Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Cultura saami/lapões. Foto A.A.Bispo©


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Cultura saami/lapões. Foto A.A.Bispo©
Fotos A.A.Bispo, Cabo Norte (2012) ©Arquivo A.B.E.


 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 139/9 (2012:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N°2927




Lapões como indígenas de terras hiperbóreas e indígenas no Brasil
Da Etnologia comparada
à análise de mecanismos de processos culturais em contextos transnacionais


135 anos de nascimento e 80 da morte de N. Erland H. Nordenskiöld (1837-1932), filho do pesquisador nórdico Adolf Erik Nordenskiöld (1832-1901)

 
Cultura saami/lapões. Foto A.A.Bispo©
A primeira discussão conjunta de questões culturais referentes aos povos indígenas do Brasil, das Américas em geral, do Norte da Europa e da Ásia teve lugar em seminário dedicado a expressões artísticas de esquimós no Instituto de Völkerkunde da Universidade de Colonia, em 1975, sob a direção da Profa. Dra. Ulla Johansen, sendo o Brasil então representado pelo editor desta revista.


Transcorrido de forma interdisciplinar pela própria temática, nesse seminário foram consideradas algumas questões que se colocavam relativamente às culturas indígenas do Brasil na recém-introduzida disciplina Etnomusicologia nos cursos superiores da Faculdade de Música e Educação Artística do Instituto Musical de São Paulo.


A particular atenção dada motivos da arte esquimó foram consideradas comparativamente àqueles conhecidos de culturas indígenas do Brasil. Relendo aproximações teóricas já de remota literatura do passado que relacionam desenhos ou o ato do traçar com a música, procurou-se constatar relações simbólicas entre as duas formas de expressão em diferentes contextos culturais de povos indígenas, ou seja, em sentido figurado, de música na arte visual e de dimensão visual na música.


Considerando, ao mesmo tempo, que as expressões visuais inserem-se em contextos determinados pelo conjunto de concepções e imagens da visão do mundo, chegou-se à conclusão que seria necessário analisar com mais atenção um sentido musical intrínseco ao complexo de imagens do cosmos dos povos indígenas, incluindo aqui os das regiões nórdicas. O complexo religioso relacionado com práticas xamanísticas esteve então no centro das atenções.


Cultura saami/lapões. Foto A.A.Bispo©

Cultura saami/lapões. Foto A.A.Bispo©
O desenvolvimento desde então dos estudos de processos culturais relacionados com os indígenas do Brasil, em particular no âmbito de projeto iniciado no congresso internacional dedicado a fundamentos culturais realizado no Rio de Janeiro, em 1992, fêz com que a retomada de considerações conjuntas com povos indígenas do Norte da Europa se tornasse um desideratum. No decorrer do projeto, pelo fato de ser dirigido a processualidades, uma extrapolação de fronteiras nacionais tornou-se necessária, levando à consideração de situações e de tendências do pensamento e da ação indigenista na América do Norte. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/128/Abbe-Museum.html)


Cultura saami/lapões. Foto A.A.Bispo©
As observações e estudos realizados em 2012 no ciclo de estudos nórdicos do programa Noruega/Brasil da A.B.E. inseriram-se nesse desenvolvimento do projeto de 1992. Uma das preocupações desse projeto foi a de questionar visões históricas implantadas pelo europeu colonizador, procurando de forma empática compreender perspectivas e visões de decorrências do ponto de vista indígena, um pressuposto para diálogos, inclusão do próprio indígena na discussão e mesmo para o desenvolvimento dos estudos específicos. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Australia-Melanesia-Brasil.html)


Dando continuidade a esse procedimento, também relativamente aos indígenas nórdicos procurou-se considerar diferentes perspectivações historiográficas: a européia registrada em considerável literatura de viagens e em trabalhos históricos e etnográficos, e as tentativas mais recentes dos próprios povos indígenas em recuperar visões próprias de decorrências. Nestas últimas, partir de reperspectivações na compreensão de processos históricos, os sami procuram promover a própria cultura e dirigir fundamentadamente ações político-culturais.


Perspectivas historiográficas e imagem de povos indígenas do Sul e "hiperbóreos"


Uma das questões que se levantam na discussão de perspectivas históricas é a da imagem e da auto-imagem de povos indígenas.


Como em outras regiões do mundo, também na esfera nórdica deve-se considerar que o intuito intensificado no século XIX de oferecer "retratos de caráter" de povos em panoramas humano-geográficos baseou-se em literatura de viagens, refletindo, assim, a perspectiva de europeus.


Um exemplo de como textos de viajantes de diferentes nações e épocas foram utilizados para a composição de coletâneas que, no seu todo, passaram a constituir base para o ensino da Geografia Cultural, oferece a obra pioneira de A. W. Grube, largamente difundida em fins do século XIX (Geographische Charakterbilder in abgerundeten Gemälden aus der Länder-und Völkerkunde I, Leipzig: Friedrich Brandstetter 1885, 20 ss.).


Nessa coletânea, que fornece imagens caracterizadoras de povos e nações, os povos indígenas nórdicos - então designados como hiperbóreos - estão representados por um texto de Arthur de Capell Brooke (1791-1858) traduzido para o alemão.


Esse viajante inglês, conhecido nos estudos latinos antes pelo seu relato de viagens pela Espanha e Marrocos (Sketches in Spain and Morocco, Londres 1831), viajou à Noruega em 1820, registrando as suas observações em várias obras, nas quais revela também particular interesse por tradições e expressões culturais populares (Travels through Sweden, Norway, and Finmark to the North Cape, in the Summer of 1820, de 1823). Na sua publicação Winter Sketches in Lapland, de 1826, Arthur de Capell Brooke procurou oferecer uma visão completa de formas de viajar em trenós de renas e do caráter geral da paisagem invernal da Lapônia. Em 1827, voltou a publicar um livro sôbre o inverno no Cabo Norte vivenciado durante a sua residência em Hammaerfest (A Winter in the North Cape).


Imagem negativa de hiperbóreos da mata como selvagens, flecheiros e bêbados


Um dos aspectos salientados no texto de Capell Brooke utilizado para a criação de um retrato característicos dos lapões diz respeito à diferença entre os lapões sedentários que criavam renas e os "lapões do mato" (Skogslappar), habitantes em geral de regiões de floresta na Lapônia sueca e russa. Estes eram nômades, pobres, que seguiam as renas nas suas andanças, morando em tendas durante o verão e em cabanas no inverno, e que, por viverem em parte da caça a aves selvagens, eram vistos como bons arqueiros, como atiradores de flechas.


Esse tipo de lapões não era conhecido segundo Capell Brooke na Lapônia norueguesa, pois a terra era muito montanhosa e possuia poucas florestas. A distinção cultural dos lapões nessa região era aquela entre os da costa ou pescadores e aqueles da montanha, do interior ou lapões-de-renas. Estes últimos correspondiam aos "lapões do mato" por andarem perambulando e por viverem em tendas. Seria esse tipo de "lapões-do-monte" que marcaria a imagem dos lapões. O modo de vida desses lapões se caracterizaria por andanças e migrações em direção ao oceano nos meses de junho, julho e agosto.


Procurando explicar essa tendência migratória, Capell Brooke salienta as dificuldades impostas pela quantidade de moscas e outros insetos nessa época do ano, obrigando aos lapões do interior das terras a utilizar-se constantemente do fogo para produzir fumaça e a pintar o rosto de preto. Essas migrações às comunidades estabelecidas no litoral, em particular em ilhas, serviam também ao comércio: os lapões-do-mato traziam couros e penas e, com a sua venda, compravam tecido, farinha, pólvora e tabaco. Nessas ocasiões, as renas podiam beber água salgada do mar, necessário uma vez ao ano para o combate de larvas de insetos.


Essas migrações de verão não eram feitas de trenó, sendo este deixado em depósitos nas montanhas, juntamente com outros objetos da vida invernal. Os lapões-dos-montes, acompanhados pelas renas, tornavam-se, no verão, lapões-de-ilhas, das quais podia ir às vendas de povoados de pescadores, onde podiam adquirir aguardente, no qual investiam grande parte do que ganhavam com a venda de couros. O alcoolismo era, assim, grande problema dos lapões-dos-montes, reduzindo-os à pobreza.


Essa pobreza refletia-se também no seu tipo de moradia no interior das terras. A tenda (Lawo) seria para Capell Brooke nada mais do que uma armação de ramos de bétula coberta com um tecido grosseiro como um trapo e que constituia principal artigo de comércio com os lapões-do-monte; sendo tecido pelos lapões de comunidades de pescadores da costa, faziam com que esses fossem também caracterizados pela atividade de tecelagem.


A tenda era de pequenas dimensões, com ca. de 2 metros de altura e 5 ou 6 metros de área, abrigando a família e às vezes também co-proprietários de rebanhos com os cães e seus pertences: recipientes, panelas de ferro, colheres, caixinhas de madeira. O chão era coberto com ramos de bétula, com folhas, sôbre o qual se colocava um manto de peles de renas.


Os moradores reuniam-se ao redor do fogo aceso no centro, cercado por pedras, sendo que parte da fumaça podia sair por uma abertura no cimo da tenda. Nas proximidades desse orifício colocava-se o queijo para ser secado. O interior, porém, era constantemente esfumaçado, e aquele que penetrava na tenda pouco podia reconhecer os seus moradores.



O calor causado pela convivência de tantas pessoas em espaço tão reduzido era intolerável no verão - uma outra razão das migrações - mas o aconchego que proporcionava era bem visto pelos lapões, constituindo motivo de saudades quando estavam fora.


Ao lado da tenda de montanha levantava-se em geral uma espécie de depósito para alimentos, em particular para o queijo:  também aqui uma simples armação de ramos em forma triangular coberta com um pano grosseiro.


Imagem do caráter e da aparência dos hiperbóreos do interior das terras


Esses lapões-do-monte tinham segundo o olhar europeu uma aparência selvagem e modos rudes. Capell Brooke neles registrou um exagerado grau de independência e obstinação, um estado de espírito sinistro e amargo, desconfiante, apenas capaz de ser mitigado com presentes. Um viajante que não trouxesse presentes e não viesse acompanhado por um tradutor não seria bem recebido e correria perigo. Se a sua desconfiança fosse porém superada com aguardente e fumo, transformar-se-ia.


Para Capell Brooke, essas características de caráter do lapão-do-monte podiam ser explicadas pelas difíceis condições impostas pela natureza e pelo clima, levando a uma vida determinada pela necessidade.


Quanto aos trajes, o lapão-do monte vestia-se de couro no inverno e, nos meses quentes de julho, agosto e setembro, um saiote de tecido, a Gappe, preso ao corpo com um largo cinto de couro, do qual pendia uma faca. Essa roupa de verão descia até os joelhos, usando-se sob a mesma calças compridas feitas de couro fino de renas novas, presas nos tornozelos com uma espécie de meias de couro (Komarges) forradas de capim sêco macio (Sena).


Na cabeça, o lapão usava no verão um chapéu de pano (Gappie), trabalhado nos lados com peles de rena. Aqueles que usavam roupas de couro no verão, deixavam-nas abertas à frente devido ao calor; não utilizavam camisas nem meias de tecido.


Quanto à aparência física, Capell Brooke refere-se à pequena estatura, aos olhos pequenos e compridos, às maçãs de rosto salientes, à boca larga e a um queixo pontudo, com pouca ou nenhuma barba. Eram brancos, escurecidos apenas pela fumaça das tendas. Outras características seriam o cabelo castanho ou de cor escura em geral, o que diferenciava o lapão-do-monte daquele da costa. O lapão-do-monte tinha mãos e pés tão pequenos como os esquimós, eram porém mais ossudos e musculosos.




Comparação de modos de vida com a de animais e o significado dos usos e costumes


Uma vida em necessidade explicava segundo Capell Brooke a falta de comedição no comer e beber dos lapões. Quando havia abundância no inverno, comiam sem freios, como se procurassem prevenir dias de necessidade, o que levava a comparações com animais selvagens; no verão, porém, eram frugais, alimentando-se quase que só de leite.


Aquele que era obrigado a se transferir para a costa e viver da pesca, conservava sempre uma profunda nostalgia de retorno à liberdade da vida no interno das terras. A saudade era um estado de alma constante nesses lapões, levando muitas vezes ao retorno.


Os lapões podiam viajar de trenó na época invernal ou pela luz da lua, que em geral possuía uma luminosidade tão forte como a do sol, ou pela luz do norte ou pela esplandescência extraordinária das estrêlas que iluminavam a paisagem coberta de neve. Nessas viagens, mantinha os seus olhos constantemente fixados nas estrêlas, o que levava a que adquirisse desde cedo conhecimentos de astronomia, ainda que reduzidos a determinadas constelações. Entre estas, as mais importantes eram, entre outras, as da Ursa Menor e as da Ursa Maior e a do Orion.


Para Capell Brooke, os lapões dariam aos europeus a lição de que felicidade ou infelicidade, bem-estar, satisfação ou insatisfação seriam antes resultados de imagens do que decorrências de condições materiais. Costumes e usos teriam a função de adaptar o homem a tudo, a formar o seu caráter.


Já à época da viagem de Capell Brooke procurava o govêrno sueco fomentar uma transformação cultural dos lapões entendida como melhoria do seu grau de cultura, realizando seminários para a formação de professores e pastores indígenas. Como, porém, a natureza do país impunha condições ásperas e imutáveis, a forma de vida e suas expressões, os seus usos e costumes permaneciam inalterados. (op.cit. 35)




Difusão de imagem caracterizadora dos lapões no mundo latino


O quadro resultante da viagem de Capell Brooke e de outros observadores divulgados no mundo de língua alemã pelos "Retratos de Caráter Geográficos" de Grube, foi o mesmo que marcou a imagem dos lapões no mundo latino.


No Brasil, a recepção dessa visão dos indígenas do Norte da Europa deu-se sobretudo através da literatura de divulgação popular francesa. Este é o caso do capítulo dedicado aos lapões no livro os "Povos do mundo", uma obra que também incluia artigos sobre indígenas e caboclos do Brasil (Ch. Delon, "Les Lapons", Les Pêuples de la Terre, Paris 1905, 114-116). É significativo que o texto parta de início de uma correção da imagem dos lapões como anões, escuros e selvagens, no qual se diferenciavam dos escandinavos de alta estatura, de pele clara e civilizados, comparáveis em costumes aos franceses da Baixa Bretanha.


"Les Lapons ne sont pas des nains, mais simplement des hommes de petite race, d'environ un mètre et demi de taille, et qui paraissent petits surtout par le contraste qu'ils font avec leurs proches voisins les Suédois du Nord, gens de très haute stature. Ils ne sont pas si laids non plus qu'on s'est ingénié à les dépeindre:  ils ont le nez épaté, les pommette des joues saillantes, les yeux petits, mais vifs et doux, bruns ou npoirs d'ordinaire; le front bien fait, le visage en losange plutôt qu'ovale, la barbe rare, la peau un peu jaunâtre. Il y a chez eux des blonds, des noirs et des châtains: preuve que la race est mélangée de diverses origines. Les Lapons sont parents des Finnois, des Mongols de l'Asie et de ces terribles Huns qui dévastèrent l'europe au Ve siècle; mais les populations actuelles du Nord glacial sont au contraire douces et pacifiques. Et de même il ne faut pas les considérer comme de sauvages; ils sont civilisés plus qu'à demi, et autant que le permet cette existence presque errante, à eux imposée par le rude climat de leur neigeuse patrie.  (op.cit. 114-116)


Também essa publicação parte de uma distinção entre os lapões do interior, habitantes de florestas que viviam isolados sob condições primitivas, reproduzindo descrições etnográficas similares àquelas da coletânea de Grube.


Uma das poucas referências que sugerem outra fonte de informações diz respeito a costumes e modos de vida de recém-nascidos. Mais do que os já antigos relatos de Capell Brooke, essa obra do início do século XX salienta a transformação cultural por que passavam esses lapões do interior.


"Les Lapons aiment fort cette existence sauvage et rude, mais libre et au grand air; pourtaint ils se civilisent de plus en plus, achètent des vases de métal ou de faience à la place des jattes de bois, des armes pour la chasse, des outils. Ils ont conservé leur langue, tout à fait différente de celles des Suédois, Norvégiens et Russes, leurs voisins; ils sont chrétiens de nom, mais ont l'esprit rempli de superstitions bizarres. Au solstice d'été on célèbre la fête du soleil par des feux allumés sur les hauteurs, en ces nuits merveilleuses où l'astre ne se cache point, mais rase seulement à minuit l'horizon; où, tandis que les ténèbres couvrent notre monde, le Nord resplendit de feux comme par nos plus beaux couchants, et que les neiges des montagnes reflètent des traits d'or et de pourpre." (op.cit. 116)


Similaridades de perspectivas de situações e processos na Noruega e no Brasil


Durante o ciclo de estudos euro-brasileiros na Noruega, em 2012, considerou-se similaridades nesse relato caracterizador dos lapões com situações conhecidas dos estudos relativos aos indígenas do Brasil. A diferenciação entre lapões-do-mato ou lapões-do-monte, ou seja, do interior de terras, com aqueles integrados das costas, lembra aquela entre indígenas da floresta e aqueles moradores em regiões, povoados e cidades em contato mais estreito com os colonizadores europeus.


Mesmo na caracterização daqueles "do mato" surgem termos que os caracterizam como selvagens, arredios, rudes, pretos, que necessitariam ser civilizados através de programas do Govêrno. Assim como no caso dos indígenas no Brasil, seriam esses "lapões-do-mato" que determinaram a imagem dos lapões, não aqueles já integrados dos povoados do litoral. A perspectiva que transparece do quadro assim traçado é a do europeu.


Para os integrados ou identificados com a sociedade colonizadora sueco-norueguesa, a vinda dos "lapões-do-mato" em determinada época do ano, quando então com êles negociavam, correspondia a um encontro com um grupo do qual se tinham separado. Representava ao mesmo tempo um risco, pois despertava nostalgia de uma vida livre no interior, conduzida segundo antigos costumes e marcada pelo calor humano das tendas, levava, porém, a impulsos de auto-afirmação e de demonstração de prosperidade e civilização.


Em função desses impulsos, os "do mato", representando uma situação ultrapassada, passavam a ser conotados negativamente e, ao mesmo tempo, vistos com desdém, cujo sentido seria apenas voltado ao álcool e ao fumo. Também sob esta perspectiva o observador constata similaridades com situações que conhece de contextos indígenas no continente americano.


Essa situação, porém, corresponde não apenas a mecanismos similares em processos de transformação cultural e de mudança de identidades marcados por instabilidade, labilidade e impulsos auto-afirmativos extrabordantes em diferentes contextos, mas também a configurações dinâmicas do próprio sistema de ordenação de imagens da visão do mundo.


Como os estudos relativos ao Trolle comparados àqueles do Curupira/Caipora revelam (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/139/Troll-e-Curupira.html), a representação de seres do mato ou do monte, vistos negativamente como selvagens, anões, ludibriadores, obtusos e perigosos, é feita a partir da distância possibilitada pelo riso do emprêgo lúdico de expressões grotescas. Esse mecanismo inerente ao sistem corresponde àquele entre o homem velho, terreno, e o novo, espiritual, conhecido da tradição cristã.


A questão que se coloca àqueles que, hoje, procuram recuperar a sua própria perspectiva na consideração de processos e libertar-se dessa imagem grotesca é que aqui se trata não só de superação de uma perspectiva do colonizador, mas sim e sobretudo daquela dos integrados ou colonizados, pois a tensão surge como resultante de mecanismos de transformação de identidades.


O quadro torna-se ainda mais complexo quando se considera que, com intuitos de ganho, aqueles que procuram uma reordenação de imagens passam a utilizar-se de estereotipos resultantes de uma perspectiva desvalorizadora, tirando delas proveito para apresentações turísticas e de encenações culturais daquilo que é da terra.


Hoje, os que se auto-designam de saamis ou samis apresentam-se a visitantes do Cabo Norte como os lapões "do monte" da antiga literatura nas suas migrações de verão ao litoral, montando espécie de museus ao ar livre temporários com a representação das tendas em que vivem no interior, no inverno, ao lado de lojas onde comercializam artefatos e objetos vendidos como souvenirs.


Surgem, assim, problemas resultantes de uma auto-representação folclorizante sob o signo do lúdico, risível e grotesco, uma vez que a encenação folclórico-etnográfica se encontra em tensão com a consciência revalorizadora despertada. Essa tensão apenas pode ser tolerada se transportado para o plano geral do Humano, ou seja do risível da própria natureza terrena. Levanta-se aqui a questão se aqui não residiria uma elucidação nascida da própria experiência humana para concepções e imagens do edifício cultural no seu todo.


Antonio Alexandre Bispo




Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Lapões como indígenas de terras hiperbóreas e indígenas no Brasil. Da Etnologia comparada à análise de mecanismos de processos culturais em contextos transnacionais". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 139/9 (2012:5). http://www.revista.brasil-europa.eu/139/Lapoes-e-indigenas-do-Brasil.html






  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


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