Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Euthymenes, Marselha. Foto A.A.Bispo©

Euthymenes, Marselha. Foto A.A.Bispo©

Bourse et Chambre de Commerce, Marseille. Foto A.A.Bispo©

Bourse et Chambre du Commerce, Marseille. Foto A.A.Bispo©

Bourse et Chambre du Commerce, Marseille. Foto A.A.Bispo©

Bourse et Chambre du Commerce, Marseille. Foto A.A.Bispo©

Bourse et Chambre du Commerce, Marseille. Foto A.A.Bispo©

Bourse et Chambre du Commerce, Marseille. Foto A.A.Bispo©

Bourse et Chambre du Commerce, Marseille. Foto A.A.Bispo©

Bourse et Chambre du Commerce, Marseille. Foto A.A.Bispo©

Bourse et Chambre du Commerce, Marseille. Foto A.A.Bispo©

Bourse et Chambre du Commerce, Marseille. Foto A.A.Bispo©

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 138/6 (2012:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2909


A.B.E.



A Navegação no programa emblemático da Bourse et Chambre de Commerce de Marselha
Euthymenes à luz do paradigma do Navegador vindo do Oceano e da África
segundo imagens da antiga geografia simbólica. De Dionísio e Esus


Ciclos de estudos na Itália, França, Espanha e Portugal pelos 500 anos da morte de Amerigo Vespucci (1451-1512)
15 anos de abertura do Centro de Estudos Brasil-Europa da A.B.E. na Alemanha

 

Os ciclos de estudos euro-brasileiros realizados em maio e junho de 2012 em diferentes países da Europa dedicaram-se a questões de fundamentos de processos mediterrâneo/atlânticos, dando continuidade ao respectivo programa da A.B.E. (http://www.academia.brasil-europa.eu/Mediterraneo-Atlantico.html).


O objetivo desses estudos foi salientar o significado de uma perspectiva científica nos Estudos Culturais, contribuindo a uma reconscientização de suas funções esclarecedoras em atualidade marcada por crescente obscurantismo de fundamentação religiosa na Europa e em outras partes do globo.


Nesse sentido, a atenção é dirigida não à leitura superficial, literal de narrativas e das Escrituras, causa de reduções de entendimento, de visões estreitas e fundamentalismos obscurantistas, mas sim a imagens subjacentes que elucidam inserções em sistema de concepções e imagens de edifício de visão do mundo e do homem de remotas origens. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Estudos-e-Esclarecimento.html))


A cidade de Marselha, abrigando centro de estudos euro-mediterrâneos e preparando-se para ser uma das capitais européias da cultura de 2013, surge como local particularmente adequado para o desenvolvimento de estudos contextualizados desse complexo temático, abrindo perspectivas para o seu tratamento.


A França é um dos países que mais evidenciam a necessidade de estudos que considerem de forma relacionada o Mar interno e o Oceano pelo fato de possuir grandes portos e centros do comércio marítimo tanto na sua região mediterrânea como na atlântica.


O significado de Marselha não se limitou à esfera mediterrânea, na qual foi uma das mais importantes colonias gregas ao Ocidente e, como empório comercial, porto chave em rêdes de comércio através dos séculos. Esse porto no Golfe du Lion não foi apenas portal de entrada de bens materiais e correntes culturais mediterrâneas no interior do continente e assim também para o Atlântico das costas francesas. Desempenhou também um papel sob vários aspectos pioneiro nas relações com o Oceano através do Estreito de Gibraltar, as antigas colunas de Hércules.


Marselha, entre rio e mar, ocupou, assim, em duas direções, posição chave de ligação entre o Mediterrâneo e o Atlântico.


Compreende-se a partir dessa situação geográfica que, ainda que de forma pouco considerada no mundo de língua portuguesa e mesmo no ibérico em geral, Marselha apresente uma consciência histórica e uma auto-imagem marcada pelo remoto passado colonial, pelos descobrimentos e pelas navegações, em particular pela história marítima.


Bourse et Chambre du Commerce, Marseille. Foto A.A.Bispo©

Navegação/Comércio e Descobrimentos na Bourse et Chambre de Commerce de Marselha


Um edifício emblemático que pode servir como ponto de partida para reflexões é o do palácio da Bourse et Chambre de Commerce de Marselha, monumento que não apenas possui significado no panorama da arquitetura francesa do século XIX, mas sim também para a história político-cultural de Marselha e mesmo da França no seu todo.


Bourse et Chambre du Commerce, Marseille. Foto A.A.Bispo©
O edifício foi inaugurado pelo Imperador Napolão III (1808-1873), em 1860. A sua fachada apresenta, ao alto, as armas de Marselha ladeada por representações do Oceano e do Mediterrâneo, referenciais fundamentais que determinam a configuração de sua fachada.


O observador, acostumado a encontrar imagens e vultos das grandes Descobertas sobretudo em monumentos e edifícios públicos de Portugal ou da Espanha, surpreende-se ao encontrar, n Bourse et Chambre de Commerce emblemas navigatórios e comerciais, alegorias, nomes e estátuas de grandes viajantes e descobridores de diferentes nações.


O palácio é rodeado por representações plásticas de naves. Aquele que o contempla ou nele entra lê nomes tais como de Amerigo Vespucci (1451-1512), Vasco da Gama (ca. 1469-1524), Fernão de Magalhães (1480-1521), Cristóvão Colombo (1451-1506), do neerlandês Abel Tasman (1603-1659), do inglês James Cook (1728-1779) e dos franceses Jean-François de La Pérouse (1741-1788) e Jules Durmont d'Urville (1790-1842). No seu interior, o observador depara-se com referências a muitas nações da história de intercâmbios comerciais com Marselha, entre elas as Ilhas Jônicas, Egito, Tunísia, Norte da África, Indochina e também Portugal.


Mais do que simples elementos decorativos e de encenação festiva de edifício representativo do historicismo, - como se conhece de nomes de compositores em teatros e óperas, de literatos e cientistas em escolas e universidades do século XIX e início do XX - , essas inscrições e plásticas da Bourse et Chambre de Commerce dão testemunho da consciência daqueles que o projetaram quanto aos estreitos laços existentes entre o comércio e as viagens, caminhos e rotas, descobrimentos e colonizações.


A série de nomes de descobridores e vultos da história mercantil e das navegações de todas as nações no palácio da bolsa e do comércio indica que não critérios especificamente históricos, mas sim imagens justificam os elos entre nomes e nações com Marselha. Estas demonstram a inserção dos vultos e de seus feitos em complexo coerente e mesmo num continuum, apesar de todas as descontinuidades e diferenças que ocorreram no longo passado de Marselha.


A realização de estátuas do programa plástico-ornamental do edifício construído por Pascal Coste (1787-1879) coube a Auguste Ottin (1811-1890), escultor que marcou com muitas de suas obras de forma significativa edifícios e a configuração de locais públicos na França do século XIX. As estátuas harmonizaram-se com os dois baixo-relêvos de Eugène Guillaume (1822-1905) dedicados ao binômio Navegação e Comércio.


Binômio Navegação/Comércio e a personificação da Navegação


O programa do palácio, representando um todo complexo no binômio Navegação/Comércio, é marcado pelo tipo de Hermes, simbolizando explicitamente o Comércio, à direita daquele que entra no edifício (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Pytheas.html), e, à esquerda, por uma imagem emblemática da Navegação.


O conjunto plástico caracteriza-se aqui por um vulto em pé à frente de uma coluna, tal como um navegador ou capitão chegando com a sua nave, tendo por detrás de si um mastro, no topo do qual se apresentam as estrelas que o orientaram na viagem. A figura é ladeada a seus pés por pequenos gênios que seguram instrumentos navigatórios sentados sôbre seres marinhos.


A personificação da Navegação traz à consciência os seus vínculos com o mar e a água salgada, distinguindo-a daquela do Comércio, que apresenta a ânfora da água potável, doce.


Os atributos da representação emblemática da Navegação traz à lembrança do pesquisador, ainda que de forma não explícita, o navegador por excelência dos 12 deuses olímpicos - Dionysos -, assim como a imagem do herói, navegador e capitão que pôde vencer os perigos do mar amarrando-se ao mastro, ou seja, Ulisses (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Ulisses-Saudades-e-Fado.html).


Correspondente a essa estruturação programática do edifício em binômios relacionados de Oceano/Mediterrâneo, Navegação/Comércio e Dionysos/Hermes, o palácio é ladeado por duas obras de Auguste Ottin representando os dois maiores vultos da Antiguidade marselhesa: Euthymenes e Pytheas.


Com a representação desses navegantes do passado, todas as descobertas posteriores exemplificadas em alguns de seus maiores nomes passam a ser referenciadas segundo os dois grandes vultos da Antiguidade da antiga colonia grega e que surgem como imagems-tipo fundamentais de processos que relacionam o Mediterrâneo com o Atlântico.


Marselha apresenta-se, assim, no seu palácio da Bourse et Chambre de Commerce, como cidade angular na história das relações entre o Mediterrâneo e o Atlântico e mesmo como cidade por excelência dos Descobrimentos por possuir, na sua história antiga, vultos que corporificaram imagens fundamentais do edifício de visões do mundo e do homem.


Euthymenes de Massilia (Εὐθυμένης), o capitão que veio do tenebroso Oceano


O vulto mais antigo representado no palácio da Bolsa de Marselha é o de Euthymenes, navegador ali nascido no início do século VI A.C.. A estátua desse primeiro a ser lembrado e considerado por aquele que penetra na Bolsa ocupa um edicula no lado correspondente à Navegação na fachada do edifício.


O significado de Euthymenes para Marselha manifesta-se também na existência de rua com o seu nome e, entre outros testemunhos, na estela de pedra com o seu busto situada em localização privilegiada da cidade. O navegador é aqui representado como homem de barbas e cabelo revoltos, o que lembra antigas representações de Dionysos. Tem o seu corpo integrado na coluna, com ela por assim dizer identificado, como se tivesse sido preso ao mastro.


Na consideração de Euthymenes deve-se ter em mente que nas decorrências que se vinculam com o seu nome interagem imagens e fatos históricos. É nesse sentido que devem ser analisadas diferenciadamente as referências relativas à sua grande viagem oceânica.


Euthymenes não foi apenas um navegador, mas um homem de espírito, demonstrado pelo fato de ter sido autor de um périplo da costa atlântica, obra da qual resta apenas um fragmento, não se conhecendo mais pormenores a respeito de suas dimensões e mesmo título. Esse fragmento foi transmitido à posteridade através de Hekataios de Mileto, o que indica a recepção da obra no mundo colonial grego e a visão que se tinha da África. Supõe-se ter sido escrito após a obra de Thales de Mileto, sendo posterior ao ano 580 A.C. e antes daquela de Hekataios (ca. 510).


O significado e a difusão da obra de Eythmenes na Antiguidade são demonstrados pelas citações em outras obras e pela súmula oferecida por Herodoto (Historien I-V, trad. W. Marg, Zurique e Munique: Artemis Verlag 1991, 2,21), tendo entrado na doxografia greco-latina através de Theophrasto. ( F.L., "Euthymenes", Der Kleine Pauly: Lexikon der Antike, 2, Munique: Deutscher Taschenbuch Verlag/J.B. Metzlersche/Carl Ernst Poeschel 1979, 469).


A Euthymenes remonta assim a tradição do Periplus, gênero de obras náuticas dedicadas à navegação ou ao navegar em contorno, tanto no sentido geográfico como no estratégico do cerco de naves inimigas em combates militares. Essas obras continham descrição de rotas, com registros de portos e pontos referenciais nas costas. Nesse sentido, essas obras também adquirem significado na história dos relatos de viagens. Exemplos mais antigos conhecidos são o périplo cartaginês de Hanno o Navegador, do século V A.C. e uma descrição de rotas comerciais marítimas de um navegador de Alexandria do século I, com referências a caminhos comerciais da África Oriental até a India, assim como, relativamente ao Mar Negro, o Periplous Euxeinou Pontou de Arriano. O que pouco tem sido considerado é a dimensão simbólica do conceito, o que apenas pode ser entendido a partir do quadro geral das imagens, o que a relaciona com uma noção do estar separado, errante, à procura da terra firme.


Na perspectiva grega - e naquela do correspondente sistema de visões do mundo e do homem - a viagem ao oceano ocidental tinha associações negativas, uma vez que correspondia a imagens da noite, das trevas, da região da morte e, em sentido figurado, a período de trevas na vida humana.


O grande feito de Euthymenes não foi, sob essa perspectiva, o de ter saído à procura da África, mas sim o de ter retornado a salvo de uma longa viagem pela costa africana, superado ás águas que podiam ter-lhe trazido a morte e alcançado o porto de Marselha.


O seu empreendimento, visto de forma mais superficialmente histórica, antecedeu de muitos séculos aqueles celebrados do século XV, entre outros com os nomes do Infante D. Henrique, O Navegador (1394-1460), Gil Eanes e Alvise Cadamosto (ca. 1432-1483), o navegador veneziano a serviço português que alcançou o Senegal, feitos que surgem sob esse aspecto antes como feitos de renascimento da antiga cultura e de redescobrimento de antigas regiões.


O significado de Euthymenes, porém, sob uma perspectiva mais diferenciada, deve ser visto antes no fato de possibilitar estudos da imagem do Navegador nas suas relações com a África segundo critérios da antiga geografia, permitindo assim outros enfoques na consideração dos grandes vultos da história das navegações portuguesas.


A questão da origem do Nilo em interações de fatos e imagens


A identificação da região da qual Euthymenes trouxe notícias, assim como a das origens do Nilo levantou questões e suscitou diferentes propostas elucidativas através dos séculos. Pouco considerou-se, porém, a interação entre a linguagem visual e a realidade histórica e geográfica das referências, ou seja, a geografia simbólica que correspondia ao edifício de imagens do mundo e do homem.


Em geral, supõe-se que o rio do qual dava informações tenha sido o  o Senegal, hoje fronteira entre a Mauretânia e o Senegal. A região seria aquela de Saint-Louis, junto ao Atlântico. Se essa identificação for correta, não sabendo que o Senegal origina-se da confluência dos rios Bakoyé e Bafing no Sudoeste de Mali, Euthymenes teria pensado tratar-se do curso superior do Nilo, uma opinião que hoje causa surprêsa, mas que, devido a seu significado para a antiga geografia, necessita ser elucidada e fundamentada com base em edifício de visão do mundo que o próprio Euthymenes possuia.


Essa suposição partiu do fato de Euthymenes ter encontrado nessa região animais conhecidos do Egito, e, sobretudo, áreas de água doce no mar salgado. Segundo a sua tese, seriam as inundações do Nilo no verão resultado de fenômenos que ocorriam nessa região devido ao represamento de águas como resultado das etésias. Euthymnes teria explicado essa origem do Nilo através da hipótese de ser alimentado por Oceanus e ser a sua correnteza influenciada pelos ventos etésios. O acalmamento do mar nesta região fazia com que o Nilo, na sua parte inferior, descesse com menos força. No restante do percurso do rio, a água do mar tornava-se de sabor doce.


Essa hipótese foi discutida e rejeitada por Seneca (Júnior):


Euthymenes Massiliensis testimonium dicit: 'Nauigaui', inquit, 'Atlanticum mare: inde Nilus fluit, maior, quamdiu etesiae tempus obseruant; tunc enim eicitur mare instantibus uentis. Cum resederunt, et pelagus conquiescit minorque descendenti inde uis Nilo est. Ceterum dulcis mari sapor est et similes Niloticis beluae.'" (Naturales quaestiones IV 2.22)


De fato, na área de desembocadura do Senegal encontra-se terra alagada de alta fertilidade, hoje  abrigando o Parc National de Langue de Barbarie; também a planície alagadiça de Chemama entre Saint-Louis e o porto fluvial Rosso na Mauretânia parece apoiar a identificação do rio encontrado por Euthymenes com o Senegal. Até passado recente - antes da construção de uma represa -, a água do mar penetrava mais de cem quilômetros pelo rio, o que teria sido interpretado por Euthymenes como responsável por um represamento da água doce do rio, causando a inundação de terras no seu curso inferior.


O fato de ter Euthymenes encontrado animais conhecidos do Egito, entre êles crocodilos e hipopótamos também repercutiram na antiga geografia. O Senegal surge, assim, em Plinius (O Velho) sob a designação de Bambotus, termo explicado como derivado do fenício/hebraico behemoth, e que significaria rio de hipopótamos. Esquece-se, porém, que Behemot é uma designação de animal simbólico mencionado nas Escrituras e de significado na linguagem simbólica de séculos, o que indica mais uma vez a necessidade de considerações mais diferenciadas das relações entre a geografia e a imagologia.


Segundo a elucidação de Euthymenes e daqueles que nele se basearam, o Nilo teria assim a sua origem no Oceano, percorrendo grande parte da África em complexa trajetória, desembocando por fim no Mar Mediterrâneo.


Essa concepção demonstra a necessidade de distinguir-se entre a concepção do Oceano e aquela do mar para o qual o rio corre. Ela apenas pode ser entendida a partir da idéia de que a terra era cercada pelo oceano por todos os lados, tal qual ilha que se levanta das águas. O Oceano era o restante das águas que cobrira a terra, sendo que a sua concentração possibilitara o aparecimento da parte sêca; as correntes que desta corriam dirigiam-se em outro sentido, ao mar.


Essa concepção, pouco compreendida, é resultado de uma projeção, na geografia, de observações do ciclo anual e de suas projeções na ordenação das constelações. A terra surge, no ciclo do ano do hemisfério norte como um monte que surge na primavera, tendo o seu cume no verão, encostas descendentes no outono e parte submergida nas águas no inverno.


Deve-se considerar também a hipótese de Euthymenes ter alcançado um outro dos grandes rios da África Ocidental, por exemplo o Gambia. Também aqui o navegador não podia ter conhecimento das origens desse rio nas terras montanhosas do norte da Guinea, onde também se originam o Senegal e o Niger. No período da sêca, a água salgada do Oceano nele penetra até ca. de 200 quilômetros no interior; na época das chuvas, ao contrário, o rio inunda a planície, penetrando no oceano, deixando um área lamascenta de alta fertilidade.


Também o rio Volta é marcado pelas correntes de água alta e baixa e de ventos. Com a maré alta, a movimentação atinge mais de 30 quilômetros rio acima. Também aqui havia uma região inundável, com lama fértil, comparável com aquela do Nilo e do Niger.


O Niger, o Nilo e o Egito - pântanos, inundações e imagens negativas na geografia simbólica


O que necessita ser considerada, sobretudo, é a possibilidade de tratar-se, no rio citado por Euthymenes, do rio Niger e do delta da sua desembocadura no Atlântico Sul, no golfo da Guiné, na atual Nigéria. Esse rio, que hoje forma em parte a fronteira do Benin, apresenta um complexo percurso, percorrendo as mais diferentes regiões geográficas. Na região do atual Mali forma uma ampla região pantanosa, um delta interior denominado de Macina (Massina). A parte superior do Niger, dirigindo-se para o interior em curva, favoreceu a opinião de que corresse ao Nilo, uma noção que vigorou através dos séculos.


Também a sua importância - designado em Tuareg como "rio dos rios" e também por outros povos da região como "o grande rio" e suas associações negativas com a cor negra na linguagem das imagens poderia confirmar essa hipótese. Além do mais, o rio é conhecido pela quantidade de hipopótamos que nele vivem, o que teria sido registrado por Euthymenes.


Segundo essa hipótese, Euthymenes trazia de sua dificílima viagem notícias de uma terra que despertava as mais negras associações, em regiões pantanosas pouco distintas das águas do Oceano original e que parece ter marcado imagens de seus povos e culturas.


Nessa geografia simbólica, que estabelece complexas relações entre fatos e imagens, o Nilo, nascendo nesse local tenebroso do Oceano, não poderia ter associações positivas, o que passou a valer para o Egito. A definição de Egito era, assim, "a de tudo o que o Nilo inunda", o que vale também em sentido figurado. (Herodoto, Historiae II 27-21,op.cit. 130-131).


Paradigma do Capitão que chega de perigosa viagem


Devido à atenção dada a Dionysos na literatura, com interpretações baseadas em determinados aspectos das narrativas e atributos, a sua imagem surge hoje marcada por perspectivações que encobrem o fato de ter sido estreitamente relacionado com a navegação, com a barca, surgindo como personificação do navegador por excelência.


O seu mito aponta claramente esse significado, mencionando o seu poder de suster viagens marítimas, de enrolar-se e subir pelo mastro na imagem do efeu, de superar perigos no mar. A sua entrada, vindo do mar e levado em barca pelas ruas de Atenas em fevereiro, era uma das grandes ocasiões de festividades, quando então mulheres caiam em possessão, podendo aqui residir remotas origens do carnaval.


As imagens são marcadas pelo desejo feminino de carne, levando a expressões de barbárie, pelo símbolo do falo, pelo entusiasmo e por êxtases, pelo vinho e assim pela água ardente ou de "espírito", indicando conotações sombrias do complexo dionisíaco, o que explica ter sido o seu culto não bem visto por círculos mais cultivados da sociedade. Com Dionysos relaciona-se a noção daquele que é de fora ou vem de fora, mas o do primeiro que chega e que novamente parte ou é despachado.


Se Hermes foi visto desde a Antiguidade como tipo correspondente a Moisés da narrativa bíblica, Dionysos foi visto como imagem de Noé. Essa correspondência - e a vigência de uma imagem subjacente na história narrada -, como discutida em diversas ocasiões em eventos da A.B.E., em particular no simpósio de Antropologia Simbólica no âmbito das comemorações dos 500 anos do feito de Vasco da Gama, pode ser entendida em primeira aproximação através da menção do vinho na narrativa bíblica, que conta que Noé, alcançando a terra, vindo das águas do dilúvio, plantou a primeira videira e mesmo embriagou-se. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Ulisses-Saudades-e-Fado.html)


O capitão na consideração negativa do Outro: Esus


Os gregos e romanos encontraram, nos povos da Gália imagens e concepções similares à do própria tradição cultural, procurando-as identificar segundo os nomes deles familiares. Esse processo de interpretação romana é conhecido de relatos de Caesar e Tacitus, assim como da Pharsalia do escritor Lucanos (+65 D.C.), nos quais encontram-se referências a divindades gálicas.


Um desses deuses era Esus, que foi relacionado por alguns com Ares/Marte, outros com Hermes/Mercúrio, identificações que têm sido compreendidas como testemunho das dificuldades encontradas pelos romanos em interpretar as divindades estranhas a partir de sua própria cultura.


Essas referências, porém, permitem o reconhecimento de relações mais sutís entre as imagens e concepções. Para os romanos que viam nos galos bárbaros, sujeitos assim às trevas, a imagem antes sinistra de Dionysos surgia como o de "Mercúrio gálico", ou seja, como subordinado a um guia e condutor de conotações dubiosas. Significativamente, a êle eram sacrificadas aves escuras e peregrinas: os grus. Era relacionado com a terra húmida e designado eufemisticamente como "o bom Senhor", o que indica as associações negativas que com êle se associavam, o que levava a que fosse evitado a pronúncia de seu nome e mesmo um sentido jocoso de amigo ou compadre.


Ao mesmo tempo, para além de um significado de conotações de força espiritual de trevas, demoníaca, o seus elos com a noite no mundo perceptível pelos sentidos possibilitavam ser as concepções determinadoras de um tipo humano, surgindo como primeiro a entrar vindo de fora, capitão de homens ousados e valentões, também apresentando aspectos positivos, por ser promotor da fertilidade e do crescimento da vegetação. Em situações cosmopolitas de encontros e interações culturais, como em Colonia, os próprios romanos e seus descendentes passaram a utilizar-se de designações "bárbaras" nos cultos, o que se deu também com o termo Esus. (Günter Ristow, Römischer Götterhimmel und frühes Christentum, Colonia: Wienand, 1980, 10f., 28,31,161)


A fachada do palácio da Bourse et Chambre de Commerce, estruturado programaticamente segundo os conceitos de Navegação e Comércio, surge assim como um todo configurado segundo as imagens relacionados de Dionysos e Hermes à esquerda e à direita, com os seus atributos indicadores de águas, do oceano e da terra sêca alcançada após a travessia do mar, do retorno do Sul e da ida em direção do Norte, correspondentes, em narrativa bíblica, a Noé e Moisés.


Grupo de estudos sob a direção de

Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "
A Navegação no programa emblemático da Bourse et Chambre de Commerce de Marselha
Euthymenes à luz do paradigma do Navegador vindo do Oceano e da África segundo imagens da antiga geografia simbólica. De Dionísio e Esus". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 138/6 (2012:4). http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Euthymenes.html



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