Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos no titulo e lateral:  acervo do autor

Fotografias em branco e preto no texto e mapas: Gedenkbuch zur Jahrhundertfeier Deutscher Einwanderung in Staate Santa Catarina. Florianópolis: Livraria Central, 1929.
Fotos em côr no texto: A.A.Bispo









 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 139/19 (2012:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N°2937




O Caminho ao Brasil dos Missfeldt
"Recordações da Floresta do Brasil"
de Willi Missfeldt (ca. 1935)


Pesquisas genealógicas de Horst Missfeldt

 


O caminho ao Brasil dos Missfeldt


Horst Missfeldt

Ratekau, Schleswig-Holstein


Palavras preliminares


O meu nome é Horst Missfeldt e pesquiso a respeito da família Missfeldt e para ela. A nossa família provém de Surendorf em Dänischenhagen, Schlesweig-Holstein, Alemanha.


No passado, o primogênito herdava a propriedade.


Todos os outros filhos ou permaneceram nas vizinhanças ou foram para outros povoados.


Com isso, originaram-se 16 troncos diferentes. O tronco original, Surendorf, remonta documentadamente a 1550. O tronco Pries-Schilksee remonta a 1732. O tronco Pries-Schilksee divide-se, na Dinamarca ,em três ramos diferentes. Um ramo permaneceu na Dinamarca, um ramo foi para a América/Canadá, outro ramo para o Brasil.


O caminho ao Brasil dos Missfeldt


Henning Hinrich Misfeldt nasceu em 1732 em Dänischenhagen. Casou-se no dia 28 de Fevereiro de 1716 em Dänischenhagen com Margreth Christin, nascida Gotschen. Tiveram 5 filhos, dois filhos e três filhas. Henning Hinrich Misfeld trabalhou a seguir na Viertelhufe 2, em Holtenau. No ano de 1791, tornou-se proprietário livre dessa Hufe e, em 1803, transferiu o sítio a seu filho Johann Christian Misfeld.


O segundo filho, Claus Hinrich Misfeld, trabalhou como serviçal na propriedade Seekamp. Casou-se no dia 22 de Junho de 1806 em Dänischenhagen com Christina Magdalena Gotsch e tiveram ambos cinco filhos, três meninas e dois meninos.


Um dos filhos de Claus Hinrich, Marx Hinrich Misfeld , nasceu no dia 15 de Fevereiro de 1815 em Holtenau. Bem cedo, Marx Hinrich passou a trabalhar como serviçal na condução de gado da Dinamarca pelo „caminho dos bois“, ou Haervejen, a Hamburgo. O trabalho era muito árduo, por isso procurou um posto como serviçal no Dalbygaard, perto de Dalby/Kolding, Dinamarca. Aqui, casou-se no dia 20 de Julho de 1844. em Dalby, Anna Marie Ibsdatter, nascida Hansen.


Na estatística da Dinamarca de 1880, encontra-se a indicação que tornou-se proprietário de casa e que trabalhava como serviçal na agricultura. Marx Hinrich faleceu aos 75 anos no dia 2 de Agosto de 1890 no Sdr. Stenderup, Dinamarca.


Êle e sua mulher Anne Marie Ibsdatter tiveram três filhos:

  1. 1)Christine, com o nome de casada Jørgensen, nascida no dia 23. de Junho de 1845. Ela era casada com um Jørgensen e teve três filhos, dois filhos e uma filha. Morou até à sua morte com o seu filho Christian Jørgensen;

  2. 2)Ib Hansen Misfeldt, nascido no dia 2 de Janeiro de 1848. Casou-se com Dorothea Frederikke, chamada Doris, nascida Hartz, no dia 3 de Abril de 1874 em Sdr. Stenderup, Dinamarca. Tiveram 12 filhos, cinco meninos e 7 meninas, todos nascidos nos Estados Unidos. Ib emigrou em 1868 com a sua mulher à América. Os seus descendentes passaram posteriormente em parte ao Canadá;

  3. 3)Hans Henrik Misfeld, nascido no dia 28 de Maio de 1852. Hans Henrik Misfeldt trabalhou como marceneiro em Lunding, Dinamarca. Casou-se no dia 21 de Maio de 1875 em Dalby, Dinamarca, com Catharine Maria, nascida Højer. Tiveram um filho: Hans Hansen Misfeldt.


O filho de Hans Henrik Misfeld, Hans Hansen Misfeldt, nasceu no dia 10 de Fevereiro de 1876 em Lunding, Dinamarca. Casou-se no dia 4 de Agosto de 1903 em Aarhus, Dinamarca, com Anna, nascida Brøchner. Tiveram cinco filhos, três meninas e duas meninas. O filho mais velho de Hans Henrik Misfeld, Hans Brøchner Misfeldt, nasceu no dia 12 de Janeiro de 1919 em Kolding, Dinamarca, morrendo no dia 12 de Dezembro de 1995 em São Paulo, Brasil. Casou-se três vezes. 1) Em primeiras núpcias, foi casado com Anne Marie, nascida Buhrmann. Tiveram um filho, Anders Buhrmann, nascido no dia 27 de Junho de 1944. 2) Em segundas núpcias, foi casado com Marie Margarita, nascida Meyer, com a qual teve três filhos, um filho e duas filhas. 3) Em terceiras núpcias, foi casado com Theresa Marcellino. Desse casamento nasceu uma filha, Christine.


O filho do primeiro casamento, Anders, nasceu a 27 de Junho de 1944. Emigrou em 1946 à Suécia e adquiriu a nacionalidade sueca. O segundo casamento de Hans Brøchner deu-se a 16 de Abril de 1956. Desquitou-se, posteriormente.

Os três filhos foram:

  1. 1)Heidi (Haydee) Agostina Meyer Misfeldt. Nasceu no dia 11 de Julho de 1957 na Cidade do México, México. Vive hoje em Toronto, Canadá;

  2. 2)Hans Christian Brochner Misfeldt é casado com Silvia, nascida Ferreira, e têm dois filhos: Hans Daniel Brochner Misfeldt, nascido a 1 de Maio de 1988 e Fábio Henrique Brocher Misfeldt, nascido a 21 de Dezembro de 1989, Ambos os filhos vivem no Brasil;

  3. 3)Anna Margarita Brocher Misfeld. Foi casada com Hugo Eligio Becerra Rojas.  Têm três filhos: 1) Samuel Christian Becerra Brochner Misfeldt, nascido a 30 de agosto de 1979 em São Paulo, Brasil. Vive hoje no Chile; 2) Marco Antonio Becerra Brochner Misfeldt, nascido a 11 de Dezembro de 1982 no Chile, onde vive, e 3) John Albert Gonzalez Brochner Misfeldt, nascido a 9 de Janeiro de 1995 em Santos, Brasil, onde vive.

A filha da terceiro esposa de Hans Brøchner chama-se Christine Marcellino Misfeldt. Nasceu a 13 de Março de 1965. Tem o sobrenome Ceder e vive no Brasil.


Alguns da família Missfeldt/Misfeldt emigraram ao Brasil. De um membro da família - Willi Missfeldt - obtive um diário (infelizmente faltam as últimas seis páginas). Aqui êle descreve como emigrou, juntamente com os seus pais e irmãos no dia 12 de Maio de 1912 ao Brasil. A emigração deu-se a partir de Hamburgo, passando por Amsterdam, em direção ao Rio de Janeiro. Dalí prosseguiram para Santa Catarina. Esta viagem é muito bem descrita.


"Recordações da Floresta do Brasil" de Willi Missfeldt (ca. 1935)


Emigramos a 12 de Maio de 1912 a partir de Kiel com o meu pai (Friedrich), minha mãe (Emma), dois irmãos (Paul, Emil-Ernst) e uma irmã (Erika). Viajamos de trem até Amsterdam, passando por Hamburgo, partindo de lá para o Brasil a 15 de Maio com o vapor holandês "Hollandia".


Após viagem de 20 dias, estavámos no Rio de Janeiro. A viagem foi muito bonita, o tempo muito calmo e a alimentação boa. Pouco tiveram enjôos de mar. No Rio, fomos para a Ilha das Flores; era o 4 de Junho de 1912. Aqui recebemos acolhimento por 20 dias do Govêrno do Brasil. A comida era principalmente feijão preto e arroz. Da Ilha das Flores viajamos cinco dias em vapor costeiro, o Iris, para Florianópolis, no Estado de Santa Catarina. Era o 15 de Junho. O vapor fora construído em Kiel, mas era muito velho e mal conservado. A comida era ruim, e também não se mantinha a limpeza. O convés parecia um chiqueiro, quase que não se podia mover, pos os teuto-russos que também viajavam deitavam-se por todo o lado, vomitavam e faziam necessidades que aqui não se pode descrever. A maioria sofria com enjôos. A nossa mãe também adoeceu e não aproveitou muito a viagem marítima. O pai e as irmãs aguentaram bem. Pouco antes de Florianópolis, também eu tive que vomitar terrivelmente, pois acima de mim, na cabine, dormia um homem que, sem que imaginasse, ao olhar para cima, dele recebi também um presente. Êle despejou-me tudo sobre o peito, e quando percebi o cheiro, o feijão preto saiu de novo para fora.


Foto A.A.Bispo, Santa Catarina©
Ficamos todos felizes quando chegamos ao nosso local de destino. O vapor teve que ficar a largo, pois não havia nem ancoradouro nem cais. As nossas malas foram transportadas por um veleiro à terra. Estreito: nesse lugar pegamos nós mesmos as malas, pois guindastes não havia. Todos éramos fortes, e assim tudo decorreu bem. Todos, porém, suamos como camelos. Fazia, também, muito calor. Em Estreito, passamos para uma "casa do imigrante". Camas - "sem máculas": havia apenas estrados de madeira. O pior eram as pulgas, que quase nos devoraram, estavamos delas cobertos. Nessa localidade ficamos vários dias. Dali partiu-se então em carros para o interior.


A primeira parada chamava-se Fazenda. Ali fêz-se o almoço, de lá prosseguiu-se para a localidade Tijucas, distante ca. de 50 quilômetros de Florianópolis. Ali ficamos vários dias, havia muitas laranjas e bananas. As laranjeiras foram por nós bastante delapidadas.


A população era só de brasileiros; até hoje há ali no máximo meia-dúzia de alemães. Ali entraram em cena os problemas com a língua; ninguém entendia as pessoas, comunicava-se através de sinais e gestos. É muito ruim quando não se compreende a língua do país; isso senti mais tarde na própria pele.


De Tijucas viajou-se então 35 quilômetros até a localidade Nova Trento; ali ficamos dois dias, depois continuamos até Natal, onde permanecemos toda uma semana. Essa região já era toda coberta de florestas. Apenas existiam alguns ranchos, casas cobertas de palha ou cabanas.


O nosso hotel era um pardieiro de tábuas com camas modernas - os estrados de madeira. Já estávamos um pouco acostumados aos colchões pulguentos.


Dali prosseguiu-se até a localidade Corridas. Lá encontrava-se a agência do Govêrno brasileiro com três casas de comércio, tudo construído de madeira. Ali já viviam aproximadamente 150 famílias alemãs que queriam tornar-se colonos. De todos êles, nenhum mais ali vive. Os atuais moradores são na maioria brasileiros; o local é bastante quente e ali também há febre.


Aqui em Corridas fomos para uma casa de tábuas, onde
moramos um ano. A nossa casa situaca-se ca. de meia hora da praça da cidade. As malas e trastes foram levados por burros de carga até lá; não havia nenhuma estrada.


O trabalho então começou. Construímos, entre outros, um forno; não havia tijolos. Ao lado da casa corria um pequeno rio, dêle tiramos as pedras e fizemos o primeiro forno, no qual podíamos assar o nosso próprio pão. Quando estava terminado, fêz-se fogo. Não demorou muito, e as pedras começaram a explodir; foi um Deus nos acuda e logo do nosso fogão restavam apenas pedaços. Nas pedras havia muito silicato. Precisamo construir um outro. Procuramos outras pedras, ferruginosas; estas aguentaram bem e o forno passou a bem assar. Também foi preciso construir um fogão e muito mais.


Quando ali estávamos já alguns dias, o nosso pai foi comprar batatas numa venda; não havendo batatas, comprou batata doce. Era um domingo; a nossa mãe preparou uma boa porção e todos estávamos felizes que havia de novo batatas, e cada um encheu bem o seu prato. Começamos a comer e olhamos um para o outro: aquilo tinha gosto parecido com o de batata empedrada, e o apetite findou-se. No dia seguinte, levamos as batatas-doce às costas de novo à venda; as mesmas não podiam ser comidas, eram velhas. Quando são novas, não têm gosto ruim, é apenas uma questão de costume.


Por mês trabalhava-se quinze dias no caminho, pelo qual recebíamos do Govêrno 45 mil-réis. Os outros quinze dias eram para o trabalho na roça.


Essa localidade de Corridas, porém, não nos agradava. Era quente demais e decidimos ir mais para o Interior. Um dia saímos, assim, e procuramos terra há 20 quilômetros dali, onde passamos a viver, em meio da floresta. Não havia estrada, apenas uma picada, ou seja, um caminho aberto na mata com um facão.


A primeira ida à colonia, que havíamos escolhido, deu-se logo, pois a floresta devia ser derrubada para que pudessemos ter algo para comer no ano seguinte. Preparou-se comida para uma semana para cada um, machado e facão para o corte da vegetação rasteira, panelas, espingarda, munição, cama e coisas para vestir - um carregamento bastante grande. Com essa carga às costas foi-se por 14 quilômetros morro acima, três quilômetros morro abaixo e três quilômetros mais planos.


Suamos para valer nessa caminhada como as roupas de algodão da terra natal. Ficamos felizes quando, por fim, alcançamos o rancho. Levantamos um estrado para dormir com tocos redondos. Acima pusemos musgos de árvores e folhas, e o pulgueiro estava pronto. Cada um trazia uma coberta. Mas como eram duras essas camas de mato! Cozinhava-se e fritava-se fora. Nessa época, cozinhávamos principalmente panquecas, pois eram fáceis de fazer e o resto era difícil de ser conseguido. Comemos tanto disso que até hoje não gosto mais de comê-las.


Nessa cabana de folhas vivíamos em dez pessoas, todos homens. Os primeiros dias, aguentou-se bem os insetos. Não demorou muito, porém, e tínhamos tantas pulgas que estas quase que nos carregavam.


Saíamos de casa às segunda-feiras e voltávamos aos sabados. Uma segunda-feira, chegamos ao nosso rancho, e fomos a nosso trabalho de tirar mato e cortar árvores. Pelo almoço, voltamos à nossa cabana de folhas para fazer a comida, quando encontramos uma surprêsa. Tudo estava espalhado pelo chão, as latas de conserva haviam sido derrubadas e abertas ao cair, ou seja, todo o nosso mantimento estava perdido. Ficamos embasbacados. De repente, vimos um cão, e então tudo se explicou. O caçador de patos havia saído para caçar com 13 cães. O caçador não havia dado comida para os cachorros antes de sair, de modo que os animais caíram sobre os nossos mantimentos e tudo devoraram. Precisamos retornar com os estômagos vazios e adquirir novos mantimentos. 40 quilômetros a pé não é pouco!


Esse caçador havia matado 140 aves nas redondezas. Hoje há apenas poucas delas, foram todas extintas.


Dois dias depois, recebemos carne de tapir no nosso rancho, deixada pelo caçador. Nós a comemos, não tinham sabor ruim, era apenas um pouco seca e esfiapada.


Assim vivemos vários meses na mata, longe da civilização. No distrito em que nos encontrávamos, dizia-se haver também bugres botocudos (Buger docudos), homens selvagens, o que era também de se imaginar. Combinamos que, assim que soassem três tiros, todos deviam reunir-se. Bem, um dia, ouviu-se vários tiros. Dirigimo-nos para onde tinham vindo. Até atingir o local, ouvimos 15 outros tiros. Os nossos colegas tinham atirado num animal que se achava numa árvore, entre uma forquilha. Todos então nele atiramos, até que dele caíram pedaços.



Vários dos nossos diziam ter vistos bugres. Eu nunca vi nenhum na mata. Mais tarde, porém, e eram mansos. Entre outros, também um botocudo, de 22 anos, de espáduas largas, cabelo prêto, com mechas, criado por uma família alemã. Falava bem o alemão e cantava canções alemãs e bebia cerveja como garrafa sem fundo. Os caçadores de bugres haviam trazido esse jovem quando era criança da mata. Os selvagens haviam matado várias pessoas e famílias e, assim, fêz-se caçada a êles. Entre outros, um velho colono me contou como o seu vizinho e sua família haviam sido mortos. Vários caçadores participaram da caçada e um deles viu um bugre sentado ao sol, e nele atirou. A seguir, os caçadores saíram da mata e alcançaram a casa do colono alemão Schubert, a última do assentamento. Vários dias após esse acidente, os selvagens atacaram a família e todos mataram, salvando-se apenas uma filha, que fugiu para o vizinho. O rio, onde isso aconteceu, chama-se até hoje rio Schubert. O homem que isso me contou não foi pêgo pelos selvagens, apenas uma mula de seu pasto foi morta e carregada.


Após esse acontecimento, os caçadores de bugres saíram e perseguiram os bugres, os encontraram e mataram a maior parte deles. Depois desse acidente, não houve mais ataques. Os  bugreiros encontraram muitas coisas dos colonos entre os bugres, sobretudo objetos de ferro, que podiam utilizar melhor para fazer as suas flechas e facas. Os bugres fazem as pontas de suas flechas principalmente de lascas de pedras.


Estivemos por meses na mata, e os bugres não nos fizeram nada de mal. Encontramos frequentemente árvores onde haviam feito ninhos para abelhas, bem finos e lisos. Uma vez, vimos uma árvore de ca. 18 ou 20 metros de altura, e sob um ramo horizontal havia sido feito um buraco para ninho de abelhas. Não era fácil de se tirar mel dali.


O meu irmão e eu, por sermos os mais velhos, fizemos com mais três famílias três roças na floresta para cada um. O primeiro decorreu mais ou menos, o segundo já não tão bem, e o terceiro, mal. O nosso, o último, demorou um bom tempo; não estávamos acostumados com o trabalho. Derrubar a mata, quando não se sabe, é um trabalho muito duro. O pior é quando se tem que cortar com o machado de um lado e do outro em declive de morro, e nós não o podíamos, tínhamos um manejo muito inseguro. Algumas arvores não debatemos apenas uma vez, mas cinco ou seis vezes. Não era apenas bater, mas depredar. Precisa-se ter uma energia de aço.


Um dia, ouvimos nas encostas um rumor na mata. Pensamos que eram porcos selvagens, e partimos para caçá-los, matando vários macacos. Não vimos nenhum porco. Eram os macacos que tinham feito o barulho.


Quando as roças estavam prontas, o Govêrno ali construiu uma casa de madeira e, quando esta estava pronta, para ali mudamos. Ela precisou primeiro ser um pouco mobiliada. A madeira teve de ser retirada, para que ninguém quebrasse uma perna. Depois, foi preciso fazer um forno, um galinheiro e um chiqueiro. Também fizemos uma horta para nós.


Não se podia comprar tábuas e  moirões, pois não havia serraria. O meu irmão e eu passamos a fazer ripas com o serrote, isso era também um trabalho que não se conhecia, mas tinha que ser feito. No início, não deu muito certo, mas logo aprendemos, de modo a poder fazer depois uma dúzia de tábuas por dia. Era, porém, uma trabalheira!


Um dia - fazíamos ripas - ouvimos um ruído. Não tínhamos armas conosco, essas nos atrapalhavam, pois tínhamos que levar a madeira às costas para casa por cima do topo de arvores e troncos. De repente, vimos algo cinzento. Aproximava-se. Pedi a meu irmão para correr para casa e buscar a espingarda. Gritamos também para casa, para que nos trouxessem a espingarda, mas nada ouvimos. A casa situava-se atrás de um morro e o som não a alcançava. Os vizinhos já vinham correndo, mas o meu irmão correu rápido e eu encontrava-me a cinco ou seis metros do tapir. Este estava muito tranquilo, levantava e abaixava a curta tromba e permanecia diante de mim. Eu estava com a minha faca de mato na mão, pronto a pular numa árvore ou num tronco, não sabia o que fazer. Era a primeira vez que via um animal desses. O meu irmão já estava sobre o morro e atirou de lá nas costas do animal. O tapir caiu logo após o tiro. Fui a êle com a minha faca e quis enterrá-la na carne, quase que não pude atravessar o couro, bastante espesso. Consegui, por fim.


Os vizinhos correram a ajuntar-se. O couro foi tirado e a carne levada para casa. A nossa mãe fritou o fígado. Ela não pode fritar tanto quanto comíamos, pois muitos tinham chegado. A carne foi salgada e, como fazia muito calor e não sabíamos, muita carne estragou-se. A cadela que tínhamos havia tido cria e comeu a maior parte da carne.


Vários dias depois, ali apareceu um sujeito atrevido, ou antes, sem-vergonha, e quis o couro do tapir que tinhamos matado. O couro lhe pertencia, os seus cachorros tinham pêgo o tapir. Primeiro, ameaçou com a Justiça. O meu pai gritou com êle, e êle partiu com a ameça de mandar a polícia. Alguns dias mais tarde soubemos que o homem tinha estado de cama no dia em questão.


Os mantimentos que podíamos comprar eram muito caros. As vendas pediam o que queriam. Em pouco tempo estávamos sem meios. Procurei trabalho como carpinteiro, embora não tinha documento de formação. Tinha aprendido apenas dois anos de marcenaria em Kiel. Achei trabalho na localidade de Bonsque, distante 84 quilômentros da nosso local de moradia. Era um bom caminho a pé! Ali moravam muitos alemães. Trabalhei vários meses e retornei para casa. Fiquei sabendo, então, que se podia ganhar melhor no planalto. Decidi, com um vizinho da minha idade, de ir para lá. Eram 300 quilômetros.


Um dia, partimos com uma mochila e 5 mil-réis no bolso. No dia seguinte, chegamos à localidade Angelina, onde passamos a noite. No dia seguinte, prosseguimos a viagem, então acabaram-se os povoados alemães. O terceiro dia chegamos em São Paulo. Já era escuro, não se via nenhuma casa. De repente, vimos uma luz, e para lá nos dirigimos. Atraves de sinais e gestos, perguntamos de podíamos ali passar a noite. Não nos queriam acolher, de início, e indicaram um puxado onde ficavam os tropeiros. Fizemos como se não tivessemos entendido e ali ficamos.



O homem trouxe-nos algo para comer. Cada um recebeu uma vasilha com pinhão cozido em água salgada. Eu disse a meus colegas: Que é isso de refeição, você já comeu tal coisa? Não sabíamos o que era, mas comemos. Pensamos que ia haver outra coisa, mas recebemos apenas uma xicarazinha de café. Depois, o homem mostrou-nos o dormitório. Não havia ali camas. êle próprio não tinha nenhuma. Deitamos no chão, num canto, sem coberta ou saco de palha, apenas com a mochila sob a cabeça.


Quando levantamos, estavamos no outro lado do quarto. Um tinha passado sôbre o outro para se esquentar. Fora, tudo estava gelado, os membros estavam endurecidos e os ossos doíam. Já estávamos de pé às três horas. O homem já tinha-se levantado e, sob uma luz, tirava leite de várias vacas. Trouxe-nos leite para beber. Eu não era amigo de leite, mas engoli o que pude.



Não havia ainda clareado quando prosseguimos o caminho, e demorou um bom tempo até clarear. Ao redor do meio-dia tivemos fome. Não se viam casas. A localidade, da qual nos tinham falado, já passara, e assim nos sentamos e tiramos da mochila um pedaço de pão de milho, que já estava bastante esverdeado, e o comemos. Caiu bem. À noite, chegamos em Rio Bonito, encontramos uma cama e dormimos muito bem.



No quinto dia, chegamos a um alemão, 15 quilômetros antes de Lages, o nosso local de destino. Com esse alemão, já nascido no Brasil, passamos uma noite. Pela manhã, perguntamos ao homem o que devíamos. Êle exigiu de cada um 2500, o que era muito caro. Tínhamos vencido 285 quilômetros com 2500 e esse homem tomava de nós o resto do nosso dinheiro. Mais tarde contamos o que aconteceu, disseram que não deviamos tê-lo feito, mas estávamos já sem dinheiro.


Ao redor do meio-dia atingimos o nosso término. Ali moravam quase só brasileiros, achamos porém uma família alemã. Ali passamos varias noites e também às vezes comemos. Saímos então a procurar trabalho. No primeiro dia, nada achamos. No dia seguinte, perguntamos num convento, não queriam dar-nos trabalho, pois não éramos católicos.


Perguntei então ao superior se podíamos comer algo, recompensaríamos de alguma forma. Comer podíamos, disse-nos o monge, e deixou-nos ir à mesa. Comemos a valer. Depois, perguntamos quanto custava, agradecemos e nos despedimos. Saímos, contentes pelo menos de ter a barriga cheia. Nesse dia, nada achamos. No dia seguinte, encontramos trabalho com um açougueiro alemão. 30 mil-réis de salário mensal. Não tinha nenhuma vontade de ali trabalhar, mas pensei, na necessidade "o diabo come moscas". Fui então buscar as minhas coisas.


A caminho, encontrei um homem. Pensei, deve ser um alemão, e perguntei se tinha trabalho para mim. Disse que podia trabalhar como carpinteiro com êle e me pagaria 3500 e dava alojamento. Quem podia ter ficado mais contente do que eu? O homem morava a 18 quilômetros fora da cidade e disse que eu podia ir até lá no dia seguinte na sua carroça. Não tinha paciência de esperar, peguei as minhas coisas e fui a pé. Ao cair da tarde lá cheguei. O meu colega encontrou no mesmo dia trabalho num hotel. Pouco mais tarde o patrão chegou e conversamos sobre muitas coisas.


No dia seguinte, comecei com o trabalho. Era uma carpintaria com tração de água. Não havia carpinteiros, o último tinha saído há poucos dias.


O primeiro trabalho foi um armário de madeira polida. O pessoal era muito desconfiado, pois já tinham sido enganados algumas vezes pelo alemão. Aprontei bem o armário. Eram pessoas muito agradáveis, apesar de serem católicos. Aqui aprendi a conhecer o país e as pessoas. O pior era a língua. Era uma sorte que o patrão falava alemão.


Aqui, no acampamento, comia-se duas vezes por dia feijão preto com arroz. Como eram alemães, havia pão pela manhã. Os da serra ainda não conheciam pão. Aprenderam a fazer pão só com os alemães.


Nessa carpintaria trabalhei quatro meses. Um dia, o meu colega da cidade veio e disse: Você vem comigo para casa, Willi? Pensei então, se tínhamos vindo juntos, então voltamos também juntos para casa. Pedi o meu salário e andamos para casa. Tínhamos dinheiro no bolso e percorremos 80 quilômetros por dia de bom humor, dormindo apenas parte da noite. Acontecia de passarmos o local de parada, pois em nenhum lugar via-se uma casa. Precisávamos então dormir fora; não era tão escuro, colhíamos capim e deitávamo-nos.


De repente acordei, a lua brilhava tão claro e julguei, meio adormecido, que fosse o sol. Levantamos os dois, continuamos a caminhar, e o dia não quis despontar. Deitamos de novo numa grande pedra. Aos poucos tornou-se dia e prosseguimos com a andança.


A primeira casa que encontramos, para lá fomos e queríamos ter algo para comer, nada recebemos, porém, e assim passou-se todo o dia. Nada recebemos para comer nem por dinheiro e nem por boas palavras. Nas terras altas, um homem que anda a pé é visto como um vagabundo. Até mesmo um mendigo anda a cavalo. A noite, passamos num galpão aberto. De manhã, encontramos uma pequena venda. Ali perguntamos se podíamos comer algo. O homem disse que sim, e trouxe-nos uma vasilha com farinha de mandioca em molho e ovos cozidos. Comemos tanto, achamos tudo muito saboroso! Quando se tem fome, tudo tem bom sabor. Terminada a refeição, continuamos com o caminho, e compramos um pedaço de carne sêca na próxima venda, para que não tivessemos fome, pois estávamos cansado de passá-la.


Os meus sapatos começaram a apertar e nasceu uma bolha no meu calcanhar direito. E essa bolha cresceu cada vez mais com a pressão. Queria furá-la, mas o meu colega achou que poderia ficar pior. Agora, avançávamos apenas lentamente. À noite, furei-a, já não mais podia aguentar.


Fiquei aliviado, quando a água dela saiu. Pela manhã, cortei o fundo do sapado, e assim prosseguimos. Não durou muito, e o meu colega ganhou uma bolha na sola do pé. Fêz o mesmo que eu e continuamos, ainda que mais devagar, mas aproximamo-nos cada vez mais de casa. Assim, gastamos sete dias de ida e apenas cinco dias e meio na volta. Depois de cinco dias e meio estávamos frescos e móveis, mas no retorno cansados e desgastados. Em casa, pudemos então descansar.


Para variar, trabalhamos novamente na terra, para não perder totalmente o costume.


Vários dias mais tarde, o pai e eu partimos para comprar uma vaca leiteira. Andamos 52 quilômetros. Lá morava um negociante que tinha muito gado. Escolhemos uma vaca. Êle não queria muito, desejava vender uma outra, aquela não queria que tivéssemos. A outra não queríamos. Aquela, que queríamos, custava 200 mil réis. Negociamos todo o dia. Por fim, a conseguimos por 140 mil réis, mas tudo deu muito trabalho.


De início, pagávamos sempre o que era exigido, pois estávamos acostumados da Alemanha. Fomos porém enganados muitas vezes e todo o dinheiro acabara-se. Por isso, passamos a negociar tanto quanto podíamos. A vaca foi paga e com os restantes 60 mil réis compramos várias coisas necessárias. Depois, voltamos para casa com a nossa primeira vaca. Precisávamos  avançar rapidamente, pois já vinha chuva e tínhamos que passar dois grandes rios. Basta um temporal e já não se podia atravessar o rio. Não havia pontes. Se a chuva continua, deve-se esperar dois ou três dias até conseguir passá-lo.


Com o nível normal da água, deve-se tirar as calças. Carreguei o novilho pequeno às costas para atravessar o rio, e o meu pai puxou a vaca com uma corda. Em dois dias estávamos de novo em casa. Agora, tínhamos, pelo menos, leite em casa. Até então, nunca tínhamos tido.


Também tínhamos feito um pequeno pasto. Só a cerca não era boa. A tínhamos feito de moirões de madeira. A vaca não queria no começo ficar no pasto. Isso porque estava sozinha. Até então, tinha vivido sempre com outras vacas, mas logo se acostumou. Do que havia ganho, ainda sobravam 100 mil réis.


Tinham-nos contado que na Argentina podia-se ganhar bom dinheiro à época da colheita. 17 de nós decidiram de para lá ir, e o meu irmão Paul e eu estávamos entre eles.


Partimos a pé no dia 14 de dezembro de 1914. Precisávamos ir a Florianópolis, 125 quilômetros daqui. De lá precisávamos pegar um vapor costeiro. Acabara-se o nosso dinheiro de viagem de 50 mil réis. No dia 16 de dezembro chegamos a Florianópolis. No caminho, ainda tivemos um pequeno contratempo. Um dia, pelo meio-dia, vimos uma casa sobre um morro e, a seu redor, várias laranjeiras. Pensamos em descansar à sombra das árvores.


Circundamos a casa para falar com o proprietário e comprar algo, mas não se via ninguém. Todos tinham-se escondido. Apenas um olhava através das frestas das tábuas. Não queria sair para fora. Após muita persuasão, apareceu. Disse-nos que tinham mêdo e pensaram, vão-nos levar tudo. Tínhamos sido vistos como um bando de ladrões. Dissemos que não fazíamos nada e que apenas queríamos descansar um pouco. Após algum tempo, os fugidos apareceram, e, depois de termos descansado um pouco, prosseguimos o nosso caminho.


Em Florianópolis tomamos um hotel. Passamos três dias no sótão, sem camas, dormindo no chão. Foi uma sorte não fazer muito frio. No dia 19 de dezembro, partimos num vapor costeiro de nome Virio. A comida não era da melhor. Nenhum de nós ficou doente. Uma noite, fomos iluminados pelos faróis de um navio de guerra inglês, mas não retidos. Pensamos que já íamos ser todos internados, mas tudo saiu-se bem.


No dia 24 de dezembro chegamos a Montevideo.

(....)


Chegamos bem em Florianópolis. Ali descemos e fomos à alfândega. Quando abrimos as mochilas, os guardas deixaram-nos logo passar. Partimos imediatamente, agora tínhamos chão brasileiro sob os pés. Compramos um grande cacho de bananas. O nosso camarada St. comeu duas bananas e sentiu-se mal  - a nós três nada se passou. Comemos o resto. A primeira noite, dormimos sob uma pista de boliche aberta, a segunda, em casa de colonos no Rio Perdidas. Já tínhamos chegado cedo ali, mas precisamo ficar devido a um temporal. Não nos custou nada. No dia seguindo, saímos bem cedo. Pelo meio-dia encontramos um colono conhecido, com quem conversamos um bom tempo. Êle ia à cidade vender as suas mercadorias. Disse que devíamos passar pela sua casa e pedir à sua mulher para dar-nos um bom almoço. Essa oferta não deixamos que fosse feita uma segunda vez. Hoje já não acontece algo semelhante.


Após o almoço, queríamos prosseguir de imediato, houve porém um temporal e assim era muito tarde quando partimos. Não queríamos passar a noite ali, queríamos finalmente chegar o mais rápido possível em casa. Logo porém escureceu, a picada estava já bastante fechada. Picada é um caminho aberto com uma faca de mato na floresta.


Já estava tão escuro, que logo nos colocamos sob uma ponte. Avançávamos apenas muito devagar. Os últimos seis quilômetros era uma estrada viável. Quando a alcançamos, tudo correu melhor. Antes da meia-noite chegamos em casa. Em casa, todos estavam em pé. Tinham matado um porco. Tínhamos chegado a boa hora, e foi um reencontro alegre. Os nossos pais estavam tão contentes que estávamos de novo em casa. O dinheiro, que ainda tínhamos, eram 25 mil réis e 100 tínhamos ganho. O nosso falecido pai dizia: que fortuna! Bem, pelo menos chegamos sãos e salvos.


As primeiras noites dormimos a valer em cama com colchão de verdade. Fêz muito bem. Não estava há muito em casa, e já precisava pensar em como ganhar dinheiro de outra forma. Não tínhamos ainda cavalo, e por isso tudo precisava ser carregado nas costas.


Fui a pé à localidade Brusque. Essa localidade situa-se há distância de 84 quilômetros. Lá a viagem devia começar.


Com três carros, partiu-se para o planalto de Santa Catarina, para Lages. Ali devia trabalhar como carpinteiro. A viagem até lá são de 420 quilômetros. Partimos de Brusque com bom tempo. Quando tínhamos viajado duas horas, começou a chover. Não tinha uma capa, de modo que logo estava totalmente molhado. O dono da carroça e ao mesmo tempo o carpinteiro tinha uma boa capa e conduzia o veículo puxado por três burros.


Descemos um morro. Era nas proximidades da localidade Nova Trento. Já estava escurecendo. O homem foi de encontro a uma grande pedra e houve um tremendo golpe. Voei para o lado esquerdo e o condutor para o direito. A carroça recuou e a minha perna ficou imprensada entre a roda e a pedra. Como era bem ágil, livrei-me logo. Pensei de início que a perna tinha sido cortada, mas não foi o caso. Um milagre não ter sido esmagada. A calça de lã e as meias estavam em trapos. Depois tive muitas dores. Deitei-me na carroça e molhei-a constantemente com aguardente. Foi um tratamento de cachorro - a viagem começava bem.


Viajamos ainda uma hora e passamos a noite. No dia seguinte, a viagem prosseguiu, e, pensei, viajo ou não viajo. Mas esperava que a perna logo ficasse melhor.


No terceiro dia, já podia ficar de pé. O pior era a chuva. Chovia todo dia. Era uma lameira, e o veículo afundava até a barra. Assim que pude andar, descia e andava a pé. No inverno, quando chove, os caminhos não têm fundo. Quem ainda não viu, não acredita. Os trajetos que devem ser vencidos também assim o são. Fazíamos às vezes 12 quilômetros por dia. Assim passavam os dias, às vezes melhor, outras vezes pior.


Nós mesmos cozinhamos algo. Às vezes não se podia fazer fogo, a madeira era molhada demais. À noite cozinhava-se o feijão, no almoço era requentado.


Numa manhã, os cavalos foram ajuntados e faltava um. Foi encontrado numa várzea. Corremos para ali com alguns homens e de lá o tiramos.


Continuava a chover. Ainda tínhamos 20 quilômentros até Lages. Depois apareceu o sol. No vigésimo terceiro dia chegamos.


Em 1935, estive de novo na Alemanha. Quando se compara os caminhos, é uma diferença como entre o dia e a noite.


Iniciei de novo na carpintaria. Essa foi aumentada e transferida para a cidade. Lá havia também máquinas para o tratamento da madeira, movidas a eletricidade. Na carpintaria eram feitos todo o tipo de trabalhos de construção e de móveis. Também eram construídos moinhos de corte e de prensa. O carpinteiro precisava êle próprio fazer de tudo. Eu ganhava 5 mil reis por dia. Havia frequentemente horas extras e trabalhos em mutirão. O meu português tornava-se cada vez melhor.


Após ter ali trabalhado algum tempo, comprei um cavalo com sela por 180 mil réis. Era o primeiro cavalo que possuia. Estava naturalmente orgulhoso. O cavalgar não era muito agradável, mas nunca tinha andado a cavalo antes.


Um mês mais tarde, comprei uma égua que esperava cria, uma pedra de moinho e ferramentas por 50 mil réis. Era tudo muito barato. A isso somava-se 10 mil réis de custos de transporte.


Quando então ganhei ainda mais, fui a cavalo para casa como vários outros cavaleiros e carros. O tempo estava bom e tudo decorreu sem problemas. No primeiro dia foi tudo bem, no segundo já estava um tanto rígido, no terceiro pelo meio-dia já tinha posto esporas. Ao subir, raspei com elas o quadril do meu cavalo. Êle sacudiu-se, e encontrei-me no chão. Houve uma risada geral, pois havia bons cavaleiros presentes. Fiz como se não me importasse e subi novamente o meu cavalo.


Sempre avançamos com rapidez. O dia todo andamos a galope. À noite, estava tão quebrado e enrijecido, que não mais podia subir no cavalo. É um sofrimento quando não se está acostumado a andar a cavalo. No quarto dia, até o meio-dia, fui no carro. Após o almoço, andei de novo a cavalo, e tudo correu bastante bem. O corpo já tinha se acostumado um pouco. Os últimos 30 quilômetros cavalguei só; tinha levado seis dias com os meus dois corcéis.


Em casa, com os pais e irmãos, houve um alegre reencontro. Uma vaca já havia, agora tínhamos dois cavalos, tudo estava indo melhor.


Após vários dias, o meu irmão Paul e eu mandamo-nos a buscar as pedras de moinho e ferragens. Com dois cavalos e um veículo não podíamos viajar, pois não havia estrada transitável. Tínhamos de fazê-lo ao lombo de cavalo. O trajeto perfazia 140 quilômetros de ida e volta. Um cavalo carregava as pedras de moinho, que pesavam 120 quilos e o outro cavalos os 80 quilos de ferragens. Ambos íamos a pé. A carga era na verdade bastante para os dois animais, mas não tínhamos outra solução. As pedras tínhamos pendurado em cestos cilíndricos, era um sacrifícios carregá-los. De quando em quando tínhamos que descarregar toda a história e arrumar os mantos, para que as costas dos cavalos não se inflamassem com a pesada carga. Morro acima, os cavalos espumaram mas venceram. Alguns diziam que os cavalos não aguentariam. Em três dias estávamos todos em casa de novo.


Agora, tratava-se de serrar madeira com um serrote, para construir o moinho; levou bom tempo até que a madeira estivesse pronta. Esteios, tábuas e cilindros precisavam ser levados às costas para o local. A casa foi construída de 6 X 6 metros, de início já um pouco maior, de modo que pudéssemos fazer trabalhos de carpintaria em tempo de chuva. Depois precisamos construir a roda de água, a roda dentada e outras partes do moinho. Deu um pouco de dor de cabeça, pois foi o primeiro moinho que construí. O nosso pai duvidou sempre se a coisa iria funcionar. Com muito trabalho foi colocado peça por peça. Quando tudo estava pronto, deixamos cair água na roda para ver se a história andava. Soltei assim toda a água que lá havia na roda. O nosso falecido pai dizia, "não seja tão louco, menino". Eu dizia, ou isso aguenta ou quebra de cara! Mas tudo correu bastante bem.


O nosso pai estava muito contente, agora acreditava que ia dar em algo.


O pai passou a moer então para 42 famílias. Êle móia muitas vezes toda a noite. Recebia 800 réis por um saco de milho, era pouco demais. Antes tínhamos pago o mesmo e precisávamos nós mesmo girar com a mão. O meu irmão e eu resmungávamos muitas vezes ao girar. Agora acabara.


Eu não fiquei muito tempo mais em casa. Saí como carpinteiro, para exercer atividade em outro lugar.


Dois anos fiquei longe de casa. Nesse tempo, economizei uns bons tostões. Comprei mais três cavalos e mais uma vaca. O nosso pasto precisou ser ampliado. Foram compradas mais terras. Tínhamos trabalho a valer. A casa foi um pouco ampliada e mobiliada com os móveis mais necessários. Nós tínhamos tudo construído com as nossas próprias mãos.


Passado um certo tempo em casa, montei um dia o meu cavalo e saí de novo á serra de Santa Catarina, ao local L. e à fábrica, onde tinha trabalhado como carpinteiro. Fui empregado de novo, logo tornei-me mestre e recebia 1 mil réis por hora. Era um bom dinheiro.


O português já podia falar bastante bem. E também andar a cavalo. No planalto, todo aquele que anda a pé é visto como vagabundo, como também eu havia sido. Até mesmo um malandro anda a cavalo.


Lá trabalha-se principalmente com gado. A terra é em geral de qualidade inferior. Um fazendeiro precisa ter muita terra, para que possa sobreviver. Para o verão, o campo, e para o inverno, a mata. No verão o campo é bem verde e no inverno cinza. O gado vai então para a mata. Não vai para o curral. Tudo que não é resistente, perece. É um procedimento totalmente diverso da Alemanha.


Estive com um fazendeiro. Êle tinha 12.000 hectares de terra e 1.200 cabeças de gado soltas. Um certo tempo houve pouco trabalho na carpintaria. Construí então um moinho movido a água. Foi bastante difícil. Estradas transitáveis não havia ao local onde o moinho devia ser montado. Todo o material foi levado a lombo de cavalo e de boi. As pedras de um metro de diâmetro foram presas no meio com traves de madeira e dois bois atrelados à frente. Tudo corria muito devagar, pois ia-se por mata, várzea e pedras. Para 3 quilômetros gastamos quatro dias. As pedras de moinho coloquei-as sozinho. Foi um trabalho duro. A comida, que recebi, não era das melhores. Pão não era conhecido. Camas não havia. Cada um dormia sobre couros, quando havia. No inverno, faz muito frio e as casas de madeira não têm vedações. Muitas são feitas de tábuas de pinheiros desfiadas, canas, paus ou barro. Móveis não há. Uma mesa, 40 X 70 cm, e duas caixas, isso é todo o mobiliário.


Duas vezes por dia havia feijão preto, carne sêca, toucinho cozido, todo dia. Outra coisa não havia, tinha-se que se ter um estômago resistente. O meu estômago de Holstein era bom, digeriu muito feijão preto.


O homem para o qual construí o moinho, tinha quatro meninas já crescidas. Êle queria dar-me uma, mas não caí na lorota. Isso aqui passou-me várias vezes. Essas moças querem por força os alemães. Mas é uma raça totalmente outra. Por isso, mantive um certo sentido de distância. Para um homem jovem, isso não é tarefa fáci.


À noite, as pessoas contam todo tipo de estórias. Não se pode imaginar como essa gente é supersticiosa. Sabia muito dessas estórias de fantasmas, mas esqueço-me, pois não acredito nelas.


Essa gente também é religiosa. Mas o melhor é que enganam como podem. Empregam todos os truques possíveis.


Quando se viaja com êles, são muito gentís, mesmo hospitaleiros. Fiz algumas viagens com êles e sempre dei-me muito bem. O que sabem bem é lançar o laço e cavalgar, e, em geral, tratar com animais bravos.


Um dia encontrei uma tropa de 80 porcos grandes. Vários deles tinham as pálpebras dos olhos costuradas. Perguntei a razão. Responderam-me dizendo que os porcos eram muito ruins, mordiam mais do que cães bravos. Antes não podiam conduzí-los. Agora, tudo corria bem, pois sempre tinham o focinho na terra, seguindo o cheiro do outro. Algo assim nunca tinha visto na vida.


Muito interessante são também as corridas de cavalos. Ajuntam-se centenas de cavaleiros, para apostar e assistir a corrida. Essa é feita na rua aberta. Correram os dois cavalos principais, todos os demais tiram as selas e a corrida começa. Tudo que tem pernas corre, até mesmo burros. Morre-se de rir.


As apostas são altas. Eu nunca apostei muito, pois há engôdo demais. No máximo de 5 a 10 mil réis, pois conhecia muita da gente. Vi muitas vezes que pessoas perdessem e ganhassem em uma noite de jôgo de cartas vários contos. Muitos deles jogaram casas e sítios. Pediram-me várias vezes para jogar junto, nunca o fiz porém, pois quando não se joga, sempre se ganha.


Voltando ao assunto: quando o moinho esteve pronto, quis-se fazer uma grande festa. Não quis ficar tanto tempo e peguei dois burros como último pagamento. Montei num deles, o outro deixei-o ali para vir buscá-lo numa outra oportunidade. Cheguei logo, o burro era muito bom em andar. Uma semana mais tarde passei de novo por lá, fiquei uma noite, mandei o meu cavalo à noite anterior á cidade, pois no dia seguinte queria levar o burro.


De manhã, selei o burro, despedi-me e parti. Na primeira meia-hora, o burro andou bem, passou porém a andar cada vez mais lentamente. Alcançamos uma pequena mata e precisamos passar uma ponte que tinha um pequeno buraco. O burro empacou e não queria se mover. Desci para puxá-lo, mas êle não queria - o buraco era apenas do tamanho de uma mão. Nada se podia fazer, nem por bem, nem por mal. Perdi a paciência, sentei-me novamente sôbre ele, dei as esporas e o chicote, até que então acreditou, agora tenho que andar. Foi uma sorte que as esporas eram afiadas e fortes, pois senão não o teria movido do lugar. Nunca pensei que os burros pudessem ser tão cabeça-dura. Um meio caminho tudo correu sofrivelmente, logo precisei usar de novo as esporas.


A trancos e barrancos cheguei assim à estrada principal. Ali pensei em cavalgar junto com vários outros cavaleiros. Vieram dois e cavalguei com êles. Por um certo tempo foi com êles, depois tudo tornou-se rápido demais para êle. Eu e êle nos matamos, por fim estava esgotado. À meia-noite cheguei em casa. Gastei trêz vezes mais em tempo do que com um outro animal. No dia seguinte, todos os ossos me doíam. O burro foi vendido no mesmo dia como burro de carroça.


Pouco depois construí para um homem um moinho de serrar movido a água. Quando esteve pronto, continuei com os trabalhos de carpintaria. Havia de novo muito trabalho, muitas novas construções deviam ser feitas.


Algum tempo depois, toda a cidade se encontrava umj dia sem luz. O dono da usina elétrica veio até a marcenaria. Explicou-nos o que acontecera. O condutor de água tinha escapado da rochado, deslizado com a geada. Estava há 25 metros de altura. Precisava-se fazer um de madeira provisório. Recebi a encomenda da fábrica de consertar a coisa tão logo quanto possível. Vieram várias charretes, nas quais fomos levados. Éramos dez homens. Os dez quilômetros até a usina elétrica deixamos logo para trás. Quando ali chegamos, vimos a coisa. Precisava-se levar troncos compridos de pinheiros para apoio. A água precisava ser desviada e o rio estava na época demasiadamente cheio.


Era um trabalho perigoso. Dois alemães ali moravam, que manejavam a usina. Êles nos alimentaram. Havia muito boa comida. Só as camas não prestavam. Saímos e procuramos musgos de árvore, fazendo deles as nossas camas. Como não estavam sêcos, à noite não nos esquentávamos. Após algumas horas deitados, levantava-se e sentava-se ao fogo. O fogo não podia apagar, sempre havia alguém ali sentado. Fazia bastante frio, geava todas as noites. Em uma semana estávamos prontos e contentes em poder dormir de novo em cama razoável.

Assim, um trabalho seguia-se ao outro. Agora, trabalhava todo o dia na fábrica. Queria ali ficar até o Natal. A festa de Natal queria passar em casa.


Cheguei em seis dias em casa, houve muito contentamento em ver-nos, festejamos o nosso Natal alemão. Pelo Ano Novo queria estar de novo fora, a minha mãe achava, porém que devia ficar até o início do ano. Fiquei e também festejei o Ano Novo e o dia dois de janeiro, aniversário do nosso pai. Naqueles dias a nossa mãe adoeceu gravemente e faleceu no dia 7 de janeiro, dia de aniversário do nosso irmão mais novo. Foi um golpe duro para nós. A nossa irmã Erika, de 14 anos de idade, devia continuar com os trabalhso caseiros. Não era fácil para ela. O nosso pai ajudou-a muito e tudo correu bastante bem.


Após algum tempo comprei um novo veículo para levar eu mesmo os nossos produtos. De vez em quando levava também alguma carga.


Um dia, levei uma família a 25 quilômetros de distância. O caminho era muito ruim e estreito. No trajeto, um cavalo caiu. Como os animais estavam muito calmos, não aconteceu nada. Uma hora mais tarde virei com toda o carregamento, que caiu barranco abaixo; além de machucaduras, nada me aconteceu. Livrei rapidamente os cavalos e trouxe-os para o caminho. Depois, olhei para o caído. Estava naturalmente totalmente só. Nessa história, apenas tinha-se quebrado uma perna de mesa. Algum tempo depois vieram dois cavaleiros, não podiam passar. Ajudaram-me a carregar de novo a carroça.


Em uma hora estava chegado. Recebi 18 mil reis. No dia seguinte, voltei para casa com a carroça vazia. O caminho não usei mais por muitos anos, era perigoso demais.


Algum tempo depois, fiz uma nova viagem e passei pela localidade Corridas. Lá havia uma ponte pênsil. Estava já muito desgastada. Não podia passar por cima com cavalos. Já havia buracos de vários metros, por cima havia tábuas de oito polegadas. A carroça devia passar por cima puxada a mão. Puxava pela frente e um homem que ia comigo empurrava por trás. Como havia um grande obstáculo, precisava puxar bem para que pudesse passar, e assim fazia bastante força. De repente, quebrei. Segurei-me na barra, senão teria caido 10 metros no rio, entre pedras e água. Recuperei-me uim pouco e conduzi a carroça pelo resto da ponte. Não aconteceu mais nada. A ponte tinha 40 metros de comprimento. Mais tarde, fizeram uma passagem pelo rio, ficou então melhor, mas nem sempre, pois quando vem um temporal, os rios sobem logo. É risco de vida passar, a correnteza é forte demais.


Estava já muitos anos em casa. Fazia trabalhos na terra e, em tempo de chuva, de carpintaria. A criação de abelhas de mel comecei com uma caixa. Depois tinha 50, tudo feito principalmente em tempo de chuiva. Depois de algum tempo, o meu irmão mais novo casou-se. A sua mulher continuou com a economia doméstica.


A nossa irmã queria sair por algum tempo de casa. Anos mais tarde faleceu também o nosso querido pai no dia 5 de outubro de 1930, após 11 dias de doença.


Fiquei com o meu irmão Ernst, saía muitas vezes e trabalhei como carpinteiro. Os últimos três anos fiz sobretudo trabalho de terra, pecuária e criação de cavalos e de abelhas. Nos primeiros tempos, o gado desenvolveu-se bem. De um momento para outro tiveram peste e perdemos 13 peças. Em 4 ou 5 dias as reses estavam tão magras que não podiam ser reconhecidas. Não só nós, mas também outros perderam muito gado. Com os cavalos tudo ia bem, perdemos apenas dois animais em todos os anos.


Um dia fui com todos os nossos produtos à localidade Brusque, distante 84 quilômentros. Também levava ali seis sacos de batatas, cada saco com 50 quilos. Pelo caminho ouvi dizer que lá eram muito baratas e que não as venderia. Quando já tinha viajado 40 quilômetros, desci uma ladeira. De repente, quebrou-se a barra. Como tinha bons freios, por sorte não se passou. Isso aconteceu ao passar pela casa de um cutileiro, era um italiano. Não quis que ali passasse a noite. Precisava, com ou sem vontade, descarregar o meu veículo e partir com os meus cavalos à procura de um local de pernoite, o que achei depois de uma hora. Não havia cama, apenas terra nua. Fiquei contente em ter um teto sobre a cabeça. Também não havia o que comer, a minha tinha deixado na carroça. Parti logo com o pessoal que ali morava à procura de uma barra de tração. Encontrei uma que precisava ser trabalhada. Consegui ferramentas e voltei com isso e com os cavalos à minha carroça. Ali aprontei a barra, foi uma trabalheira, em casa teria sido fácil.


Quando estava pronto, continuamos, e cheguei numa pequena venda. Ali troquei cinco sacos de batatas por um cavalo. Não tinha boa aparência. Pensei, você vai vendê-lo a qualquer preço se êle andar apenas 10 quilômetros.


(Observação de Horst Missfeldt: aqui termina o relato. Faltam 6 folhas manuscritas, que se perderam).


Tradução do alemão:  A.A.Bispo




Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do autor e do tradutor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
"
O Caminho ao Brasil dos Missfeldt e 'Recordações da Floresta do Brasil' de Willi Missfeldt (ca. 1935). Pesquisas genealógicas de Horst Missfeldt". Trad. A.A.Bispo  Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 139/19 (2012:5). http://www.revista.brasil-europa.eu/139/Horst-Missfeldt.html