Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Lonja de los Mercaderes, Valencia.Conceicao-Velha-de-Lisboa. Foto A.A.Bispo©

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Lonja de los Mercaderes, Valencia.Conceicao-Velha-de-Lisboa. Foto A.A.Bispo©

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Lonja de los Mercaderes, Valencia.Conceicao-Velha-de-Lisboa. Foto A.A.Bispo©

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Lonja de los Mercaderes, Valencia.Conceicao-Velha-de-Lisboa. Foto A.A.Bispo©

Lonja de los Mercaderes, Valencia.Conceicao-Velha-de-Lisboa. Foto A.A.Bispo©

Lonja de los Mercaderes, Valencia.Conceicao-Velha-de-Lisboa. Foto A.A.Bispo©



Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 138/3 (2012:4)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2906


A.B.E.

A Lonja de los Mercaderes como Templo do Comércio e o Consulado del Mar
no estudo de continuidades e ressurgimentos de ordenações visuais
Usos e costumes marítimos de remotas origens do Mediterrâneo, codificações
e a Renascença de antigas imagens

Ciclos de estudos na Itália, França, Espanha e Portugal pelos 500 anos da morte de Amerigo Vespucci (1451-1512)
15 anos de abertura do Centro de Estudos Brasil-Europa da A.B.E. na Alemanha

 


Os ciclos euro-brasileiros realizados em várias cidades européias de países europeus do Mediterrâneo e do Atlântico em maio e junho de 2012 tiveram como objetivo contribuir à consciência relativamente à necessidade e ao significado de uma perspectiva científica no tratamento de questões culturais. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Estudos-e-Esclarecimento.html))

Somente através de uma perspectiva científica podem os estudos culturais servir ao conhecimento e ao esclarecimento de mentes em época marcada por crescente obscurantismo de fundamentação religiosa na Europa e em outras partes do globo.

Como discutido em em vários contextos, essa aproximação cientifica tem como pressuposto leituras mais aprofundadas de textos e de compreensão de tradições narradas e escritas, procurando reconhecer, através de análises, estruturas, sistemas e princípios subjacentes que permitam superar o reducionismo na captação de sentidos derivado de leituras literais ou, em outros termos, de compreensões "ao pé da letra". Nessa insuficiência de leituras reside a causa primeira da insuficiência de entendimentos mais profundos de sentidos, de estreiteza de visões e, consequentemente, do obscurantismo de mentes.

A leitura superficial de textos segundo o sentido literal fecha os olhos à lógica e mesmo a mecanismos sistêmicos vigentes no narrado, prende a atenção às decorrências relatadas em determinados contextos, impede o reconhecimento de relações entre diferentes versões e em conjuntos de escritos que, como em visão prismática, tratam o todo a partir de determinadas perspectivas.

Considerando-se que antigos textos foram muitas vezes fixações de narrativas orais, registrados por escritores ou escribas condicionados pelos seus respectivos contextos culturais, a compreensão literal do grafado impede o reconhecimento dos pressupostos culturais do escrito.

Consideração de concepções e imagens subjacentes a construções históricas

Sendo imagens e concepções de um edifício de visão do mundo e do homem expressas como decorrências no tempo, implícitas assim ao vir-a-ser histórico, a redução da leitura ao sentido literal favorece a suposição de realidade de fatos mesmo em situações de construção histórica, dando origem, assim, a historizações, levando a suposições de veracidade em decorrências que não foram reais.

Os olhos são fechados, sob estas condições, ao reconhecimento da capacidade inerente ao próprio sistema em possibilitar atualizações em determinados contextos e épocas, inclusive naqueles em que o próprio leitor se insere. O alcance de uma consciência esclarecida no próprio presente pressupõe, assim, o conhecimento desses mecanismo sistêmicos, alcançável apenas através de uma leitura mais profunda de sentidos.

A leitura literal de textos - em particular das Escrituras - ainda que pretendendo ser demitologizadora e atentar à história real dos acontecimentos, leva à suposição da realidade de fatos em construções históricas, causando uma ainda maior mitologização.

Não basta, assim, para estudos adequados, considerar apenas contextos históricos e geográficos em que decorreram ou teriam decorrido fatos relatados ou as condições sob as quais teriam sido escritos. Esse procedimento representa apenas superficialmente uma perspectiva científica, uma vez que não dirige a atenção aos princípios, estruturas e processos inerentes aos textos e nos quais se manifestam.

Uma aproximação adequada exige que a atenção seja dirigida a estudos de imagens, de configurações e sistemas imagológicos e seus sentidos, procurando descobrir os seus fundamentos em complexo de ordenações, assim como de mecanismos intrínsecos que permitem as suas atualizações em diferentes contextos.

A leitura adequada de sentidos mais profundos e a atenção dirigida ao sistemático e ao sistêmico subjacentes a narrações não pode, naturalmente, partir de projeções, mas sim de esforços analíticos de detectação fundamentada de imagens e de estudo de suas relações entre si e no todo, de comparações e abstrações.

Para isso, torna-se indispensável procedimentos interdisciplinares, e o estudo de representações visuais e a análise arquitetônica proporcionam de forma privilegiada o aguçamento da percepção para a imagologia e o edifício inerentes às narradas decorrências no tempo.

Momento crucial na passagem de uma interpretação antes sistemática do mundo e do homem àquela histórica deu-se com a transformação da antiga cultura através de sua referenciação com a história narrada nas Escrituras no processo cristianizador do Ocidente.

O pesquisador ocidental, inserido em contexto identificado com a história cristã, acostumado a visões históricas que lhe parecem óbvias, nem sempre é consciente da magnitude e mesmo singularidade dessa transformação de sistemas referenciais na consciência histórica e na identidade cultural de povos.

Sobrevivência de orientação ao sistema e hermenêutica de sentidos subjacentes

A inserção cultural dos povos do Ocidente na história relatada nas Escrituras não significou apenas uma transformação de identidades através de uma referenciação segundo a história de Israel, mas sim a de uma mudança de pêso nas relações entre estrutura e narratividade, entre o sistemático e o histórico, implantando-se uma prioridade do enfoque histórico.

Essa transformação não se deu repentinamente, mas foi, mesmo após a introdução do Cristianismo, um processo complexo, com alternantes submersões e ressurgimentos de fundamentos e estruturas imagológicas no mar da narratividade que se estabeleceu.

Entre os momentos desse processo, um deles foi o da sobrevivência de uma orientação antes sistemática do mundo antigo em expressões culturais mantidas pela tradição  e em determinados contextos da vida secular, sobretudo da navegação. Sujeitos à observação do mundo natural para a orientação na realização de viagens, a própria necessidade existencial manteve viva uma cultura de leitura do mundo perceptível pelos sentidos, em particular de constelações e astros, que, como sinalizadores, indicavam também realidades outras, mantendo, assim, fundamentos de concepções filosófico-naturais e de imagens da Antiguidade.

Na esfera da erudição teológica, a tradição do antigo pensamento e mesmo o seu redescobrimento em diferentes épocas possibilitou uma atenção dirigida ao sentido velado das Escrituras, recuperando, em intuito sistemático, também compreensões de leitura do mundo perceptível pelos sentidos como vestígios divinos e, assim, como sinais.

Sem as pré-condições criadas pela hermenêutica bíblica e pelas consequências dos princípios fundamentados nessa leitura de sentidos mais profundos das Escrituras e mesmo da história eclesiástica, dificilmente poder-se-ia compreender o ressurgimento de expressões culturais da Antiguidade na cultura cristã da Idade Média e, em particular, no Renascimento.

Imagens e narratividade na tradição cultural judaica

Pouco tem-se considerado a situação cultural dos judeus, aqueles cuja tradição escrita, história e construções históricas determinaram, como Revelação, a profunda transformação cultural do Ocidente e que se confrontaram continuamente com tensões e consequências derivadas dessa própria referenciação. Dedicados sobretudo ao comércio, sempre a caminho, percorrendo nações, atravessando mares, é compreensível que também os judeus se orientassem, pelas próprias exigências da vida, por sinais do mundo perceptível pelos sentidos.

Essa atenção dirigida a sentidos sinalizados por corpos celestes e constelações, acompanhados pelas múltiplas associações  e correspondências com o ciclo anual, do dia e com a vida humana teria favorecido uma compreensão sistemática da própria história.

Nesta, duas imagens merecem particular atenção: aquela que revela elos com a navegação - a de Noé - e aquela que indica relações com a liberdade, com leis e com a escrita - a de Moisés, o condutor de Israel que instituiu os mandamentos e que escreveu os livros do Pentateuco.

Ordenações normativas e escrita surgem como inseridas no edifício de concepções e imagens da visão do mundo, pressupondo uma humanidade regenerada fundada pelo Navegador. Essa inserção surge sob luz especial se considerada a partir das próprias exigências vitais do comércio, onde a ordenação de procedimentos e a escrituração se tornam necessárias.

A atenção no ciclo de estudos desenvolvido em Valencia foi justamente dirigida à sobrevivência de uma prioridade do sistemático na visão do mundo de remotas origens em círculos do comércio do Mediterrâneo na Idade Média, assim como o seu significado para a codificações de normas, ordenações, regulamentações, direitos e sua escrita.

Lonja de los Mercaderes, Valencia.Conceicao-Velha-de-Lisboa. Foto A.A.Bispo©
Local de reflexões: Lonja de los Mercaderes e Consulado del Mar em Valencia

As reflexões foram encetadas na Lonja de los Mercaderes de Valencia, um edifício emblemático da arquitetura civil medieval, considerado a maior expressão gótica no âmbito secular da Europa e, ao mesmo tempo, testemunho de reconscientização dos fundamentos da Antiguidade Clássica à época da Renascença na Península Ibérica.

O edifício foi declarado como bem do Patrimônio da Humanidade pela UNESCO em 1996, quando salientou-se o seu valor universal excepcional como testemunho do poder e da riqueza alcançados pelas grandes cidades mercantís mediterrâneas nos séculos XV e XVI.

Os seus espaços documentam o significado concedido à regulamentação, legislação, administração e aspectos jurídicos do trato comercial e do Direito marítimo, salientando-se aqui a magnificência da sua Sala da Contratação.

O complexo foi construído entre 1482 e 1533, em grande parte entre 1482 e 1492, sendo destinado primeiramente ao comércio de seda. Abriga, além da Bolsa da Seda, também o Consulado do Mar. Em 1998, comemorou-se a passagem dos 500 anos de sua fundação.

No seu exterior severo, sugerindo a fortaleza de burgos medievais, o edifício é marcado por uma torre e, no seu interior, pela Sala da Bolsa, de grandes dimensões, obra magna de arquitetura da Idade Média tardia com as suas altas abóbadas apoiadas em esbeltas colunas, abrindo-se a um pátio interno, um horto de laranjeiras que lembra um claustro conventual.


A Lonja foi erigida sob a direção do mestre-de-obras Pere Compte, seguindo modêlo catalão da Lonja de Palma de Mallorca, ainda que com muito maior esplendor, sendo os trabalhos terminados por um de seus discípulos, refletindo a passagem do gótico na sua culminância de fins da Idade Média à Renascença.

Surge, assim, como edifício que oferece condições particularmente favoráveis para estudos de imagens e concepções transmitidas na Idade Média e a ressurreição de referências visuais à antiga cultura no Renascimento.

Pressupostos: comércio marítimo de Barcelona e dos portos de Aragão

Pressuposto para a compreensão do desenvolvimento que teve a sua expressão maior na Lonja de los Mercaderes de Valencia é a consideração do comércio marítimo concentrado inicialmente em Barcelona e nas ilhas Baleares.

As principais rotas de comércio, eram não só aquelas que uniam as cidades continentais às ilhas do Mediterrâneo, entre elas Mallorca, Sicilia e Sardinha, mas também as que se dirigiam ao Norte da África, a Constantinopla, a regiões da Ásia Menor e às partes mais distantes, orientais do Norte da África, e aquelas do Ocidente.

Os elos com as ilhas mais próximas do Mediterrâneo serviam sobretudo ao comércio do sal e de cereais, as com as cidades norte-africanas de Tunis, Tripolis e com a Argelia ao de ouro e escravos, a com o Oriente através Alexandria, Damasco e Tiro a especiarias vindas de longínquas regiões através de países islâmicos.

O comércio com o Norte da África e o Oriente relacionava-se com aquele de Constantinopla, onde se negociava com escravos, especiarias e algodão, e com o do Ocidente, sendo as mercadorias distribuidas pela Europa.

De usos e costumes do mar ao Libro del Consulado

As cidades portuárias do Mediterrâneo foram desde a Antiguidade centros cosmopolitas de intercâmbio comercial como esteios de complexas rêdes de rotas, envolvidas em  campos de tensão de interesses, tendo as suas atividades marítimas ameaçadas por corsários e piratas.

Das mais remotas eras desenvolveram-se normas legitimadas pelo uso e pela tradição dos navegantes e comerciantes para fins de defesa, de solução de conflitos e outras questões de direitos.

Se desde as mais remotas da expansão colonial grega o conflito fundamental do Mediterrâneo era aquele com os persas, medas ou "mouros" (Vide artigo sôbre Marselha), também nos séculos medievais a ação de piratas sarracenos representou principal perigo.

Paralelamente, a concorrência com outros centros comerciais do Mediterrâneo, em particular aqueles de Veneza e de Gênova, aqui também devido às atividades de corsários, criou uma situação que levou à institucionalização de um tribunal de direitos do mar.

Esse Consulado do Mar foi instituido em Valencia em 1283, por privilégio de Pedro III. Essa primeira instituição com essa designação devia seguir os usos e costumes marítimos de Barcelona, os "costumes de mar" (Usus at Consuetudo maris), em parte fixados nas  "Ordenações da Ribeira" (1258).

Esses usos e costumes, - práticas de jurisdição marítima (uso) e normas consuetudinárias (consuetudo) -, ou seja a cultura tradicional popular do homem do mar, relacionada com as exigências com as práticas do comércio, serviram assim como base da instituição dos consulados e da codificação de normas e regulamentos de diferentes origens no Llibre del Consolat de Mar/Libro del Consulado del Mar. A sua primeira compilação em Valencia deu-se na primeira metade do século XIV.

A partir assim de usos e costumes, da tradição marítima e suas regulamentações de remotas origens desenvolveu-se um Direito marítimo codificado que vigorou durante séculos na Espanha - substituido apenas em 1829 pelo Código do Comércio - e no Mediterrâneo nos seus elos com o Atlântico. No litoral da França, foi substituido apenas na segunda metade do XVII.

Apesar de haver diferentes opiniões relativamente às suas origens, salientando-se entre elas aquelas que defendem uma prioridade de Pisa, potência marítima do Mediterrâneo, Valencia orgulha-se de possuir no seu Arquivo Municipal o manuscrito original da edição de 1407, com iluminuras de particular significado histórico-artístico. Foi impresso em Valência, no século XV, documentando não apenas o significado da cidade como também o da literatura não-religiosa na história da imprensa.

O Consulado do Mar de Valencia e a codificação de Direitos marítimos no Libro del Consulado del Mar, nascidos da cultura tradicional marítima mediterrânea a partir de Barcelona, marcaram a história do desenvolvimento comercial marítimo de Aragão. Ao Consulado de Valencia seguiram-se outros consulados em várias regiões da Europa.

O desenvolvimento da indústria e do comércio da seda por judeus e conversos

Já antes de 1341 existia em Valencia uma Lonja del Aceite ou Llotja de l'Oli, um mercado que servia a diferentes atividades mercantís. O extraordinário desenvolvimento textil, em particular da seda, a partir daquele século, promovido e mantido sobretudo por judeus, contribuiu significativamente ao engrandecimento de Valencia, marcando a sua economia e vida até o século XVIII. Em 1487, trabalhavam quase que trezentos mestres de sêda em Valência, um número que aumentou significativamente nos séculos seguintes.

O enriquecimento possibilitado pelo desenvolvimento comercial e financeiro, acompanhado por aumento de auto-consciência e desejos de auto-afirmação na labilidade da situação da comunidade judaica levou à ereção de um novo mercado, correspondente na expressão de seus espaços às novas circunstâncias. Se a antiga Lonja del Aceite era aberta, um espaço coberto apoiado em colunas ou arcos, a nova tornou-se um complexo de esplendor, nobilitador dos próprios negócios, um "templo do comércio".

Esse templo, glorificador do livre-mercado, lembrava, na sua Sala de Contratações, das normas necessárias ao bom procedimento comercial. Em letras douradas nos altos das paredes da sala, contornando-as, os comerciantes eram convidados a apreciar e contemplar o esplendor do edifício, construido em apenas 15 anos. O leitor era convocado a apreciar e contemplar como é bom o negociar, desde que não este não se faça com falsidades, nem com infundadas promessas, nem a serviço da usura e de juros. O mercador que assim agisse alcançaria riqueza e, por último, a vida eterna (!).

Inclita domus sum annis aedificata quindecim. Gustate et videte concives quoniam bona est negotiatio, quae non agit dolum in lingua, quae jurat proximo et non deficit, quae pecuniam non dedit ad usuram eius. Mercator sic agens divitiis redundabit, et tandem vita fructur aeterna.

Essa manifestação explícita do desejo de enriquecimento e as suas relações com o alcance da vida eterna, o que não deixa de surpreender, indica os elos entre mandatos normativos com o comércio, correspondendo a frase à valorização da riqueza e prosperidade no sentido velho-testamentário, acompanhada pela admoestação à lisura e a empréstimos a juros derivados da usura.

Essa admoestação parece refletir noções preconceituosas e discriminatórias anti-judaicas em ótica cristã, o que surge como compreensível pelo fato de terem sido os comerciantes de seda judeus compelidos à conversão. O próprio edifício pode ser lido como expressão da transformação cultural determinada pela conversão, incluindo uma capela, em cuja entrada o comerciante via a imagem do Criador com a esfera do mundo.

Leitura de imagens subjacentes à arquitetura e às representações plásticas

A leitura de sentidos do edifício da Lonja como templo do comércio pode partir da sua verticalidade. O espaço é impregnado de um movimento movido às alturas, uma subida aos céus que se abrem ao alto e que eram pintados de azuis com estrelas douradas. Os mercadores, em baixo, encontravam-se figurativamente numa região baixa, no interior de uma floresta, cujos troncos se erguiam às alturas.

Figuras em capitéis testemunham a presença, mesmo nesse edifício não-sacral, de uma linguagem de imagens que também é encontrada em igrejas e mosteiros. Entre elas pode-se salientar sobretudo aquelas de figuras híbridas que executam instrumentos musicais usados em feiras populares. Registram-se, entre outros, representação de uma face demoníaca, de um homem animalesco, coberto de pelos, de um homem ameaçador, de figuras nuas, de um homem fazendo as suas necessidades, de um par que prática de ato sexual, de um dragão, de centauros com flautas e tímbales, de malabaristas,  de um lobo, de um javali, de uma cabra, de tartarugas e caracóis, assim como de um leão. Na torre vê-se um diabo comendo um tronco. Constata-se, dessa forma, representações conhecidas de textos referentes à humanidade pré-diluviana, da qual adveio Noé, caracterizada negativamente como decaída devido a pecados, sensualidade, prostituição, festas orgiásticas e derramamento de sangue. As figuras com instrumentos musicais populares indicam relações com a vida de mercado em feiras.

A atenção eleva-se assim de uma região marcada por imagens animalescas, grotescas e satíricas, que sugerem a humanidade decaída, quando, sem normas, sem ordenações, o enriquecimento trazido pelas atividades de trabalho e as transações teria sido acompanhado por festins, danças, confusões, conflitos e derramemento de sangue. Correspondentemente, na parte exterior do edifício, registram-se também representações de conotações negativas e de bruxarias.

O comerciante ao entrar na sala, saía de uma esfera exterior, marcada por vida de barulho e agitações, de conotações demoníacas, penetrando num espaço que prometia a subida em direção à libertação de algemas da servilidade e até mesmo à terra prometida nas alturas. O mercador judeu recapitulava figurativamente não apenas a condição fundamental da humanidade remontante a Noé como o Navegador que alcançou terra vindo da humanidade decaída, como a saída de Israel da escravidão do Egito sob a condução de Moisés, atravessando o Mar Vermelho em direção à terra prometida e recebendo os mandamentos.

Nessa sala de celebração do comércio livre conduzido segundo normas, a municipalidade instalou a taula de canvis, criada em 1407, a mesa de câmbio destinada a operações bancárias, à concessão de empréstimos e onde surgiu a primeira letra de câmbio.

Referenciação mariana na Cristianização de comerciantes judeus

A edificação de edifício de tal magnitude em glorificação ao comércio e nobilitador de mercadores apenas podia justificar-se e ser tolerado, nas condições da sociedade cristã da época, através da conversão dos judeus, principais detentores da produção da seda, do comércio e das operações financeiras.

Pressuposto para a apoteose afirmativa manifestada na Lonja foi o fato de terem sido os judeus conversos organizados, em 1465, numa confraria de Nossa Senhora da Misericórdia. A forma de expressão do culto mariano marcada pela Misericórdia, que alcançaria particular significado em Portugal em décadas posteriores (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Conceicao-Velha-de-Lisboa.html), não deve ser compreendida no sentido hoje generalizado, por vezes reduzido, de assistência a pobres e necessitados, mas sim como de proteção a homens de toda as classes e posições que se encontram nas atribulações de sua viagem pelo mundo, encontrando-se sob o manto de Maria reis, papas, bispos e outras personalidades de liderança na sociedade.

A organização de conversos em confraria sob essa denominação sugere o prestígio social alcançado pelos conversos enriquecidos, o que torna compreensível que no próprio espaço da Lonja se encontre uma capela de Nossa Senhora da Misericórdia, edificada em 1484 e 1486. A imagem de Maria venerada na capela desse "templo do comércio", rodeada por anjos músicos, indica a sua assunção e o seu reino nos céus, de onde ouve e atende a voz daqueles que se encontram na terra.

Cristianização nas suas relações com o sistema imagológico

A orientação mariana da confraria dos comerciantes de posses conversos da Lonja indica o mecanismo transformatório de imagens utilizado no processo cristianizador. Trata-se, no sentido amplo, do campo de tensões determinado pelo binômio sinagoga/igreja. Sob a ótica cristã, encontram-se nos Velho Testamento tipos de anti-tipos do Novo Testamento, estes, pela sua compleição, determinando a consideração dos anteriores, o que vale também para a relação Eva/Maria.

Todos os vultos e ocorrências do Velho Testamento dizem assim respeito à esfera inferior, correspondente aos tipos no sistema de imagens da visão do mundo e do homem do Cristianismo, tendo este os seus vultos exemplares na esfera superior, correspondente aos anti-tipos.


O edifício imagológico greco-romano, porém, conhecia tanto tipos como anti-tipos, o que se expressa também na linguagem visual das constelações. Não apenas os tipos bíblicos do Velho Testamento correspondem assim a imagens da tradição clássica, mas sim também os anti-tipos do Novo Testamento. Anti-Tipos surgem no Velho Testamento somente como pré-figurações. As imagens exemplares do Novo Testamento correspondem porém a imagens conhecidas também na Antiguidade Clássica.

A conversão significa, nesse sentido, uma recuperação do conjunto do edifício imagológico no seu todo, restabelecendo uma lógica interna de relações e possibilitando a compreensão de sua dinâmica. Sendo o sistema decorrente fundamentalmente de uma leitura de sentidos indicados por sinais do mundo perceptível pelos sentidos, abrem-se assim portas para a compreensão do conjunto de concepções filosófico-naturais e de suas múltiplas associações, abstrações e compreensões figuradas.

A constatação de que não apenas os tipos da Velha Humanidade, mas também os seus anti-tipos na Nova possuem correspondência no sistema de imagens da Antiguidade Clássica possibilita uma nova compreensão do mundo antigo no Renascimento. Este revela-se sobretudo nos medalhões da parte externa do edifício, agrupados em pares, em total de 40. De autores desconhecidos, os representados podem ser em muitos casos identificados.

Salienta-se, aqui, no primeiro medalhão próximo à torre do lado do Jardim, a imagem de Hermes/Mercúrio, a divindade do Comércio, relacionada também com a palavra e a escrita, e que surge como emblema por excelência da Lonja como "templo do comércio". Além de outros deuses da dodecada olímpica, há representações de reis, entre êles Fernando e Isabel, os Reis Católicos, assim como Maximiliano e sua mulher.

Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "
A Lonja de los Mercaderes como Templo do Comércio e o Consulado del Mar
no estudo de continuidades e ressurgimentos de ordenações visuais
Usos e costumes marítimos de remotas origens do Mediterrâneo, codificações
e a Renascença de antigas imagens"
. Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 138/3 (2012:4). http://www.revista.brasil-europa.eu/138/Consulado-del-Mar.html



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