Revista
BRASIL-EUROPA
Correspondência Euro-Brasileira©
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©Arquivo A.B.E.
Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 138/5 (2012:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -
e institutos integrados
© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501
Doc. N° 2908
Marselha e a colonização helênica do Ocidente
A união em paixão da nativa Gypse com o navegante Protis
como imagem dionisíaca de início de processos culturais em situações coloniais
Ciclos de estudos na Itália, França, Espanha e Portugal pelos 500 anos da morte de Amerigo Vespucci (1451-1512)
15 anos de abertura do Centro de Estudos Brasil-Europa da A.B.E. na Alemanha
Os preparativos para a celebração de Marselha como uma das capitais culturais da Europa de 2013 trazem à consciência o excepcional significado para os Estudos Culturais dessa cidade portuária francesa. Marselha é marcada de forma particularmente intensa pelo multiculturalismo de sua população pluriétnica e que se reflete na internacionalidade de sua vida cultural e dos estudos que ali se desenvolvem.
Esse significado de Marselha revela-se, numa primeira aproximação, sobretudo à luz da impressão que causam situações culturais nascidas de processos migratórios mais recentes, derivados da vinda de imigrantes africanos, em particular também daqueles provenientes de paises de passado colonial francês no Norte da África.
Como centro receptivo de imigrantes provenientes de regiões de passado colonial, Marselha desperta naturalmente a atenção em particular de tendências da pesquisa cultural marcadas por um interesse especial em migrações e colonialismo/pós-colonialismo.
Principal centro do Islão na França, Marselha surge como ponte entre a Europa e a África e mesmo entre o Ocidente e o Oriente, chegando a abalar, nesse seu extremo cosmopolitismo, e apesar do seu patrimônio artístico-arquitetônico, imagens que um observador externo possa ter a respeito do europeu em cidades da Europa.
Assim confrontado, conscientiza-se da necessidade de superação de estereotipos e de um direcionamento da atenção à dinâmica de processos que explicam situações e possibilitam percepções mais sensíveis de desenvolvimentos. É na força dos impulsos que proporciona a reconfigurações de geografias mentais que reside o principal significado de Marselha para o desenvolvimento de estudos culturais em contextos globais.
Por demais acostumado a considerar complexos culturais franceses a partir de perspectiva centralizada em Paris, o observador sente-se obrigado redirecionar o seu olhar para as regiões que confrontam com a Europa do outro lado do Mediterrâneo, focalizando em particular o Norte da África, a Ásia Menor ou o Oriente Próximo.
Marselha torna-se assim local particularmente adequado para o tratamento de questões euro-mediterrâneas. A área de estudos assim denominada poderia ser entendida primeiramente a partir da referenciação geográfica inerente ao termo, ou seja a de complexos temáticos referentes à região européia do Mediterrâneo, sugerindo uma distinção relativamente a áreas que tratariam de questões africano-mediterrâneas e asiático-mediterrâneas.
Essa compreensão do termo, porém, se não suficientemente diferenciada, pode prejudicar o reconhecimento e a análise de processos que atravessaram ou superaram determinações continentais e mesmo que se tornaram mediterrâneos por ultrapassarem fronteiras e esferas geográfico-culturais.
Compreendendo o Mediterrâneo como um complexo campo de tensões e interações de processos transcontinentais, o termo euro-mediterrâneo pode dirigir a atenção às relações entre essas tensões e processos mediterrâneos com desenvolvimentos interiores da Europa, sobretudo ocidental ou central. Nessa acepção, a área de estudos euro-mediterrâneos surge primordialmente como aquela marcada pela interação do interno europeu com o complexo costeiro e insular da Europa no Mediterrâneo, do interior e do litoral, de culturas da terra e do mar.
Origens coloniais de Marselha em interações de fatos e imagens
Essas considerações teóricas podem ser mais facilmente elucidadas a partir de uma imagem e que é aquela que resulta, segundo a tradição, da própria fundação de Marselha ao redor do ano 600 A.C.. Nessa narrativa das origens de Marselha, por alguns considerada como lendária por não ter comprovações arqueológicas, interagem elementos de linguagem simbólica e ocorrências históricas.
Segundo essa tradição, à época do rei Tarquino, jovens da Focia, colonia grega na Ásia Menor, atual Turquia, navegando ao Ocidente, atingiram a boca do Tibre, onde fizeram uma aliança de amizade com os romanos. Prosseguindo a sua viagem, atingiram as baías da Gália, levando à fundação de Marselha por circunstâncias especiais.
Os gregos da Fócia eram homens do mar, pescadores e comerciantes, por vezes também praticando a pirataria. A essa vida marítima eram forçados pela aridez de suas terras. Como grandes navegadores, ousaram extender as suas explorações marítimas em direção do Ocidente, do rio extremo para os lados do Oceano, atingindo a desembocadura do Rhône. Os jovens, vindos de uma longa viagem, encontraram ali uma terra de beleza e fertilidade.
A região era habitada por tribos de gauleses e grupos da Liguria. Os seobrigas, uma das tribos sálias, que habitavam nas costas do Rhône, sem o conhecimento da escrita e mesmo sem o uso do dinheiro, encontravam-se em estágio cultural que, para os gregos, surgia como bárbaro. A colonização grega surgiu, assim como sendo o da introdução da cultura.
Segundo a tradição, a frota grega que levou à fundação da colonia foi comandada por Simos e Protis. Procuraram o chefe da região onde pretendiam estabelecer um empório comercial, então subordinada a Nanus, rei dos Segobrigas (Cenomanes).
Este estava preparando o casamento de sua filha Gyptis segundo a tradição do seu povo, que consistia na escolha do noivo durante um banquete através do oferecimento de água pela noiva àquele de sua preferência. Chegando Gyptis, esta dirige-se aos hóspedes gregos ali presentes e, sem considerar os jovens da sua própria nação, entrega a água a Protis, escolhendo-o como marido. A imagem desse encontro é, assim, marcada pelo fascínio exercido pela aparência de Protis e aos desejos da princesa da terra, então em preparo nupcial.
Pelo matrimônio, Protis recebeu de seu sogro a área para a fundação da cidade. O estabelecimento dos gregos e o desenvolvimento da colonia causou tensões com os nativos ou habitantes que já viviam na região, levando a conflitos e guerras. Após a morte do rei Nannus dos segobrigas, o seu filho Comanus passou a temer o crescimento de Marselha como um futuro risco para os povos nativos. Assim, em dia de festa de Flora, Comanus enviou um grande número de homens à festa, em parte escondidos em veículos, permanecendo com soldados por detrás de montanhas vizinhas. O ataque foi porém impedido por uma traidora que tinha um grego por amante. Fascinada pela beleza do jovem, revelou-lhe a emboscada. Desde então, os marselheses passaram a fechar as portas da cidade nos dias de festa, controlando aqueles que chegavam em tempo de paz como se estivessem em guerra.
Continuidade do processo colonizador a partir da imagem da união em amor
Se Marselha foi uma colonização de segundo grau, uma vez que fundada a partir de colonias marítimas gregas, tornou-se ela própria ponto de partida de outras fundações coloniais. Como Marselha, também Malaga, Córsica e Nizza, entre outras, foram colonizadas por gregos e várias outras cidades constam como originadas de marselheses, em particular a Ocidente, na Península Ibérica.
Vendo-se na narrativa de fundação de Marselha uma imagem personalizada do processo colonial, ou seja o da união do colonizador como homem de mar e a mulher da terra, pode-se compreender a expansão colonial mediterrâneo-européia sob o aspecto de interações entre culturas.
A expansão de Marselha foi possibilitada pelo seu desenvolvimento como entreposto comercial e que a transformou numa das maiores colonias gregas, pelo menos na parte ocidental do Mediterrâneo. Esse crescimento foi devido à sua localização geográfica à desembocadura do Rhône, o que fêz do seu porto centro do comércio do Mediterrâneo com o interior europeu. A influência cultural grega encontrou caminhos de difusão pelo interior através das vias comerciais possibilitadas pelo rio, justificando-se assim a existência de traços culturais helênicos no Sul da França e mesmo em regiões da atual Suiça, onde se utilizava o alfabeto grego ainda à época de Cesar.
A narrativa da fundação de Marselha segundo Isidoro de Sevilha: gregosXpersas
A intensificação da presença grega no Mediterrâneo ocidental deu-se com a imigração forçada de gregos insulares em 546 A. C. sob Harpagos, à época do rei Ciro.
Isidoro de Sevilha, na sua obra enciclopédica, transmitiu esse processo à posteridade com os seguintes termos:
"Ao ocupar Ciro as cidades marítimas da Grécia e verem-se os focenses, por êle vencidos, oprimidos por todo tipo de calamidades, juraram que fugiriam o mais longe possível do império persa, para onde nem pudessem ouver o seu nombre; e assim chegaram com as suas naves até as regiões mais remotas da Galia, e depois de defender-se com as suas armas frente à força gala, fundaram Marselha, à qual deram o nome do seu chefe. Varro disse que são trilingues, já que falam o grego, o latim e o gaulês." (Etimologías II, Libros XI-XX, Jose Oroz Reta e Manuel A. Marcos Casquero 2a. ed., Madrid 1994, XV, 63)
Os fócios expulsos pelos persas em 546 A.C. fundaram também uma colonia na Córsica. Esses imigrantes, transplantando também para Alalia expressões culturais da vida marítima colonial grega, passaram a dominar os mares, inclusive praticando a pirataria, o que passou a representar um risco para Cartago, o grande poder comercial do Norte da África. Com a derrota dos gregos através das forças unidas dos cartagineses e etruscos, foram aqueles obrigados a transferir-se para Elea na Campagna. Deu-se assim início à etruscanização cultural da região, o que manteve-se até o século III A.C. com a supremacia dos romanos sobre os etruscos. Alalia esteve durante algum tempo sob o poder de Cartago.
No ano de 125 A. C., Marselha solicitou ajuda romana perante os ataques de tribos gálicas, o que levou à fixação de Roma e à anexação do território à província Gallia Narbonensis. Nesse contexto que levou à resistência da cidade portuária ao domínio romano, compreendo-se o ethos de liberdade que passou a ser característica de Marselha. Foi conquistada definitivamente no ano 49 A. C. após longo tempo de cêrco militar.
Relações com Ulisses - Nausikaa e Gypse
A imagem do amor da princesa nativa com o navegador - do indígena com o grego portador de cultura - encontra-se também nas narrativas referentes a Ulisses, demonstrando, nessa correspondência, que também se aplica para a fundação de Lisboa. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Ulisses-Saudades-e-Fado.html)
Protis vinha da Fócia, um povo de navegantes da ilha Scheria, conhecida por ter um soberano hospitaleiro de nome Alkinoos, que abrigou Ulisses quando do seu naufrágio, acompanhando-o a Ithaka, a terra natal que tanto procurava retornar. Também aqui foi uma jovem, a sua filha Nausikaa que encontrou Ulisses atirado à praia e o levou à casa de seu pai.
Constata-se, assim, equivalência de imagens nos dois contextos. A própria cultura fócia conhecia o modêlo da princesa da terra que acolhe em amor o navegante que se encontra na odisséia, tendo passado por atribulações de toda a ordem e imbuído da saudade do retorno. Essa imagem encontrava-se nos fundamentos de uma consciência colonial fócia e teria sido transplantada pelos seus navegantes ao alcançar Marselha.
A imagem do amor e da união entre Gypse e Protis corresponde, assim, àquela das jovens que, em amor e êxtase, acolheram a Ulisses em diferentes contextos e situações. Esse mecanismo adaptador de imagens pode ser particularmente analisado no caso da fundação de Lisboa por Ulisses, quando também ali as narrativas falam do amor de uma lusa pelo navegante, que os eruditos do passado identificaram com ninfas e amadas de Ulisses em outras circunstâncias. (Veja artigo sôbre Lisboa)
Fundamentos paradigmáticos em Dionysos
A consideração relacionada dessas diversas contextualizações de uma imagem leva a seus fundamentos, ao paradigma da união da nativa e do belo Navegante que chega do mar. Esse modêlo é o de Dionysos (Baco, Liber, Sabazios, Zagreus), relacionado com viagens de travessia marítima, com vinho, orgias, prostituições, êxtases e símbolos fálicos, recebido com entusiasmo por mulheres com conotações de barbárie, acompanhadas por sátiros, às quais a divindade surgia com as características animalescas da terra que o recebia. A sua festa em Atenas, em fevereiro era marcada pela sua entrada em carros em forma de navio, unindo-se espiritualmente com a esposa do rei, do arconte Basileus no Bukoleion, que caía então possessa.
O amor da mulher da terra - ou da terra conotada femininamente - por Dionysos surge assim como um ato de possessão, de êxtase e de entusiasmo. A mulher surge nessa imagem como aquela que cobiça o navegante que vem sedento de longa viagem marítima, e a narrativa mítica indica claramente as conotações sexuais de ambos os lados. A entrada de Dionysos na terra bárbara, personificada, correspondendo a um ato de possessão em entusiasmo - de tomada em espírito -, indica tratar-se aqui da ação de uma força espiritual através da personificação no navegador.
A narrativa mitológica permite aqui que se reconheça uma relação de tensão com Apolo, o que permite o prosseguimento das reflexões. Sendo Apolo associado com o sol, o luminar do dia, que não pode porém ser confundido com a própria luz ou dia, e muito menos com a causa da luz (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Saint-Victor-de-Marseille.html), Dionysos surge não como um luminar da noite - que é a lua -, mas sim como um portador de trevas.
(...)
Grupo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo
Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.
Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Marselha e a colonização helênica do Ocidente. A união em paixão da nativa Gypse com o navegante Protis como imagem dionisíaca de início de processos culturais em situações coloniais". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 138/5 (2012:4). http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Protis.html
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