Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Tejo, Lisboa. Foto A.A.Bispo©

Tejo, Lisboa. Foto A.A.Bispo©

Tejo, Lisboa. Foto A.A.Bispo©

Tejo, Lisboa. Foto A.A.Bispo©

Tejo, Lisboa. Foto A.A.Bispo©

Tejo, Lisboa. Foto A.A.Bispo©

Tejo. Foto A.A.Bispo©

Fotos A.A.Bispo.  
Alto e laterais: entrada do Tejo.
No texto: Chafariz del Rey, Lisboa. Edificado no século XIII e reformado pelo rei D. Diniz. Reconstruído em 1747 e reparado após 1755.
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 138/10 (2012:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2913


A.B.E.


Complexo imagológico da fundação de Lisboa
na figura do Navegador subjacente a referenciações com as Escrituras
- a Saudade de retorno de Ulisses e o Fado da mulher da terra -

Ciclos de estudos na Itália, França, Espanha e Portugal pelos 500 anos da morte de Amerigo Vespucci (1451-1512)
15 anos de abertura do Centro de Estudos Brasil-Europa da A.B.E. na Alemanha

 
A.Bispo
A consciência de que a aproximação e integração de nações na União Européia exigem mudanças de perspectivas e configurações referenciais vem determinando os trabalhos euro-brasileiros.

Essa transformação de perspectivas tem consequências amplas para os estudos culturais referentes aos países extra-europeus em geral, em particular os do continente americano. Devido a elos derivados do passado colonial, entre êles aqueles de idioma comum, a consideração de relações e contextos transatlânticos foi marcada por ângulos de visão de antigas metrópoles, mantendo inserções nos respectivos complexos culturais nacionais.

No caso do Brasil, o sistema referencial nos estudos culturais transatlânticos foi e é privilegiadamente aquele constituido pelos laços com Portugal, modifica-se, porém, de ambos os lados com a integração de Portugal na União Européia e com a do Brasil em configurações continentais americanas. A consideração relacionada de processos interamericanos e transatlânticos com as mudanças de visões e contextos que se impõe é objeto de programa específico de pesquisas (http://www.academia.brasil-europa.eu/ProcessosTransatlanticos.html ).

Do lado europeu, a reorientação de estudos atlânticos até então conduzidos sob a perspectiva dos diferentes contextos nacionais a partir de referencial mais amplo implica no direcionamento da atenção a processos internos europeus.

As relações entre os países do Mediterrâneo europeu e aqueles de outras regiões da Europa no processo integrativo merecem aqui uma particular consideração por diversas razões, entre elas pelos estreitos elos históricos com o Atlântico e com a história colonial das Américas. O estudo relacionado de processos culturais do Mediterrâneo e do Atlântico é objeto de um programa específico da A.B.E. (http://www.academia.brasil-europa.eu/Mediterraneo-Atlantico.htm).

As exigências atuais implicam em refocalizações de desenvolvimentos históricos, dirigindo a atenção a relações entre as esferas do Mediterrâneo europeu e do Atlântico no passado e aos fundamentos de processos que neles interagiram. Implicam, também, em reconsiderações de perspectivas, paradigmas e métodos dos estudos, assim como de correntes de pensamento nos seus condicionamentos históricos e contextualizações sócio-e político-culturais.

A atenção é dirigida, assim, a fundamentos de processos culturais e a bases epistemológicas, e com isso a sistemas de concepções e imagens, às suas estruturas, sentidos e mecanismos inerentes tanto relativamente ao objeto de estudo como às inserções do pesquisador.

Questões de base nas interações entre fatos históricos e imagens

Nesses dois intentos, os estudos voltados a contextos relacionados com Portugal e com os processos desencadeados pelos portugueses em outras partes do mundo necessitam salientar questões de base nas interações entre fatos históricos e imagens.

Esses esforços podem até mesmo trazer contribuições de relevância para os estudos de processos culturais em geral, pois Portugal oferece nesse sentido fundamentais subsídios para a análise e compreensão de um edifício de visão do mundo e do homem de remotas origens por oferecer não apenas no patrimônio material, mas também no imaterial testemunhos da cultura antiga e de suas resignificações condicionadas pela referenciação segundo a narrativa bíblica e a história cristã.

Essas complexas relações entre sistema de imagens - ou imagologia sistêmica - e a história foram interpretadas diferentemente no decorrer dos tempos, devendo ser elas próprias motivos de reflexão.

A solução de contradições ou incoerências quanto a origens levou a esforços de harmonizações com diferentes acentos, dependentes de focalizações partidas antes da Antiguidade greco-romana ou da narrativa bíblica.

As relações entre imagens e narração de cunho histórico são complexas em ambos os lados, ocorrendo narrativas em grande parte míticas em sistema que se revela basicamente imagológico da Antiguidade clássica e de imagens subjacentes na história narrada nas Escrituras. Essa situação exige leitura de sentidos por detrás dos fatos e decorrências apresentadas como históricas, ou seja, de aproximações hermenêuticas, não de leituras superficiais - literais - de textos.

Mal-entendidos em de-mitologizações e reais mitologizações obscurecedoras

Não apenas as referências à antiga cultura greco-romana, como também os esforços harmonizadores com narrações bíblicas no intuito de elucidação de origens passaram no decorrer dos tempos a ser considerados como fantasiosos, estranhamente incompreensíveis e até mesmo absurdos.

Essa incompreensibilidade perante esforços elucidadores do passado merece ser alvo de particular atenção, uma vez que reflete não apenas uma mudança de visões da história e do método historiográfico, que passou a ser positivamente dirigido a fatos e decorrências documentávies por fontes e fundos históricos e arqueológicos.

Essa estranheza para com elucidações do passado que relacionavam dados de proveniência não-bíblica e bíblica revela um afastamento relativamente a um sistema de visão do mundo e do homem que tinha como uma de suas características intrínsecas justamente a capacidade de permitir atualizações de imagens no tempo e permitir reconhecimento de imagens subjacentes a decorrências históricas.

Ao contrário de possibilitar uma de-mitologização esclarecedora, esse processo levou a um situação marcada por obscurecimentos.

A não-compreensão de edifícios da antiga visão do mundo e do homem não significa que esta não continue vigente.

Essa é uma das razões pela qual expressões culturais transmitidas em folguedos, danças, cortejos, instrumentos e formas de culto não são mais compreendidas no seu sentido, dando margens a hipóteses elucidativas segundo construções históricas artificiais.

Para países que possuem em seu patrimônio expressões culturais remontantes à ação colonial da era dos Descobrimentos, como o Brasil, o estudo dessa antiga historiografia segundo critérios adequados adquire, assim, particular importância. Essas releituras vêm sendo empreendidas já há anos, e uma das obras já tratadas no passado voltou a ser alvo de atenções à luz dos estudos dedicados às interações de processos mediterrâneos e atlânticos e seus fundamentos no ciclo de estudos em cidades européias de 2012.

Chafariz del-Rey, Lisboa. Foto A.A.Bispo©
Recordando interações de narrativas bíblicas e imagens: Noé e Tubal

Uma obra singularmente tardia, que testemunha a continuidade através dos séculos de antigas narrativas e imagens, comparando-as e procurando soluções para harmonizá-las é a singular obra do Jesuíta açoriano António Cordeiro SJ. (Historia Insulana das Ilhas a Portugal sugeitas no Oceano Occidental composta pelo Padre António Cordeiro da Companhia de Jesus I, Lisboa: Panorama 1866, Cp. IX, 32 ss.)

É significativo que essa obra se refira às ilhas atlânticas, uma vez que o mundo insular, distante da metrópole, mais longamente manteve antigas tradições, sempre confrontando-se com referências a remotas narrativas do mundo antigo.

Singularmente, uma das grandes preocupações do autor foi a de negar os elos sempre considerados dos Açores com a antiga Atlântica mencionada por Platão. Como sacerdote, partiu de uma realidade histórica da narrativa bíblica. Para êle, teriam sido assim descendentes de Noé que, após o Dilúvio, dirigirndo-se a diferentes regiões, regeneraram a terra destruída pelas águas com numerosa prole, fundando povos.

Esse procedimento do autor corresponde à narrativa bíblica e à antiga tradição interpretativa e histórica, que não apenas faz remontar três principais complexos étnicos ou "raças" aos três filhos de Noé como também determinam sob o ponto de vista da antropologia simbólica a visão tripartida do Homem de tanto significado para a compreensão de expressões culturais tradicionais.

Na sua narrativa, António Cordeiro SJ lembra o papel desempenhado por Tubal, neto de Noé, nas tentativas de relacionar a povoação de Portugal com a narrativa bíblica.

Tubal surge como o primeiro que, atravessando o Mediterrâneo, teria atingido o Oceano e, dobrando o litoral, fundado Setúbal, sendo esta a primeira cidade nas terras do futuro Portugal.

Essa viagem representa, assim, nessa narrativa que procura ver fatos reais no relato bíblico, a primeira navegação entre o Mediterrâneo e o Atlântico.

O primeiro navegador - e o primeiro vindo de fora - como descendente de Noé, o navegador por excelência, seria Tubal, tendo sido a primeira cidade fundada sob so signo da Navegação.

Essa narrativa corresponde, assim, àquela da fundação de cidades em outras regiões, em histórias sempre relacionadas com acasalamentos e fertilidade, como Marselha. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Protis.html)

Compreensão de imagens da Antiguidade grega como fatos e vultos históricos

Essa tendência de entender as narrativas como registros de decorrências reais manifesta-se também na compreensão das referências a divindades e heróis da Antiguidade grega. Sob esta perspectiva, imagens passam a ser consideradas como remontantes a vultos históricos.

Tratando da tradição da fundação de Lisboa por Ulisses, o Pe. António Cordeiro expõe que, logo após a destruição de Tróia e da sua ilha no mar jônio, Itaca, Ulisses teria vindo pelo Mediterrâneo e, entrando no oceano passando pelo Estreito de Gibraltar edobrando a costa lusitana, chegou à foz do rio Tejo. Nele entrando, teria fundado pouco adiante uma cidade, à qual deu o seu nome, designando-a como Ulyssea ou Ulyssipo.

Ulisses não teria chegado a uma terra despovoada, mas sim que já contava com povos derivados de anterior expansão. O rei da Lusitânia, Gorgoris, teria procurado de início expulsar os estrangeiros. Foi, porém, de tal forma conquistado pela amabilidade, arte de persuasão e a aparência de Ulisses, que não apenas deu-lhe licença para fundar a cidade, como também deu-lhe uma filha sua em casamento, assim como outras lusitanas para se casarem com os gregos.

Constata-se, assim, uma imagem segundo a qual nos primórdios de Lisboa teria havido uma união do audacioso, bem falante e fascinoso navegante grego com uma princesa lusitana, ou seja, do homem grego com a mulher da terra, o que corresponde à imagem que se conhece de outras regiões.

A chegada do estrangeiro teria ocorrido em meio a festas de procura de marido, sendo marcadas por desejos femininos e pelo fascínio do estrangeiro.

Como também decorre das explanações do Pe. António Cordeiro, trata-se aqui de situações dionisíacas, uma vez que Noé era considerado como correspondente a Dionysos. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Euthymenes.html)

Tem-se, portanto, também para Portugal a vigência de uma imagem paradigmática do processo colonizador, a do casamento do homem que vem de longe e funda cidades como agente civilizacional com a mulher nativa.

O fado da lusa e suas correspondências: Calipso e Penélope

Quanto à visão dos acontecimentos, trata-se não de uma ida de Ulisses, mas de uma chegada do Navegante errante, vindo de longe, já tendo passado por muitas aventuras, e que é recebido por mulheres entusiasmadas.

No decorrer das explanações harmonizantes do autor, constata-se que também aqui, tal como na fundação de Marselha, é o amor da mulher da terra pelo estrangeiro que desempenha o principal papel, possibilitando o início da colonização.

Referenciando diferentes nomes e acontecimentos da Odisséia com a fundação de Lisboa, António Cordeiro identifica essa filha de Gorgoris com a ninfa Calipso e com Penelope.

Com esse procedimento, o sacerdote açoriano, apesar de sua visão fundamentalmente historizante, passa a  ver nessas duas figuras o tipo da mulher nativa que recebeu o grego em amor. Essas identificações oferecem importantes subsídios para estudos do sistema de imagens e dos mecanismos a êle inerentes.

Segundo a narrativa, a ninfa Calipso, filha de Atlas, que vivia na ilha Ogygia, abrigou Ulisses por sete anos. Amando-o, procurou retê-lo, até mesmo prometendo torná-lo imortal. Este, porém, sempre movido por invencível saudade de retorno à sua terra, recusou esse grande amor. Calipso foi assim obrigada a deixá-lo partir por ordem de Zeus, indo o seu amor tão longe que chegou até mesmo a judá-lo na construção de uma nave. Com a identificação do tipo Calipso com a mulher lusitana, esta surge como tomada de grande amor, com o fado porém de deixar partir aquele que amava, até mesmo ajudando-o em abnegação e dando assim, em tristeza, a sua maior prova de amor.

A identificação da filha de Gorgoris com Penelope oferece outros subsídios para a compreensão da imagem da mulher lusitana no edifício de concepções explanado pelo Pe. António Cordeiro.

Como Penelope era a mulher daquele que partira, casta, surge como modêlo de fidelidade ímpar, pois esperou muitos anos pelo retorno do marido, resistindo aos pretendentes, fazendo-os esperar à medida que desmanchava o trabalho que tecia durante o dia.

A mulher lusitana surge aqui como aquela que passa uma vida à espera, em sonhos, a chorar, a orar e jejuar, tecendo em obra sem fim, em suprema fidelidade.

Essa identificação da mulher lusitana com Penelope implica também na harmonização da imagem da terra alcançada pelo grego com a antiga Arcádia.

Como em outros portos de sua Odisséia, Ulisses também esteve apenas de passagem na colonia no Extremo Ocidente. Na explanação de António Cordeiro, alguns dos gregos, separando-se de Ulisses, passaram a roubar as terras lusitanas, fazendo com que os nativos se rebelassem, o que levou à partida do navegante.

Tem-se aqui, assim como na história da fundação de Marselha, a imagem de que, após a chegada em entusiasmo e em festas de união sexual e êxtase, o Navegador e os seus foi causa de conflitos e confusões, ocorrendo então o seu "despacho" pelos nativos, partindo então novamente às suas andanças errantes a caminho do retorno.

Para explicar a permanência da fundação, o autor explica que, pelo amor de sua filha, o rei local assentou paz com os gregos, permitindo-lhes que ali ficassem. Ter-se-ia fundado, assim, a nova Ulyssea, que seria Lisboa, e isso, segundo o cômputo do padre açoriano, no ano 1180 A.C.. Essa construção histórica parte de uma nova cidade, da "nova Ulyssea", ou seja, de uma fundação de gregos e lusitanas que seria consequência da partida do primeiro que chegara e abrira o processo cultural, partindo novamente para fora, errante pelas encruzilhadas do mundo.


Da fundação de Setúbal por Tubal à fundação de Lisboa por Eliza

O Pe. António Cordeiro registra que, segundo alguns, Ulisses não teria sido uma personagem histórica, mas sim uma imagem, "uma pintada idéia, ou exemplar de hum perfeito Heroe; ou Capitão, como fazião Poetas, e Filosofos gentios". Para esses, ainda mais do para o próprio sacerdote, a única fonte para a explicação da fundação de Lisboa era a bíblica.

A construção histórica, sobretudo neste caso, partia necessariamente da descendência de Noé. Supunha-se que com Tubal, o neto de Noé, que viera após o dilúvio pelo Mediterrâneo até o Ocidente, também chegara Eliza, bisneto de Noé. Enquanto Tubal fundou Setúbal, Eliza fundou Eluzon, Elisboon e Elisbona, com o significado de "habitação de Eliza". Passou a ser chamado de Luso e, o seu povo, de Lisias.

Procurando conciliar essas duas elucidações das origens de Lisboa, António Cordeiro defende a ideía de ter sido a fundação de Ulisses uma reedificação da cidade fundada por Eliza. A Elizbon, Elisboon ou Elisbona, reconstruída e aumentada por Ulisses, teria passado a ser chamada de Ulyssea, Ulyssipo ou Ulyssipolis.

Harmonização do fundador de Lisboa com Phoroneus e Prometheus

Sem perder a sua preocupação em harmonizar narrativas, o autor passa também aqui estabelecer identificações com personagens gregos. Eliza corresponderia a Phoroneo e a Prometeus. Este seria o sentido da oitava 21 do canto 3 de Camões segundo o Arcebispo D. Rodrigo da Cunha (Eclesiastica historia de Lisboa, I, cap. 2 e 3).

A identificação de Eliza com Phoroneos e Prometheus merece uma particular atenção por oferecer novos subsídios para a compreensão do sistema de imagens. A identificação do bisneto de Noé como fundador de Lisboa com Phoroneo surge como coerente, uma vez que nas fontes, Phoroneo é citado como o primeiro homem de regiões, rei, inventor do fogo e introdutor da cultura, sendo designado como pai de homens. É mencionado como criador do homem segundo a imagem dos deuses, conformando-o da terra molhada. O seu nome encontra-se no epos Phoronis (ca. 600 A.C.), no qual baseou-se Akusilaos. (Der Kleine Pauly, Lexikon der Antike, Munique 1979, 4,813).

A identificação de Eliza com Prometheus surge também como coerente, uma vez que também é citado na antiga literatura como aquele que trouxe de novo o fogo celeste aos homens que havia sido retirado por Zeus e, portanto, como regenerador.

Essa identificação chama a atenção ao fato de Prometheus, que havia roubado o fogo celestial, trazendo-o aos homens, ter procurado enganar a Zeus, fazendo que este o retirasse dos homens, voltando aquele porém novamente a trazê-lo.

Compreende-se, nesse segundo ato de Prometheus, a identificação feita com um personagem da narrativa bíblica, uma vez que tratou-se de uma fase de recuperação após o dilúvio. A narrativa, porém, menciona um ato anterior, um primeiro feito, o de ter trazido o fogo roubado aos homens. Na coerência das harmonizações, deve-se partir assim de uma imagem já vigente na humanidade pré-diluviana  e mesmo anterior, remontante a origens.

Fundamento imagológico nas suas relações com as trevas e a noite

Como decorrência das harmonizações, a separação do fogo celestial e à sua descida dirige a atenção à imagem da separação das trevas da luz da Gênesis, da noite do dia, interpretada como a da separação natureza espiritual demoníaca daquela angelical. Trata-se da noite como portadora das trevas separada, despachada, errante. De fato, registram-se referências negativas quanto a Prometheus, que é mencionado como falso, enganoso, agressivo e ladrão.

Essas caracterizações da imagem-tipo a partir de Prometheus encontram paralelos também na de Ulisses. Esse herói surge como valente, manhoso e cheio de artimanhas, fascinante e enganoso, inteligência e possuidor da arte de convencer, mentiroso, trickser por excelência, que chegou a passar-se por louco na tentativa de não participar na guerra de Tróia, onde teria sido o inventor do cavalo de Tróia. Sempre em contínuas andanças, oferece uma imagem de alma por assim dizer perdida em constate Odisséia, por todas as encruzilhadas, procurando retorno.

A partir dos resultados dos estudos desenvolvidos no contexto de Marselha relativamente a Euthymenes, o Navegante que chegou da África, ter-se-ia em Portugal situação similar quanto a circunstâncias dionisíacas e quanto a uma imagem sombria que, na designação gálica, corresponde à divindade Esus.

Essa divindade, que aos olhos romanos surgia como um Mercúrio gálico, representava, na esfera das sombras e da barbárie, um papel condutor equivalente ao de Hermes. Como na história de Ulisses - e também na de Noé - vinha de uma situação marcada por guerras, compreendendo-se assim elos com Ares/Marte. Como portador de trevas, personificando a noite, surgia em campo de tensões com Apolo, substituindo-o no seu papel condutor na noite do dia e no inverno no ciclo do ano.

Esse quadro de associações negativas relacionadas com a chegada do primeiro das doze divindades gregas à terra na história de colonias, surge no caso de Portugal com particular intensidade devido ao fato de beirar o Oceano ocidental, extremo da terra então conhecida.

Esses fundamentos imagológicos foram transportados às regiões extra-européias no decorrer da colonização e da cristianização, mantendo-se ainda vivos em determinadas expressões culturais no Brasil.

Perspectivas para análises demopsicológicas. Saudade e Fado

A análise e compreensão desses fundamentos abre novas perspectivas para diferentes estudos, neles incluindo-se reflexões de cunho demopsicológico.

Constata-se, assim, que o sentimento de saudade encontra-se presente já nos primórdios de processos imagológicos derivados da leitura de sinais do mundo perceptível pelos sentidos.

A atenção é dirigida aqui à separação da noite do dia, do "despacho" da noite personificada e das suas caminhadas errantes, imbuida de desejo de retorno. Um sentimento de separação de uma unidade perdida e uma saudade de retorno à pátria nas perambulações pelo mundo e que não encontra pouso em nenhum lugar surgem como próprios de uma natureza espiritual de associações com trevas, relacionada com a imagem do navegante.

Essas características negativas da linguagem de imagens surgem como compreensíveis, uma vez que o mareante é eternamente imbuído de saudades, da tristeza da separação da pátria, de desejos de retorno, deixando amores em todos os portos, sendo a sua imagem aqui marcadas pela prostituição que se constata em cidades portuárias e, por fim, por conflitos.

Se a saudade surge como um sentimento antes do homem, as diferentes narrativas revelam o fado daquelas que amando o errante, a êle até mesmo presas por elos de desejo, são obrigadas a deixá-lo partir, esperando toda a vida pelo seu retorno.

Complexas situações psicológicas podem ser, assim, tratadas a partir do edifício de imagens. Tratando-se de mulheres da terra que recebem em êxtase essas personificações do espírito errante, tem-se, no complexo de correspondências do antigo edifício da visão do mundo e do homem um elo com a terra, aquela marcada pelas águas do oceano. Poder-se-ia ver, na consequência das correspondências, a imagem aqui vigente de Ariadne, a abandonada de Theseus, a mulher de Dionysos.

Importante é porém salientar que as elucidações harmonizadoras de narrativas bíblicas e não-bíblicas, de fatos e imagens não terminam com a chegada desse primeiro "mensageiro", mas que, após a sua ida para fora, o seu "despacho", têm continuidade no desenvolvimento das coloniais, agora sob conotações positivas, sob a condução de Hermes, a personificação do comércio.

Grupo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo



Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "
Complexo imagológico da fundação de Lisboa na figura do Navegador subjacente a referenciações com as Escrituras- a Saudade de retorno de Ulisses e o Fado da mulher da terra". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 138/10 (2012:4). http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Ulisses-Saudades-e-Fado.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


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