fundamentos de processos realizados realizado no Rio de Janeiro, em 1992, quando iniciou-se um projeto de levantamento do estado de conhecimentos relativo às culturas indígenas e, paralelamente, um projeto voltado aos fundamentos de expressões culturais introduzidas pelos colonizadores e missionários. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Estudos-e-Esclarecimento.html )


Também na Noruega os Trolles são relacionados com seres de um mundo superado, anterior à cristianização nórdica. Esses seres teriam correspondido a uma das partes, a inferior, da ordenação do mundo da antiga cosmologia nórdica.


Com a experiência ganha na discussão referente ao Brasil, reconhece-se aqui os riscos de uma interpretação por demais simplista de processos culturais. O pensador poderia cair aqui no problema de projeção de sua própria visão do mundo na interpretação da antiga cultura nórdica. Esse perigo a que corre o observador norueguês agrava-se pelo fato de ter este ainda maior dificuldade de compreensão do antigo sistema de ordenação do mundo subjacente à sua própria cultura pelo fato de ter a sua formação marcada pela Reforma protestante e, em consequência, pelo predomínio do histórico e de leituras antes literais, com perda do sentido para a percepção de sentidos ocultos.

Atualização de perspectivas relativas a procedimentos comparativos no Folk-lore


Na tradição dos estudos dedicados ao Folk-lore, procedimentos comparativos de expressões culturais em diferentes contextos relacionam-se, também de forma complexa, com caracterizações de contextos culturais determinados.


Essas  oferecem bases a discursos e práticas político-culturais e educativos marcados por preocupações pelo nacional ou pelo °que é nosso" nas suas múltiplas acepções, hoje expressas sobretudo à luz dos conceitos de consciência, identidade e patrimônio cultural.


Mesmo em textos de orientação manifestadamente nacionalista, a literatura inclui referências a tradições e expressões similares em outros contextos, também em países e regiões distantes e sem elos histórico-culturais mais estreitos com a própria nação. Relações entre o Universal e o Nacional, no sentido por vezes pouco diferenciado de relações entre o geral e o particular, surgem como constantes preocupações. 


Como acima mencionado, a superação de problemas e mesmo dilemas que se colocam à discussão teórica relativa ao Folk-lore pressupõe uma reflexão teórica que redirecione a atenção não a um objeto de estudos compreendido como esfera cultural a ser definida e estudada, mas sim a processos culturais.


Neste sentido, procedimentos comparativos em contextos e situações culturais distantes ou não imediatamente relacionadas entre si assumem conotações diversas daquelas de um Folclore Comparado ou Folclore Mundial do passado.


A atenção é hoje dirigida sobretudo à comparação de como expressões culturais são compreendidas, estudadas e aplicadas em iniciativas práticas voltadas à sua valorização, difusão, fomento ou na representação cultural e no ensino nos diferentes contextos. Esse direcionamento da observação empírica a processos no presente não isenta a pesquisa, porém, de análises mais aprofundadas de fundamentos de processos culturais, o que remete a atenção não apenas à história, como também e sobretudo à análise de configurações de natureza sistêmica relacionadas com a visão do mundo e do homem.


O procedimento comparativo assim compreendido vem de encontro à exigência que se coloca aos Estudos Culturais de contribuir ao Esclarecimento, o que se torna cada vez mais necessário na atualidade, não apenas devido à intensificação de correntes obscurantistas de fundamentação religiosa, como também daquelas não-religiosas, sobretudo daquelas que se manifestam em movimentos nacionalistas radicais.


Antonio Alexandre Bispo



Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Lapões como indígenas de terras hiperbóreas e indígenas no Brasil. Da Etnologia comparada à análise de mecanismos de processos culturais em contextos transnacionais". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 139/10 (2012:5). http://www.revista.brasil-europa.eu/139/Troll-e-Curupira.html





  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.