Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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S. Gonçalo do Amarante. Foto Valter Cassalho©

S. Gonçalo do Amarante. Foto Valter Cassalho©

S. Gonçalo do Amarante. Foto Valter Cassalho©

S. Gonçalo do Amarante. Foto Valter Cassalho©
S. Gonçalo do Amarante. Foto Valter Cassalho©




 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 138/15 (2012:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2918


A.B.E.


Colaborações


Folclorista e historiador, membro da Associação Brasileira de Folclore e secretário da Comissão Paulista de Folclore, Valter Cassalho destaca-se como um dos mais dedicados pesquisadores de expressões culturais tradicionais do Estado de São Paulo, em particular daquelas da região das Serras e Águas. Pelo seu empenho por questões culturais paulistas foi agraciado com a Comenda Governador Pedro de Toledo, em 2008. Com o seu conhecimento da cultura regional, em particular da cidade de Joanópolis, contribuiu de forma relevante ao Colóquio Internacional da A.B.E./I.B.E.M. dedicado a São Gonçalo de Amarante realizado naquela cidade e em Ubatuba, em 1998 ((http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/Internet-Corres2/CM56-08.html; http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/Internet-Corres2/CM54-06.html). Esse colóquio, interdisciplinar, realizado sob a direção do editor desta revista em cooperação com a Comissão dos Descobrimentos Portugueses e da Comissão Municipal de Lagos, instituições alemãs e órgãos brasileiros, tendo contado com a participação de pesquisadores de Portugal, da Alemanha e do Brasil, foi o primeiro evento internacional que tratou do complexo temático relacionado com São Gonçalo de Amarante sob o aspecto da Antropologia Simbólica segundo resultados mais recentes dos Estudos Culturais, em particular da linguagem visual. O evento deu sequência a trabalhos euro-brasileiros empreendidos em Amarante, Portugal, entre outros por ocasião da festa de São Gonçalo, em 1997. Esses trabalhos euro-brasileiros in loco, por sua vez, foram preparados por estudos desenvolvidos desde meados da década de 70 e que, em eventos e publicações, salientaram o significado da imagem de São Gonçalo para os Estudos Culturais, em particular sob o aspecto músico-antropológico, revendo e atualizando teoricamente o tratamento desse complexo temático da literatura folclórica e sociológica brasileira. (http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/Internet-Corres2/CM55-01.html; http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/Internet-Corres2/CM56-02.html ). Em junho de 2009, juntamente com Lilian Vogel, também membro da Comissão Paulista de Folclore, Valter Cassalho esteve em Portugal, onde pôde presenciar a festa, sendo ambos acompanhados pelo historiador Antonio Patrício, que os auxiliou nas pesquisas. Como resultado de suas observações, publicaram o livro "São Gonçalo um Santo Violeiro ou Um Violeiro Santo?" (2009/2010). V. Cassalho é autor do DVD "Bate Palma Bate Pé pra São Gonçalo com Muita Fé". A sua colaboração com o presente texto, sem ter escopo especificamente teórico e de corresponder ao estado atual dos estudos imagológicos, assume particular significado por documentar situações e desenvolvimentos atuais em Amarante.




Culto fálico sobrevive e ganha força em Amarante - Portugal

Valter Cassalho, Comissão Paulista de Folclore

 
S. Gonçalo do Amarante. Foto Valter Cassalho©


São Gonçalo tem na mão

Um livro e um cajado

E debaixo do roupão

Um doce bem guardado (*)


As genitálias (tanto a masculina quanto a feminina) sempre foram desde os tempos primitivos veneradas, pois consistem nos elementos doadores da vida e preservadores da espécie. O falo (sempre em estado de ereção) já aparecia na arte paleolítica e tornando-se numa das formas mais antigas da religião. Figuras e desenhos antigos mostram homens e mulheres com suas genitais desproporcionais e gigantescas, como atributos da excelência da reprodução humana e a fecundidade da terra. O homem fixando-se a terra através da  agricultura  e dela necessitando para sua sobrevivência desenvolveu vários rituais para fecundá-la e com isso muitos elementos mágicos eram praticados. Para tal fecundação fazia uso de mastros, pedras, estatuetas e tudo que se relacionasse a procriação, nascimento e renascimento, sendo espalhados objetos em forma fálica por todos os locais. Os próprios deuses eram sexualmente ativos e tinham o poder de conceder ou não a fertilidade as pessoas, animais, a própria terra e tudo que estivesse sobre ou sob ela.

Hoje em muitas crenças e em religiões existem de forma velada ou não reminiscência destes cultos antigos, que são universais, pois estiveram  e estão presentes do Oriente ao Ocidente e em todas as épocas da humanidade. As novas religiões reinterpretaram ritos e símbolos e espalham-se por todo o mundo, temos assim os mastros aos santos cristãos, em especial os de junho, as figas, os objetos e usos do candomblé, os cajados, algumas danças, gestos, vários rituais e ritos de passagem indígenas são repletos de sexualidade, sem falar é claro do (hoje) profano carnaval.

Porém uma das principais reminiscências deste período e destes cultos continua presente na cidade de Amarante no norte de Portugal. Esta cidade  teve sua origem nos povos primitivos que demandaram a serra da Aboboreira, a cidade ganhou importância com a vinda de São Gonçalo (1187-1259), que nascido em Arriconha (Tagilde - Vizela) – Guimarães, fixou-se ali depois de viajar pregando por muitos anos. Atualmente o Conselho (área administrativa) estende-se por uma área de 299 quilômetros quadrados e possui 40 freguesias, 18 ao longo da margem direita do rio Tâmega e 22 na margem esquerda. No centro histórico, merecem destaque a Ponte São Gonçalo, o Convento e a Igreja de São Gonçalo, as Igrejas de São Pedro e Senhor dos Aflitos, vulgo São Domingos. As festas em devoção ao ilustre São Gonçalo acontecem em janeiro e em junho com grande pompa.  Justamente este santo, muito cultuado nas terras portuguesas e brasileiras tem fama de casamenteiro, em especial de casamenteiro das velhas. Sua vida religiosa esteve voltada a várias causas; como construtor de uma  ponte de Amarante que ruiu no ano de 1763, tornou-se patrono dos arquitetos, por livrar a cidade de uma inundação tornou-se protetor das enchentes, por tocar viola e converter as mulheres tidas de má vida tornou-se protetor das prostitutas e dos violeiros,  por casar as viúvas, órfãs e regularizar casamentos dando o sagrado sacramento do matrimônio tornou-se casamenteiro. Assim em suas inúmeras obras acabou também se tornando um santo de fecundidade; muitas mulheres até hoje comparecem em seu túmulo e esfregam a barriga pedindo fertilidade e outros tantos vão agradecer o bom casamento que alcançaram nas graças do santo. Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala escreve: “Os interesses de procriação abafaram não só os preconceitos morais, como os escrúpulos católicos de ortodoxia, e ao seu serviço vamos encontrar o cristianismo que, em Portugal, tantas vezes tomou característicos quase pagãos de culto fálico. Os grandes santos nacionais tornaram-se aqueles a quem a imaginação do povo achou de atribuir milagrosa intervenção em aproximar os sexos, em fecundar as mulheres, em proteger a maternidade. Gente estéril, maninha, impotente, é a São Gonçalo que se agarra nas suas últimas esperanças”. Cita ainda “...o costume das mulheres estéreis de se friccionarem “desnudadas”, pelas pernas da imagem jacente do Bem-Aventurado, enquanto crentes rezam baixinho e não erguem os olhos para o que não devem ver”.

Talvez por estes atributos seu culto se sobrepôs e fundiu-se com  os cultos fálicos já existentes daquela região. Até hoje durante os festejos ao santo, com suas missas, procissões, homilias, fogos, bênçãos e etc, acontece uma quermesse onde por toda a cidade vendem-se “doces de São Gonçalo”; uma  massa doce, uma espécie de pão açucarado no formato de falo. As pessoas compram, comem e se presenteiam com o dito doce que possui os mais diversos tamanhos, desde dez centímetros a mais de um metro. Em visita a uma destas festas (em 2009) cheguei a fotografar a imagem do Santo no meio desses pães numa vitrine de padaria.  O historiógrafo local António Patrício assim escreve: “Doce rústico a base de farinha levemente adocicada e sal que baste, tornava-se agradável ao paladar pela alva cobertura de açúcar que, mãos experientes, religiosamente cobriam, logo que arrefecidos sobre toalhas de linho, também ele, nado e criado nestas terras tamicenses”. Ou nos antigos escritos de Luís Chaves (citado em Casa Grande & Senzala): “Entre outros, as enfiadas de rosários fálicos fabricados de massa doce e vendidos e apregoados em calão fescenino pelas doceiras à porta das igrejas”.

Amarante possui uma gastronomia maravilhosa, com seus enchidos, queijos, vinhos verdes e doçaria conventual espetacular, porém o doce do santo é o principal àqueles que buscam virilidade, fertilidade e um bom casamento. Portugal com sua sobriedade convive de forma muito harmônica e respeitosa com esta fusão de resquícios do paganismo com o catolicismo (universal naquela região) sendo  praticado de forma pomposa e de uma beleza ímpar.

Não nos cabe em hipótese alguma sermos anacrônicos quanto a isso e muito menos tentar ver com olhos moralistas este fato, pois no folclore, nas tradições e nos costumes do povo este julgamento não existe. O que existe é a cultura, a crença, a devoção, a prática, o inconsciente coletivo ou não e principalmente essa bagagem sócio/cultural/antropológica/histórica que está neste fato.

No Brasil, São Gonçalo perdeu a roupa de padre e ganhou capa, chapéu e viola, caiu no gosto popular por ser um santo com o qual se dança e canta, no entanto, apesar do brasileiro se gabar com sua liberalidade os tais doces para cá não se fixaram, o fator virilidade/fertilidade quase que se apagou.  Em relatos do século XVIII no Brasil há severas denúncias de pessoas que abusavam em tais danças a São Gonçalo jogando sua imagem para o ar e denúncias de mulheres que chegavam a passar sua imagem nas “partes”. No entanto a repressão foi tanta que tais costumes praticamente desapareceram ou deixaram de ser públicos, persistindo apenas as danças, palmeados, violas e bate-pés ao santo patrono dos violeiros. Mais uma vez faz-se mister citar Gilberto Freyre: “A festa de São Gonçalo do Amarante a que La Barbinais assistiu na Bahia no século XVIII surge-nos das páginas do viajante francês com todos os traços dos antigos festivais pagãos. Festivais não só de amor, mas de fecundidade”.  Mas não só a São Gonçalo estas atitudes estavam restritas, Gilberto Freyre ainda informa: “Não foram menos faustosas nem menos pagãs as grandes procissões no Brasil colonial. Froger notou na do Corpus Christis, na Bahia, músicos, bailarinos e mascarados em saracoteios lúbricos. Em uma que se realizou em Minas em 1733 foi uma verdadeira parada de paganismo ao lado dos símbolos do cristianismo. A serpente do Éden, os quatro pontos cardeais, a lua rodeada de ninfas. E no fim uma verdadeira consagração de raças de cor, caiapós e negros congos dançando à vontade suas danças gentílicas e orgiásticas em honra dos santos e do Santíssimo”.  Com o passar do tempo, repressões e mudanças de valores, praticamente tais costumes desapareceram ou foram readaptados e reinterpretados dentro da cultura popular e dos novos conceitos da Igreja.

Bem, voltando a Portugal e ao tal doce do santo, no ano passado na ocasião da Mostra de Vinho Verde e Tradições de Amarante que aconteceu nos dias 8, 9 e 10 de julho, foi confeccionado pela Padaria e Pastelaria Pardal, de Filipe Soares,  um doce fálico com 21 metros de comprimento e já pensam para este ano um ainda maior, de acordo com informações o processo para o guiness book já começou. Mas o tal doce fálico não serviu apenas para isso, após as devidas fotos e bênçãos ele foi fatiado e vendido a todos e a renda física (dinheiro) revertida para compra de cadeiras de rodas para deficientes. A renda espiritual (o efeito do pão) ficou no segredo e intimidade de cada um. Apenas posso dizer – ORA, VIVA SÃO GONÇALO!!!!!!

Adendo: São Gonçalo do Amarante nasceu em Portugal em fins do século XII, estudou teologia e ordenou-se sacerdote. Por quatorze anos visitou a Terra Santa e outros lugares santos. Quando voltou entrou na ordem Dominicana e depois foi para Amarante onde construiu uma importante ponte sobre o rio Tâmega, adquiriu fama de santidade e muitos milagres lhe são atribuídos. Segundo a lenda, tocava viola e converteu as pessoas dançando. Veio a falecer no dia 10 de janeiro de 1259, sendo beatificado em 1561 e seu culto permitido a partir do mesmo ano, pelo Papa Pio IV. É tido como patrono dos ossos; daquelas que buscam um bom casamento, das prostitutas, dos arquitetos  e dos violeiros.

Quadras ao Santo: Vale a pena aqui citar algumas quadras do livro QUADRAS BREJEIRAS AO DOCE DE SÃO GONÇALO DE AMARANTE – escrito por Antonio Patricio em 2011 (*), que em seu Preâmbulo cita: “Não podemos esquecer que as quadras populares são uma fonte de expressão popular, num gênero que é típico e exclusivo do povo português, com raízes profundas na cultura popular e integrantes, como elemento, de nossa cultura base”.

O doce de São Gonçalo

É hirto e apessoado

Comê-lo é um regalo

Em corpo abençoado


São Gonçalo é camarada

Dá o doce de mansinho

Seja em cama abastada

Ou na curva do caminho.


São Gonçalo já não ouve

Os pedidos das gaiatas

Tais são os gritos dos doces

Comidos pelas beatas.


Cada boi tem dois cornos

Cada doce duas bolas

São Gonçalo os adornos

Prós namorados manholas.


Vi um doce bem formado

E disse:- é de São Gonçalo

Está muito bem aprumado

E tem a forma de badalo


Não quero ficar de fora

Da novena a São Gonçalo

Não quero perder a hora

De trincar o doce falo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do autor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Cassalho, Valter. "Culto fálico sobrevive e ganha força em Amarante - Portugal
". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 138/15 (2012:4). http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Culto-falico.html



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