Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Saint Victor de Marseille. Foto A.A.Bispo©

Saint Victor de Marseille. Foto A.A.Bispo©

Saint Victor de Marseille. Foto A.A.Bispo©

Saint Victor de Marseille. Foto A.A.Bispo©

Saint Victor de Marseille. Foto A.A.Bispo©

Saint Victor de Marseille. Foto A.A.Bispo©

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 138/9 (2012:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2912


A.B.E.


A irradiação do conhecimento do Invicto e o sol como luminar na linguagem de sinais
Do culto a Apollon Python dos comerciantes marítimos gregos a Saint Victor de Marseille

Ciclos de estudos na Itália, França, Espanha e Portugal pelos 500 anos da morte de Amerigo Vespucci (1451-1512)
15 anos de abertura do Centro de Estudos Brasil-Europa da A.B.E. na Alemanha

 

O ciclo de estudos levado a efeito em Marselha no corrente ano inseriu-se no programa de pesquisas "Mediterrâneo/Atlântico" da A.B.E. (http://www.academia.brasil-europa.eu/Mediterraneo-Atlantico.html) e teve como objetivo estudar de forma contextualizada fundamentos de relações entre processos culturais mediterrâneos e atlânticos nessa importante cidade de comércio portuário da França.

O seu escopo último foi de esclarecer bases sistêmicas de um edifício de concepções e imagens da área Mediterrânea também transmitido ao Brasil no decorrer da história colonial e cristianizadora. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Estudos-e-Esclarecimento.html))

Os estudos foram, assim, marcados por intentos esclarecedores, procurando contribuir à conscientização do valor patrimonial para a Humanidade dos esforços feitos no decorrer da história por uma libertação das trevas representadas pelo não entendimento de edifícios imagológicos de visões do mundo e que, pelos seus enigmas, oferecem possibilidades a instrumentalizações de toda a ordem.

Esse aguçamento da consciência quanto ao dever da pesquisa em procurar caminhos para o estabelecimento de uma perspectiva científica no tratamento de questões culturais a serviço do Esclarecimento foi uma decorrência do interesse e da sensibilidade despertados por complexos relacionados com a "Aufklärung" por motivo das comemorações, em 2012, dos 300 anos de Friedrich II, O Grande, da Prússia (1712-1786).

A necessidade de uma intensificação do empenho esclarecedor evidencia-se em toda a amplidão de suas dimensões na atualidade, uma vez que se registram na Europa e em outras regiões do globo tendências obscurantistas de fundamentação religiosa que põem em risco conquistas obtidas pela Humanidade com muitos esforços, lutas e sacrifícios no decorrer dos séculos.

Os ciclos de estudos nos países do Mediterrâneo e do Atlântico europeu decorreram em época marcada pela crise financeira e política de vários países, em particular da Grécia, neste caso acompanhada pela discussão sôbre a sua possível desvinculação político-econômica da Europa e mesmo pelo futuro da União Européia.

Tornou-se oportuno, nessas circunstâncias, dirigir as atenções privilegiadamente aos fundamentos culturais helenos de processos culturais mediterrâneo-atlânticos, para o qual Marselha apresenta condições privilegiadas por ter sido a principal colonia grega do Mediterrâneo ocidental.

Preparando-se Marselha para ser uma das capitais européias da cultura de 2013, o desenvolvimento desses estudos in loco surgem como de particular atualidade, abrindo perspectivas para prosseguimentos e aprofundamentos em futuro próximo.

Questões epistemológicas dos Estudos Euro-Mediterrâneos - "Ocidente Cristão"

O programa Mediterrâneo/Atlântico da A.B.E. teve os seus objetivos determinados em eventos realizados no início da década de 80, quando discutiu-se a necessidade de renovação dos estudos atlânticos em vista das novas condições criadas pelo processo de integração dos países europeus.

Paralelamente, reconheceu-se a necessidade de uma intensificação e renovação teórica dos estudos culturais do Mediterrâneo, aos quais pesquisadores brasileiros contribuiam há muito, entre êles sobretudo Luís Heitor Correa de Azevedo (1905-1992).

Vários estudos foram dedicados no decorrer dos anos ao desenvolvimento do programa Atlântico/Mediterrâneo em diferentes países europeus e da África do Norte, entre êles em trabalhos realizados em cidades da Grécia continental e insular, Malta, Itália, França, Chipre, Egito e Tunísia. Menção especial merecem os trabalhos desenvolvidos na Sardinha ((http://www.revista.brasil-europa.eu/095/Indice095.htm), salientando-se aqui encontro realizado no Instituto Euro-Mediterrâneo na cidade de Tempio-Pausania (http://www.revista.brasil-europa.eu/095/Instituto-Euromediterraneo.html).

Também a cidade de Marselha apresenta-se como um centro dessa área de estudos, sediando um Instituto Euro-Mediterrâneo com vasto programa de atividades, de pesquisas e cursos.

Essa área de estudos designada como euro-mediterrânea, que a distingue pela sua designação de esferas norte-africanas e da Ásia Menor, marcadas que são pelo predomínio do Islão, corre o risco de ser por demais determinada pela compreensão da Europa como "Ocidente Cristão", ou seja, por perspectivas condicionadas por uma categorização do objeto de estudos.

Essa identificação condiciona perspectivas, questionamentos, programas, objetivos da pesquisa, a difusão de conhecimentos, rêdes de trabalho e a formação de especialistas. Significativamente, constata-se a existência de estreitos vínculos eclesiais de instituições. Registra-se também nesse contexto institucional uma preocupação em trazer à consciência os fundamentos cristãos da Europa, contribuindo a uma "Nova Evangelização", com a consequente superação de uma combatida secularização.

Essa determinação de uma área de estudos segundo a qualificação do objeto, posicionamentos e respectivas focalizações impede que sejam consideradas adequadamente questões referentes à esfera Mediterrânea sob as novas condições determinadas pela União Européia, o que vale sobretudo com relação à dinâmica transformatória representada pelas imigrações nas suas múltiplas inserções culturais.

Como é do escopo da Organização Brasil-Europa de Estudos de Processos Culturais, deve-se procurar também aqui uma renovação de áreas disciplinares através de uma já há décadas reconhecida necessidade de direcionamento da atenção a processos, substituindo definições a partir de qualificações do objeto de estudo.

Esse redirecionamento da atenção da pesquisa surge como particularmente significativo para uma cidade portuária como Marselha, que se apresenta hoje como um dos centros mais cosmopolitas, multiculturais e plurireligiosos da França e do Mediterrâneo em geral, e que foi um dos grandes centros do "Ocidente Cristão". A sua história remonta à ação colonial de gregos insulares em remota Antiguidade, o que hoje marca a cultura memorial e mesmo a identidade marselhesa. Somente a atenção dirigida a processos pode fazer jus a complexos culturais determinados por navegações, intercâmbios comerciais, colonizações, imigrações e mudanças culturais, entre elas a Cristianização.

Saint Victor de Marseille. Foto A.A.Bispo©

Saint Victor de Marseille como centro irradiador de saber no "Ocidente Cristão"

Essa atenção dirigida a processos pode ser exercitada no principal monumento histórico cristão de Marselha e que garantiu-lhe posição de primeira ordem na história européia compreendida como "Ocidente cristão": a antiga abadia de São Vitor, considerada como a mais antiga comunidade monacal do Ocidente, de extraordinário significado na história do Beneditismo e dos centros de cultivo do saber do passado medieval.

No patrimônio histórico-arquitetônico marselhês, esse monumento sobressai-se entre as muitas igrejas da cidade pela sua antiguidade e, sobretudo, pelo significado que garantiu a Marselha tornar-se centro irradiador de conhecimentos em dimensões que superaram de muito as fronteiras regionais.

Como talvez primeiro e umd dos principais centros da história monástica, Saint Victor assume significado de primeira grandeza para estudos da história cultural européia, uma vez que os mosteiros beneditinos foram através dos séculos principais centros da vida de oração e do labor, em particular também do trabalho intelectual, locais por excelência no passado de estudos e de cultivo de conhecimentos e das ciências.

Correspondendo a esse papel como centro de estudos, Saint Victor possuiu, no passado, uma biblioteca que entrou na história como uma das maiores e mais valiosas do Ocidente e que, pela preciosidade dos seus fundos, foi alvo de cobiças e roubos.

Sob o Papa João XVIII (+1009), de formação beneditina, o mosteiro recebeu privilégios que fundamentaram o seu florescimento e o seu poderio econômico, que atingiram um ponto culminante sob o monge catalão Isarn na primeira metade do século XI. Um de seus abades - Guillaume Grimoard - , tornou-se papa sob o nome de Urbano V (1310-1370), época da residência pontifícia em Avignon, onde faleceu, sendo levado a Saint Victor.

Circunstâncias de sua fundação e imagens subjacentes

Segundo a tradição, a fundação de um mosteiro no grande porto comercial remontou a iniciativa de um bispo local de nome Proculus que, em 416, pediu a um monge itinerante que ali se encontrava para fundar uma comunidade. Este monge, de nome João Cassiano (ca. 360- ca.435), originário de Belém, havia sido asceta peregrino no Egito, atuara como diácono de João Crisóstomo (ca. 344-407) em Constantinopla e tinha recebido formação teológica e ordens sacerdotais em Constantinopla ou em Roma.

O fundador da comunidade monástica era, portanto, um asceta com vida marcada por perambulações, pela experiência do Egito e da saída desse país de tantas associações negativas no edifício da visão do mundo da Antiguidade, de sua ascensão no espaço helênico do Mediterrâneo, onde obteve formação e erudição, e de sua ida ao Ocidente da Europa como vulto portador e irradiador de saber.

A sua trajetória de vida lembra a do sol, elevando-se das trevas, subindo e irradiando luz, para, a seguir, novamente descer no Poente.

O local indicado pelo bispo de Marselha foi o das encostas ao sul do porto comercial, já há muito de carga numinosa. Tratava-se de uma zona de rochas, utilizada na época como pedreira, e que possuia uma caverna utilizada como local de sepulturas de cristãos martirizados.


As referências revelam, assim, várias relações e interações de imagens marcadas por concepções de gruta e de descida à morte, de mártires, de militantes cristãos que tinham suportado todos os martírios na certeza da renovação da luz sôbre as trevas e da ressurreição.

As referências também permitem reconhecer os estreitos elos entre o culto local dos mártires, a instituição do convento e a vida marcada pelo comércio do porto de Marselha. A função condutora que havia sido no passado desempenhada por guardiães de defesa e legionários na implantação da colonia e nos diferentes conflitos da história de Marselha passava a ser exercida agora pelo comércio, uma realiidade ou expectativa que indica uma mudança de orientação epocal. 

A instituição de Saint Victor reflete essa crucial transformação mental, que diz respeito à população dos regidos e a seus guardiães ocorrida sob a ação do comércio.

Regida pelo comércio, a comunidade de Marselha esteve em condições de possibilitar o florescimento do mosteiro como centro da vida contemplativa e de estudos, transformando-se em bastião irradiador da luz de conhecimentos. Compreende-se, assim, que, no período carolíngio, foram os privilégios financeiros decorrentes do comércio do sal e das taxas alfandegárias que forneceram os meios para o apogeu medieval da abadia.

Problemas hagiográficos derivados de historizações de imagens paradigmáticas

O pesquisador que visite Saint Victor encontra um edifício em situação elevada, com características de burgo de defesa e guarda, da qual descortina vasto panorama com as zonas baixas, o mar e o porto de Marselha. Se externamente pensa entrar em fortaleza militar, no seu interior imerge em espaço marcado por penumbras, como se estivesse numa gruta na qual se valoriza a luz que penetra pelas janelas nas alturas. Iluminadas são também as relíquias dos mártires expostas à veneração, entre elas sobretudo a de São Vítor.


A restauração da igreja em anos recentes teve o cuidado de salientar esses contrastes de trevas e luz, assim como de reduzir os meios expressivos e de culto a elementos essenciais, mantendo, entre as poucas imagens, aquela de São Vítor como milicionário de defesa, tendo no escudo o símbolo da cruz. A seu lado, em livro aberto dos Evangelhos, indicam-se fundamentos da sua interpretação a partir do Evangelho de São Marcos, o evangelista representado pelo leão e por associações com o fogo ou com a luz.


Confrontando com os ossos expostos ao culto, o pesquisador sente a necessidade de mais conhecer a respeito da vida e da razão da exemplaridade de Vitor, do contexto em que viveu e das circunstâncias em que morreu. Nesse intento, supreende-se com a nebulosidade que envolve e história de Vitor e de sua atuação, do início da vida comunitária monástica em Marselha, e mesmo quanto às fundamentações bíblicas do monaquismo.

A literatura hagiográfica manifesta uma absoluta insegurança quanto a fontes históricas, sendo marcada por interpretações contraditórias, baseadas em narrativas remontantes a séculos muito posteriores àqueles dos acontecimentos. As dúvidas relativas à historicidade dos fatos e mesmo do mártir são reconhecidas e claramente expressas na literatura eclesiástica. (B. Kötting, "Victor, hll. Martyrer, Lexikon der Theologie und Kirche 10, Freiburg: Herder 1986, 771-773) )

Vitor surge e é apresentado como defensor do Cristianismo, como combatente vitorioso, apesar de ter sofrido o martírio e e a morte. Assim como o primeiro mártir, Santo Estêvão, também  surgem pedras na sua tortura, contando-se ter sido esmagado sob uma pedra de moer. Segundo testemunho tardio, do arcebispo de Lyon do século V, Vítor teria sido um oficial da legião tebana, um dos soldados cristãos dessa legião que atuara no Egito e que foram mortos no ano 303. Assim como Victor, outros legionários marcaram o culto de mártires em várias cidades européias.

Sendo os dados históricos tardios, sob muito aspectos imprecisos e mesmo questionáveis, a atenção dirige-se ao tipo representado por esses jovens legionários romanos de Tebas e que atuaram em defesa da luz sob um império compreendido como sendo de trevas.


De nomes, imagens e sinais. Victor e "invictus"

Constatando-se a existência de vários mártires venerados sob o nome de Victor em diferentes cidades européias e norte-africanas (Cartago, Milão, Caesarea, Solothurn, Xanten) também êles envoltos em névoas quanto à sua vida e contextos históricos, os próprios hagiógrafos registram interferências e  de narrativas relativas aos vários nomes assim cultuados.

Supõe-se que a resposta a essas situações obscuras se encontra no próprio nome Vítor, que teria sido aplicado a mártires que permaneceram anônimos ou cujos nomes cairam em esquecimento, e que não podem ser identificados.

A exemplaridade que fundamenta o culto corresponderia assim a um paradigma manifestado no nome ou conceito de Vítor.

O caminho para um maior esclarecimento reside no estudo da imagem relacionada com o conceito nas suas relações com a morte pelo martírio.

Essa concepção de que a vitória daqueles que o perseguiram, martirizaram e mataram não representa realmente a vitória em si, indica uma compreensão específica da realidade e, consequentemente, um sistema de imagens relativas à visão do mundo e do homem.

Na consideração dos conceitos de Victor e Invictus deve-se fazer uma distinção importante. A  designação de invicto diz respeito ao invencido e invencível, daquele que não pode ser vencido e que sai sempre por fim vencedor, aquele que morreu mas que ressurgiu.

A qualificação de Invicto ao não-vencível era conhecida de contextos culturais anteriores ao processo cristianizador. A designação surgia relacionada com o sol, como a expressão Sol Invictus demonstra, não podendo ser, porém, considerada indiferenciadamente como correspondente a esse astro.

O sol, o luminar do dia, nasce pela manhã, sobe afastando as trevas da noite e cai no poente; surge na manhã seguinte de novo, renovado, figurativamente como jovem . Ao homem que procura alcançar conhecimento através da contemplação do mundo visível através do intento de ler o sentido de sinais, o sol surge como modêlo de um homem iluminado e irradiador de luz que sobe combatendo as trevas, cai aparentemente vencido, morre, certo de que a luz do dia e um novo luminar do dia surgirão.

Nessas considerações deve-se diferenciar entre o sol, a luz do dia e a origem da luz, constatável nos antigos edifícios de concepções e também compreensíveis a partir da contemplação do mundo natural.

Hermes e o sol como irradiador na imagem do soldado que combate pela luz da luz

Que o sol distingue-se da luz do dia, isso podia ser deduzido do fato do dia alvorecer antes do surgimento do sol, ou de, em dias nublados, o sol não aparecer. Invictus é aquele que é origem da luz, da qual o sol é luminar do dia. Compreensivelmente, no Mitraísmo, era o próprio Mithras, o Mediador, designado como o criador da luz ou Genitor Luminis. Esse era o luminar dos luminares ou o "Sol Invictus" no sentido poético do termo, não correspondendo ao astro, este representado no conjunto das imagens por Hélios e Apolo. Como Invictus, Mithras era o modêlo por excelência da renovação dos dias e do nascer do sol cada dia, um paradigma que indica morte e ressurreição.

Na tradição helênica, essa função condutora cabia sobretudo a Hermes, aquele que descia aos infernos e de lá subia aos céus conduzindo almas (Psychopompos).

A compreensão da linguagem de imagens exige, assim, considerações mais cuidadosas do complexo de concepções relacionadas com Hermes - nas suas dimensões fundamentais de luz da luz, como paradigma de morte e ressurreição que possibilita a renovação nos dias e nos ciclos do ano, assim como na sua representação no conjunto dos 12, com os seus respectivos tipos e anti-tipos.

O sol - e aquele que seguia o modêlo por êle sinalizado - surgia nesse sentido apenas como luminar, ou seja, portador ou veículo da luz, o governante do dia. Correspondendo a luz do dia figurativamente à realidade espiritual, é êle o guardião por excelência, o atirador que com suas flechas combate pelo conhecimento e convicção do paradigma.

Nas suas relações com o espaço, o sol nasce no Oriente e põe-se no Ocidente, surgindo novamente no Oriente no próximo dia. Nas concepções geográficas da Antiguidade, o sol, pondo-se no Ocidente, entrava no reino das trevas no Oceano. Para aqueles navegavam pelo Mediterrâneo, o dirigir-se a Ocidente correspondia a ir em rumo ao poente, à região de supremacia das forças contrárias e à região da morte. Somente a segurança que oferecia a realidade sinalizada pelo sol é que podia dar ânimo aos combatentes. Eram, assim, homens conscientes de se encontrarem a serviço de guarda, de defesa, em combate contra as trevas, dispostos a sucumbir. Com os seus raios, é um atirador em sentido figurado, aquele que combate com flechas ou com lanças.

O culto a Apolo das guardiães de empreendimentos comerciais das colonias gregas

Os fócios que fundaram Marselha provinham de uma colonia grega insular que se dedicava sobretudo ao comércio marítimo. Se o comércio era de importância para as colonias gregas em geral, o era ainda mais para a Fócia, marcada pela aridez da terra, forçando os seus habitantes a desenvolver transações comerciais no contato com outras regiões.

Os empreendimentos em direção ao Ocidente, no caso em particular às bocas do Rhône, procuravam sobretudo obter sal e metais. Os comerciantes e os carregamentos necessitavam ser acompanhados por guardas devido ao perigo representado por piratas e pelo ataque de inimigos, em especial os persas ou medas, também chamados de mouros, e para a proteção da colonia em terra estranha.

A importância da proteção do assentamento colonial manifestou-se no início do desenvolvimento da cidade, quando os conflitos com os naturais levaram a que esta se fechasse, mantendo-se em situação de constante defesa. O govêrno dos empreendimentos encontrava-se assim em mãos de milicianos.

Ao lado de Artemis/Diana, os gregos do mundo colonial que se dirigiram ao Ocidente do Mediterrâneo e fundaram Marselha dedicavam particular veneração a Apolo. Assim, um dos primeiros atos dos fócios quando do estabelecimento da colonia foi o de levantar imagens e instituir locais de culto a Artemis e Apolo. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Notre-Dame-de-la-Garde.html)

No edifício das concepções, ambas as divindades encontravam-se estreitamente relacionadas. Nascidos de Zeus, ambos os filhos de Leto surgiam como atiradores de flechas, tais como raios, tanto a sagitária Artemis como Apolo nas suas funções simbolizadas pelo arco e flecha. Eram irmãos, associados com a luz, uma personificando o luminar da noite, a lua, outro associado àquele que iluminava o dia, o sol. Diferentemente da virgem Artemis, particularmente venerada por mulheres, Apolo - também puro ou repleto da luz ou fogo -, o era sobretudo por homens.  

Apollon Pythios - a imagem paradigmática do soldado que combate o dragão

O sol, como luminar e governante do dia, surge na linguagem das imagens como aquele que com os seus raios combate as trevas. Compreensivelmente, a narrativa conta que o grande ato de Apolo foi o de matar um monstro que subia das profundezas da terra (Gaia), descrito como uma cobra descomunal ou dragão, passando a ser designado de Apollon Python.

Essa imagem pode ser vista como paradigma de todas as representações similares de santos soldados e guerreiros que matam o dragão, entre elas a de Victor ou de S. Jorge. Essa imagem correspondia de forma tão fundamental às concepções de Apolo que foi na forma de Apollon Python que o culto foi introduzido em Marselha.

Um fato crucial nas concepções referentes a Apolo: de guardião de bois a Musagetes

Há um momento nas antigas narrativas referentes a Apolo que sempre necessita ser considerado com atenção nos Estudos Culturais, como salientado em diversos eventos da A.B.E.. Trata-se da mudança fundamental representada na linguagem visual a êle referente a partir de Hermes. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Estudos-e-Esclarecimento.html))

Apolo surge na narrativa como aquele que acompanha reses, guardando-as, como o boiadeiro por excelência. Roubado por Hermes, que mata bois em honra ao Pai, recebe em troca a lira "inventada" por Hermes. Este recebe a vara de Apolo, assumindo agora a função de condutor com o caduceus. Apolo, transforma-se em guia das musas, que "dançam" ao som da lira.

Essa troca de atributos indica uma mudança de funções: Hermes torna-se o condutor de homens, e Apolo torna-se guia na esfera intelectual, da cultura e das artes.

Sinais na linguagem celestial das constelações

O culto a Apolo explica-se sobretudo pelo seu significado para a orientação nos mares ou norteação. Podendo-se guiar durante o dia pelo sol, à noite necessitavam orientar-se segundo constelações. A ordenação das imagens caracterizava-se pela sua referenciação segundo o Zodíaco, determinando uma divisão da esfera em duas partes, inferior e superior, respectivamente de tipos e anti-tipos. Tipo por excelência do caçador ou atirador de flechas é Orion, anti-tipo era a de Kepheus, a mais alta figura humana que surge na linguagem das imagens da esfera celeste. 

O nome de Apolo indica elos de sentido com o ponto imutável no norte da esfera celeste e com o seu eixo. A narrativa, em linguagem de imagens, dizia que, à época das trevas do ano - período de inverno - dirigia-se às zonas hiperbóricas ou árticas.

A imagem de Apolo introduzido pelos gregos, fundamentalmente relacionado com concepções de luz e de cultivo de conhecimentos, das ciências e das artes, forneceu um paradigma para homens que procuravam antes a vida contemplativa, ainda que no exílio de um mundo colonial de escravização à matéria.

De Apolo a São Vítor de Marselha

O momento crucial nas concepções referentes a Apolo, ou seja, a troca de atributos e funções com Hermes, que passou a ser o condutor, deixando a Apolo, regido por Hermes, a direção das musas, corresponde a uma prioridade do comércio no contexto social e político da colonia, e, ao mesmo tempo, da palavra e da escrita, indispensável às transações.

A vigência do mercado no porto comercial de Marselha, um dos maiores do Mediterrâneo e entrada para o interior da Gália e de regiões do Atlântico, levou à intensa presença de judeus voltados ao comércio. A prioridade concedida ao comércio favoreceu a difusão da tradição escrita de Israel e a referenciação do sistema de imagens e concepções segundo a narrativa bíblica.

As relações entre o sistemático e o narrativo modificaram-se com a crescente hegemonia da referenciação segundo a tradição escrita judaica, levando a uma historização do edifício de concepções e imagens.

Sendo o sistema de concepções greco-romano caracterizado pelo campo de tensões entre tipos e anti-tipos, esse processo de historização através da referenciação do sistema segundo a tradição escrita no Velho e do Novo Testamento foi possibilitado pelo fato das escrituras terem imagens subjacentes equivalentes.

Os tipos personificados em Hermes e Apolo correspondem na narrativa bíblica a Moisés e Aarão, evidenciados da forma mais imediata através do recebimento por Moisés da vara miraculosa de Aarão. O tipo do guardião pode ser visto também em José.

O anti-tipo corresponde a Estevão, o primeiro dos mártires e o primeiro que recuperou com a coroa do martírio a posição perdida por Adão. A imagologia do sol remete, assim, àquela de Adão.

Os diferentes atributos e as imagens dos vários mártires podem ser compreendidos a partir do paradigma, seja o motivo de ter sido moído entre pedras no martírio de S. Victor - correspondendo ao apedrejamento de Estevão -, seja o da lança que o aproxima de S. Sebastião ou o do matador do dragão que demonstra os elos com S. Jorge.

A antiga imagem do combate de gregos e persas, remontante à experiência traumática fundamental da colonização grega, interpretada como luta entre representantes da cultura e medas/mouros ou negros, passou, no processo de referenciação historicizante do edifício de imagens de tradição helênica segundo a narração bíblica, àquela de cristãos contra os infiéis.

Semonização de imagens no processo de transformação cultural

É compreensível que as imagens personificadas de sentidos invisíveis da leitura de sinais no mundo visível caracterizem-se por dupla conotação, positiva e negativa. Se Apolo surge como paradigma do soldado de defesa e de guarda, do governante do dia e do paladino que combate as trevas, e se essa imagem do combate também marca as concepções da luz do dia contra a noite e a da luz da luz, entende-se que, para os combatidos, as personificações respectivas surgiam como poderes ameaçadores e punidores.

A função positiva ou negativa das personificações depende da perspectiva e da posição. Mesmo para aquele que se colocava sob a proteção da divindade assim concebida, partia do pressuposto que a mesma agia negativamente para com os combatidos. Compreende-se, assim, que as referências a Apolo também mencionam que as suas flechas podiam trazer mortes e pestes.

O culto dessas divindades nas colonias surgia assim com características duplas, de proteção e punição, o que dependia da manutenção ou não de uma orientação interior.

Do obscurantismo de historizações ao esclarecimento através da análise de imagens

Aquele que venera os ossos nos relicários de Marselha não pode saber, assim, se correspondem realmente a uma determinada personalidade histórica narrada pela tradição, podendo apenas prestar culto a um paradigma de exemplaridade humana.

Aquele que assim presta culto não é porém em geral consciente da existência de uma sistema de concepções e imagens, julgando tratar-se de relíquias de um vulto histórico que alcançou santidade, e não de uma imagem que pode ter atualizações em diferentes contextos, regiões e épocas. É mantido assim no escuro, apenas podendo captar o paradigma de exemplaridade nas suas características e no seu sentido de forma vaga a partir de narrativas historicizantes e de imagens colocadas à veneração.

Aquele que venera não pode alcançar maior esclarecimento por partir de uma referenciação histórica e não de cunho sistemático, de fatos e contextos que podem ter sido interpretados e valorizados à luz de determinado paradigma de exemplaridade, de personificação em determinado nome de muitos outros anônimos ou mesmo de construções históricas posteriores a partir de imagem pré-existente.

Grupo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "
A irradiação do conhecimento do Invicto e o sol como luminar na linguagem de sinais
Do culto a Apollon Python dos comerciantes marítimos gregos a Saint Victor de Marseille"
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 138/9 (2012:4). http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Saint-Victor-de-Marseille.html



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  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.