Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Foto A.A.Bispo, Andalsnes (2012) ©

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Fotos A.A.Bispo, Åndalsnes(2012) ©Arquivo A.B.E.


 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 139/7 (2012:5)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N°2925


A.B.E.


Substituição de imagens como indicativo de transformações do edifício cultural
Da barca na tradição eclesiástica e secular nacionalista
ao trem-capela do Serviço de Assuntos Eclesiais da Noruega

 
Foto A.A.Bispo, Andalsnes (2012) ©

A figura da vida como viagem tem sido constantemente considerada nos estudos culturais euro-brasileiros, em diversas ocasiões e sob diferentes aspectos. A comparação do trajeto do homem pela existência com uma viagem pelo mar revela-se como fundamento de uma linguagem simbólica relacionada com naves, marujos, capitães, mestres, contra-mestres, gajeiros e mastros que se manifesta em expressões tradicionais no Brasil e em muitos outros contextos culturais. Ela determina cortejos, representações, encenações de lutas, danças, cantos e, consequentemente, também expressões musicais.

Já há décadas tem-se salientado a necessidade de, no estudo das tradições de linguagem visual náutica do Brasil e de Portugal, considerar-se a literatura referente ao tema em outras áreas de conhecimentos, em particular daTteologia. Uma das razões dessa exigência reside nos estreitos elos de expressões relacionadas com a imagem da nave com o ciclo do ano do calendário religioso.

É no âmbito religioso que a imagem da nave vem sendo usada através dos séculos nas suas dimensões mais amplas e profundas. O seu tipo no Velho-Testamento é primeiramente o da arca de Noé; na tradição eclesiástica, surge como nave da Igreja e figura da Igreja, tendo sido a tradição interpretativa e as diversas possibilidades de leitura mais diferenciada de sentidos tratada na literatura teológica.

Os trabalhos imagológicos desenvolvidos no contexto euro-brasileiro têm apontado a exigência de se considerar com mais cuidado e mais específicamente sob uma perspectiva teórico-cultural os elos com a linguagem visual da tradição não-bíblica, em particular greco-romana.

Nos ciclos de estudos dedicados a processos culturais no contexto Mediterrâneo/Atlântico, salientou-se o sentido fundamental da imagem da nave e do navegante na ordenação simbólica da visão do mundo e do homem nos seus elos com o mundo de navegação grega da Antiguidade e suas referenciações com a narrativa bíblica. (http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Euthymenes.html)

Nesse contexto, revelou-se o significado da perspectiva a ser considerada na linguagem náutica, ou seja, a atenção a ser dada não tanto ao partir, mas ao chegar de uma viagem através de tenebrosos mares e de terras ou situações conotadas negativamente. É com base nesse direcionamento da atenção que se pode entender características da linguagem visual que surge, à primeira vista, como de difícil compreensão pelas suas conotações dionisíacas, o que abre novas perspectivas para estudos de festividades do ciclo do calendário cristão que, como em festas natalinas tradicionais e sobretudo no carnaval.

No ciclo de estudos nórdicos que se seguiu, a temática da nave novamente se impõe. Já nos trabalhos desenvolvidos na Islândia considerou-se o significado da nave na antiga literatura nórdica das sagas. A imagem é foco de atenções de museus e centros de pesquisas. Também aqui, com a cristianização, antigas figuras pré-cristãs passaram a ser referenciadas segundo a narrativa bíblica do Velho Testamento e sua reinterpretação segundo o Novo. (http://www.revista.brasil-europa.eu/132/Centro_de_sagas.html)

A partir dos resultados dos estudos realizados no Mediterrâneo, que demonstraram os elos da chegada do navegante de uma viagem errante de regiões conotadas negativamente, do oceano, do Sul e da África, coloca-se a questão de uma similar perspectivação da figura da nave na tradição tipológica nórdica, onde as diferentes condições geográficas impõem diferenças. Os estudos realizados na Islândia tiveram, assim, continuidade na Noruega.

Foto A.A.Bispo, Andalsnes (2012) ©

Se o ciclo de estudos no contexto Mediterrâneo/Atlântico foi dedicado a processos culturais sob o aspecto do esclarecimento de edifícios de concepções e imagens perante tendências obscurantistas de fundamentação religiosa no presente, o ciclo de estudos nórdicos dirigiu a sua atenção à intensificação de visões estreitas e correntes obscurantistas de natureza nacionalista.

Não é recente o uso da imagem da nave e da linguagem visual náutica em geral em sentido secularizado, em particular a serviço de concepções político-culturais nacionalistas. O uso da imagem em expressões festivas populares, dando continuidade a tradição de remotas origens conservada na esfera religiosa, tem sentidos que se relacionam com o indivíduo e com a coletividade.

Como figura da comunidade, ainda que representada em folguedos de forma lúdica como tipo de situações superadas ou críticas, a imagem, na linguagem dos sinais, sinaliza a nave que deve ser condutora, a da igreja e o paradigma mariano. O sistema da ordenação visual constituído por tipos e anti-tipos, de antiga proveniência e não restrito ao Cristianismo, já vigente também na Antiguidade clássica, possibilita não apenas diversas contextualizações de imagens-tipo, mas sim também a secularização da imagem referencial.

Em lugar da Igreja, da nave de São Pedro ou mesmo da barca de Maria, a figura condutora pode passar a ser a de um corpo coletivo definido segundo critérios como o de nação, grupo social ou comunidade determinada por laços étnicos ou outros. (a respeito, e.o. A.A.Bispo,Typus und Anti-Typus: Analyse symbolischer Konfigurationen und Mechanismen zur Erschliessung neuer komparatistischer Grundlagen für den interreligiösen Dialog und den Dialog der Kulturen. Colonia: I.S.M.P.S., 2003, 113-116)

Essa característica do sistema de ordenação visual explica o significado da imagem da barca e de expressões tradicionais relacionadas com a simbólica náutica em empreendimentos educacionais dos anos 30 no Brasil. (A.A.Bispo, Martin Braunwieser, Colonia 1991, 241 ss.)

O uso aplicado de conhecimentos ganhos em pesquisas culturais empíricas de folguedos de barcas, chegancas, nau-catarineta, marujadas e outros em parques infantís de São Paulo nessa época foi considerado em diversas ocasiões e, em particular, há dez anos, na abertura do Congresso de Estudos Euro-Brasileiros pelo encerramento do triênio dos 500 anos do Descobrimento.(A.A.Bispo, "Musikwissenschaftliche Forschung, Kulturgeschichte und Didaktik identifikatorischer Formungsprozesse", Musik, Projekte und Perspektiven, Colonia: A.B.E./I.S.M.P.S./I.B.E.M. 2003, 40)

Salientou-se, nessa ocasião, as complexas ambivalências que se estabelecem no uso da imagem. Uma vez que as expressões culturais tradicionais relacionam-se com concepções religiosas resultantes de resignificações de imagens bíblicas e não-bíblicas, o seu emprêgo educativo sugere referenciações com comunidades locais, regionais ou nacionais, e o intuito de agentes educadores e animadores culturais pode ser antes marcado por concepções nacionalistas, socialistas ou outras.

Torna-se necessário, assim, um particular cuidado diferenciador na apreciação do emprêgo da linguagem náutica em atividades pedagógicas do passado e também no presente. O uso da imagem da barca em encenações, explícito ou subjacente, também em sentido figurado na linguagem insere-se em tão antiga e multifacetada tradição, possui pelo próprio sistema tantas possibilidades de referenciações e associações, interpretações e resignificações que exige particular atenção tanto do analista como de agentes educativos e político-culturais.

Esse cuidado diferenciador na análise e na prática educativa e cultural não pode, porém, basear-se apenas na figura da nave, da barca, da arca ou similares, com as suas múltiplas implicações relacionadas com a vida do mar. Esse significado da navegação e do navegante no sistema de ordenação visual da visão do mundo e do homem, de remota proveniência, indica relações fundamentais do edifício de concepções e imagens com a experiência do homem em viagens pelo mar, nas quais necessita orientar-se pelas constelações, em particular por aquelas próximas ao Norte, à estrêla polar.

Todo o sistema visual é marcado, assim, pela necessidade de orientação na viagem pelas águas, no sentido real ou metafórico, existencial ou figurado e transcendente. O analista e o agente educacional ou político-cultural deve, assim, dirigir a atenção aos critérios de orientação que determinam o complexo no qual surge a imagem da nave e outras referênciais à vida navigatória.

Essa atenção pode, porém, ser dificultada em casos onde  a imagem da nave não se encontre explícita, mas sim subjacente. Este é o caso nos quais a comparação do decorrer da vida com uma viagem é expressa com outros veículos. Um exemplo dos problemas que aqui se levantam pode ser analisado no contexto nórdico da localidade de Åndalsnes, na comunidade de Rauma, no Isfjord, um braço do Romsdalsfjord, na Noruega.


Åndalsnes: vida marítima e "trem-capela"

A pequena localidade surge, numa primeira aproximação, pela sua situação geográfica e pelo seu modo de vida tradicional, como exemplo de uma comunidade na qual o mar, a pesca e a navegação desempenham papel fundamental, condicionando a visão do mundo e suas expressões.

Tanto a partir da linguagem visual das antigas sagas, como da realidade da existência nessas povoações em isolados fiordes noruegueses, alcançáveis em muitos casos apenas pelo mar, vivendo da pesca e cujos homens são sujeitos há séculos a constantes viagens, ou mesmo da linguagem da cristã que se manifesta em antiga igreja do século XIII (Rødven), poder-se-ia supor que também em Åndalsnes as referencias naturais de expressões culturais seria a navegação no fiorde. Essa suposição justifica-se também pelo fato de ser a localidade hoje porto turístico visitado por viajantes dos mais diversos países, ponto de partida para excursões nas redondezas, em particular no vale do Romsdalen e nos seus alpes, em particular ao Trollstigen. (http://www.revista.brasil-europa.eu/139/Troll-e-Curupira.html)

O observador surpreende-se, porém, em deparar-se com um antigo vagão de estrada da ferro estacionado no porto e utilizado como capela. Esse fato indica o significado da ferrovia para a localidade e sua região, uma vez que é procurada pela beleza natural do trajeto ferroviário, decantado como um dos mais belos da Europa, em parte percorrido por trens históricos com locomotivas a vapor. Desde a construção da linha férrea, terminada em 1924, a localidade passou a ser associada com o trajeto ferroviário que liga o porto a Bjorli.


O vagão possui no seu interior um pequeno altar, feito com madeira de dormentes, além de quadros com dizeres religiosos e informações.

Embora ali não se realizem serviços religiosos, sendo assim inadequada a sua denominação de "trem-capela", esse vagão não pode ser considerado como simples "gag" para turistas, sem muito sentido, como mencionado em prospectos informativos.

A seriedade do projeto é demonstrada pelo fato de ter sido promovido pelo Serviço de Assuntos Eclesiásticos norueguês. O sentido do projeto reside explicitamente na imagem da vida como viagem, o que é lembrado em textos elucidativos. O vagão substitui aqui a figura da nave de antiga tradição.

Se as expressões festivas marcadas pela simbólica náutica apresenta em geral naus de feição antiga, por representar tipos de situações passadas - do homem ou da humanidade velha -, explicável pelas características do campo de tensão tipo/anti-tipo da ordenação visual, o projeto do serviço de assuntos eclesiásticos da Noruega substitui a velha nave por um velho vagão.

Ainda que aqui se mencione o interesse histórico ou mesmo patrimonial da ferrovia sob o aspecto dos transportes e do desenvolvimento da região, tem-se, na realidade, a continuidade de um sistema de visão do mundo e do homem nas suas principais características estruturais.

A substituição de veículos como meios de locomoção não deixa, porém, de ter consequências mais amplas quanto a sentidos, tanto no aspecto de compreensão da idéia da vida como viagem, também sob o aspecto metafórico.

Também na linguagem visual de remotas origens, a nave que se tornou referencial como anti-tipo da nau dos Argonautas e da arca de Noé, também surge como veículo ou carro. Ela foi vista como sinalizada no complexo de constelações do grande e do pequeno veículo (Ursa Maior e Ursa Menor).

Essa imagem do veículo, entendido em geral como transposição da terra aos céus de um carro puxado por animais, tem a sua exemplaridade referencial determinada pelo fato da proximidade ao eixo e ao Polo Norte da esfera celestial em visão geocêntrica, servindo assim à orientação.

Se essa orientação é sobretudo necessária em viagens marítimas, também o é em viagens por terra, em particular em regiões desérticas.

No caso de um vagão de estrada de ferro, porém, a compreensão da imagem não pode basear-se em similar idéia da orientação segundo configurações próximas a um ponto fixo no mundo de transitoriedade e movimentação.

Diferentemente de uma nau nos mares ou de um veículo ou comboio em campos e em desertos, um trem se locomove em trilhos. As associações que aqui resultam possuem sentidos totalmente distintos, uma vez que se trata de caminhos determinados em rêde, com ramais e desvios, sendo as imagens de uma tripulação de navio ou de membros de uma tropa diversas daquelas de um grupo de passageiros que, inativos, viajam em trem que não sai de seus trilhos.

Essa substituição de figuras na linguagem visual, sendo promovida por um serviço de assuntos eclesiásticos oficial, não deixa de ter consequências tanto para a compreensão de concepções religiosas como para interpretações secularizadas.

Tratando-se de imagem que diz respeito tanto a indivíduos como a coletividades, implica em questões de compreensão de comunidade, de sociedade e de nação, assim como o papel que cabe nelas ao homem na condução de sua vida. A referência a uma viagem pela vida em trilhos, com as suas conotações e sentidos metafóricos, tem consequências mais amplas nas suas implicações a imagens sociais, políticas e mesmo educativas.

Grupo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo




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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Substituição de imagens como indicativo de transformações do edifício cultural. Da barca na tradição eclesiástica e secular nacionalista ao trem-capela do Serviço de Assuntos Eclesiais da Noruega". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 139/7 (2012:5). http://www.revista.brasil-europa.eu/139/Andalsnes.html




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