Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Salford.©Foto A.A.Bispo

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Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 137/10 (2012:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2894


A.B.E.



Mudanças de referenciais culturais de portugueses no Extremo Oriente
à época da expansão do colonialismo britânico II
Música sacra em Macau
- reflexões em Salford, Manchester -


Ciclo de estudos em Peking/Beijing e Manchester
no ano da participação da China como nação convidada na Feira de Hannover 2012
Pelos 500 anos da presença portuguesa na China
em atualização de trabalhos da A.B.E. em Hong Kong e Macau
à época da transferência de soberanias européias à China (1996). Catedral de Salford, Manchester

 

Em fevereiro de 1996, realizou-se, em Macau e Hong Kong, entre outros trabalhos, colóquio dedicado ao previsto fim do Padroado Português do Extremo Oriente como consequência da transferência de soberania de Macau à China. Esse evento inaugurou uma série de encontros e estudos levados a efeito no Brasil, em Portugal e na Alemanha nos anos seguintes.

Transcorridos 15 anos, pareceu ser oportuno retomar questões então tratadas, uma vez que  desempenham importante papel na história cultural das relações sino-européias.

A atualidade de estudos voltados às relações entre a China e o Ocidente resulta da participação especial chinesa na Feira Internacional de Hannover 2012. Ao mesmo tempo, servem à rememoraçãõ~da passagem dos 500 anos de contatos entre chineses e portugueses. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/China-Brasil.html)

Muitas das questões então tratadas são de significado também para a análise de situações e tendências nas relações politico-culturais internacionais do presente, bastando considerar-se que a China apresenta a singular situação de possuir uma igreja nacional com hierarquia chinesa paralela àquela de Roma.  (António Duarte de Almeida e Carmo, A Igreja Católica na China e em Macau no contexto do Sudeste Asiatico: Que futuro?, Macau: Fundação Macau/Instituto Cultural de Macau/Instituto Português do Oriente, 1997)

Os trabalhos de 2012 foram desenvolvidos em Peking/Beijing e Manchester, Inglaterra, cidade que possui considerável comunidade chinesa. Como centro da Revolução Industrial e do comércio internacional britânico à época da expansão colonial do Império Britânico no século XIX, Manchester surge como local particularmente adequado para o desenvolvimento de estudos concernentes às transformações ocorridas nas relações entre a China e o Ocidente com a fundação de Hong Kong (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/China-Brasil.html).


Manchester surge como local favorável para reflexões, também para o tratamento de questões referentes à história eclesial nos seus elos com processos culturais à época da industrialização e do liberalismo econômico e que foi também, paradoxalmente, a do Historicismo. A cidade não apenas possui uma catedral anglicana que representa um dos maiores monumentos arquitetônicos da Inglaterra (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Musica-sacra-Hong-Kong.html); possui, também, na sua área metropolitana, uma catedral católica que é um dos mais expressivos testemunhos do movimento de Restauração e do Romantismo historicista do século XIX: a de Salford.


A oportunidade de tecer-se reflexões sôbre extensões mundiais e consequências do movimento restaurador e historicista representado pela igreja de Salford foi proporcionada pelos preparativos à realização, na Irlanda, do 50° Congresso Eucarístico Internacional de 2012.


Local de reflexões: Catedral de São João Evangelista de Salford


Aquele que visite a catedral de Salford surpreende-se ao constatar ter sido esse monumento arquitetônico que sugere remotas origens edificado apenas no século XIX, tal é a fidelidade que mantém a modêlos do passado gótico tardio de tradição monacal.


Construida entre 1844 e 1848, a catedral de Salford, projetada por Matthew Ellison Hardfield (1812-1885). adquire um alto significado simbóiico para o Catolicismo na Inglaterra, cuja hierarquia foi reestabelecida apenas em 1850. Ela surge como um testemunho expressivo do movimento de restauração religiosa nos seus elos com a reconscientização da história da cristianização das ilhas britânicas e do Catolicismo medieval.


Significativamente, a história do Catolicismo na Inglaterra é relembrada em vitrais da catedral, criados em 1856, e que apresentam a conversão de Ethelbert por S. Agostinho, em 597. Mais do que em muitos outros casos de obras neo-góticas, os pesquisadores puderam identificar as igrejas que serviram de modêlos ao projeto da catedral: o mosteiro de Howden para a sua face ocidental, a igreja de Newark para a torre, a abadia de Selby para o coro e, para o telhado, a igreja de Santiiago, em Liège, Bélgica.


Outro fator que faz com que a catedral de Salford surja como sugestiva para reflexões relativas a desenvolvimentos do Catolicismo em contextos mundiais em meados do século XIX reside nos elos entre o movimento que levou à sua edificação, a indústria e o comércio. A sua ereção tornou-se apenas possível graças a substanciais doações de negociantes enriquecidos e que são até hoje lembrados no coro da igreja.


Revendo colóquio de 1996 em Macau pelo fim do Padroado Português


A relevância da instituição do Padroado Português para os estudos culturais, sobretudo se orientados para processos em contextos globais, foi salientada em Roma em 1991, em sessão acadêmica especialmente convocada na Universidade Urbaniana, sob a presidência do entãõ Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, atual Pontífice.

Nessa ocasião, apresentando resultados de trabalhos desenvolvidos na década de 80, o editor desta revista lembrou que os estudos do Padroado Português não são apenas de significado sob o aspecto da história da legislação eclesiástica ou da missiologia, mas sim também, sob diversos aspectos, para os estudos culturais em dimensões mundiais, em particular para aqueles relacionados com Portugal, Brasil e outros países marcados pela ação dos portugueses.

O Padroado determinou sistemas de referências histórico-culturais, rêdes pessoais e institucionais, expressões culturais, elos de identidade, configurações e processos no contato entre povos e na formação de comunidades para além de limites locais e regionais em diferentes esferas do mundo.

A história das relações marcadas por tensões entre o Padroado e a Propaganda Fide foram não apenas singulares ocorrências da história da Igreja e das missões, mas sim também do direito internacional relacionado com a cultura e da diplomacia cultural, determinando orientações e re-orientações de comunidades, regiões e países com determinadas nações da Europa.

Não é possível estudar adequadamente processos culturais em contextos globais sem a consideração dessas relações e tensões seculares, uma vez que em muitos casos e por longas épocas determinaram elos mais estreitos de comunidades com as respectivas nações européias que mais se destacaram no seu empenho pela Congregação romana, em particular a França.

Para países marcados na sua formação pela ação dos portugueses, como o Brasil, estudar mais profundamente as dimensões culturais do Padroado e suas consequências, procurando diferenciar as suas expressões e os processos que desencadeou, representa uma tarefa e mesmo uma exigência.

D. Domingos Lam Ka-Tseung (1928-2009)

Os trabalhos do I.S.M.P.S./A.B.E. de 1996 foram marcados por colóquio realizado no Palácio Episcopal de Macau sob a presidência de D. Domingos Lam Ka-Tseung, então bispo de Macau.

Nessa ocasião, o prelado expôs a situação cultural da Diocese, os seus antecedentes, as perspectivas para o futuro, as transformações que já então se processavam e as necessárias reflexões sobre o passado que se encerrava. O motivo imediato do encontro foi a fundação, naquele ano, do Instituto Inter-Universitário de Macau.

Resignado em 2003, D. Lam Ka-Tseung foi, na época de transição político-administrativa, uma das mais competentes personalidades para o diálogo internacional sôbre questões culturais que se levantavam com as transferências de soberanias de paises europeus à China.

Chinês, nascido em Hong Kong, mas tendo crescido e vivido em Macau, de cuja Diocese foi coadjutor desde 1987 e bispo desde 1988, D. Lam Ka-Tseung foi o primeiro bispo de origem chinesa da Diocese. Com a sua origem, estabelecu a ponte entre a tradição católica de Hong Kong e a de Macau; com a sua experiência missionária, fortaleceu vínculos entre Macau e Singapura, onde atuou de 1962 a 1973.

D. Lam Ka-Tseung estava empenhado nos trabalhos que preparavam a transferência de soberania de Macau para a China, e que se processou no dia 20 de Dezembro de 1999. Foi o bispo, assim, que selou o fim do Padroado Português. Era, sobretudo, particularmente interessado por questões culturais e educacionais, preocupado pela formação humanística da juventude desde a sua atuação como reitor da Escola Dom João Paulino.

Arquivo ISMPS/ABE
O colóquio devia servir à preparação a um congresso internacional de maiores dimensões dedicado a análises culturais dos séculos do Padroado e voltado a reflexões sobre perspectivas futuras das relações entre a China e o Ocidente; reconhecia-se a necessidade de reflexões sôbre eventuais fundamentos que devessem ser lançados antes da transferência da soberania de Macau para a China.

No decorrer dos trabalhos, porém, D. Domingos Lam Ka-Tseung considerou que um evento dessa natureza seria de difícil realização na situação sensível de transição, uma vez também que muitos macaenses de ascendência européia já tinham saído do território.

Decidiu-se, assim, procurar meios para a sua efetivação na Europa. O evento foi, então, realizado em menores dimensões em Portugal, infelizmente sob circunstâncias que deturparam as suas intenções e seus objetivos (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/China-Brasil.html).

Debate músico-cultural pelo fim do Padroado

Questões de cultura-musical estiveram no centro das atenções do colóquio de 1996. D. Domingos Lam Ka-Tseung possuia formação musical como violinista e cantor, atuando também como compositor. Tendo estudado no Seminário S. José e no Instituto Salesiano de Macau, representava a tradição que marcou a história de Macau como principal centro sacro-musical do Extremo Oriente do século XX.

No decorrer dos trabalhos, algumas de suas composições foram por êle comentadas, e, no seu encerramento, D. Domingos Lam Ka-Tseung ofereceu aos representantes do I.S.M.P.S. exemplares da publicação, em dois volumes, Cantemos Alegres, com elaborações corais de cantos comunitários praticados na Diocese.

Nas suas explanações, D. Lam Ka-Tseung, apesar de sua origem chinesa e na consciência dos intentos de consideração de contextos culturais não europeus na música sacra, demonstrou os seus profundos vínculos com a tradição da reforma sacro-musical no espírito do Motu Proprio de Pio X° (1903).

Esse movimento restaurador caracterizou-se pelo seu vínculo particularmente estreito com Roma, representando sob determinados aspectos a culminação de desenvolvimentos de séculos que marcaram essa esfera do globo, a saber aquela que levou à gradual predomínância da ação missionária a serviço da Propaganda Fide em esfera do Padroado Português do Oriente.

Na sua exposição, D. Lam Ka-Tseung considerou que, antes da Reforma, a prática musical no Seminário e nas igrejas da Diocese tinham sido marcadas pela tradição portuguesa da música sacra com acompanhamento instrumental, comuns a outras regiões do Padroado, por exemplo em Goa.

Para êle, essa tradição era portuguesa, ou seja, tinha conotações nacionais, não considerando, nessa sua opinião, que a corrente restaurativa que a ela se seguiu era ainda em muito maior escala orientada segundo modêlos europeus.

O Seminário São José de Macau como condutor da Restauração

Pela passagem do século, o desenvolvimento iniciado em Hong Kong passou a ser liderado pelo Seminário Diocesano de Macau.


O grande vulto dessa fase da história do Extremo Oriente é o do açoriano D. João Paulino de Azevedo e Castro (1852-1918), bispo de Macau de 1902 a 1918 (http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Portugueses-em-Singapura.html). Ainda que empenhando-se de forma especial pelo patrimônio representado pelos bens do Padroado Português do Extremo Oriente, foi, do ponto de vista músico-cultural, um dos principais promotores da reforma sacro-musical através da formação de uma geração de sacerdotes imbuídos do espírito da restauração litúrgica. Esses sacerdotes deveriam vir a ser multiplicadores dos ideais restauradores, dos quais a música sacra era parte integrante e fundamental.

Dom Lam Ka-Tseung salientou que, após um período de florescimento e de interrupção da vida do Seminário, teve início uma nova época como instituição de formação local de religiosos para a missão na China. O ensino dos seminaristas foi marcado por uma especial atenção dada à música, orientados por professores de alta competência vindos da Europa, estabelecendo-se sob o ponto de vista musical, elos com instituições de renome, entre elas com a Academia Santa Cecilia de Roma. A própria formação de agentes da missão externa, aqui para a China, passaram a ser formados segundo os ideais da restauração litúrgico-musical.

Um marco da Restauração reeuropeizante em Macau (1903)

Marco da reforma em Macau foi uma solenidade realizada no dia 6 de setembro de 1903, quando, a partir das duas horas da tarde, na sala das seções literárias e atos dramáticos do Seminário, teve lugar a cerimônia de entrega de prêmios aos alunos que mais se distinguiram nos anos de 1901 a 1902 e de 1902 a 1903.

O jornal O Patriota, de Hong Kong, na sua edição de 16 de setembro, comenta a grande assistência a esse ato, no qual também estava representado o Governador através do administrador e ajudante de campo.

O ato foi concebido como uma festa literária de imponência, não só por que havia já dois anos que se não distribuiram os prêmios no Seminário, mas sim também devido ao fato de ser presidida pelo novo prelado, conhecido pelo seu zêlo.

A solenidade foi aberta por um hino do próprio bispo D. Paulino, executado pelos alunos que participavam da orquestra do Seminário, regida pelo Pe. J. Lau. A seguir, ouviu-se um hino a várias vozes cantado pelos meninos e jovens de menor idade do Seminário. Terminado esse canto, subiu ao palco o estudante Antonio Teixeira para recitar o hino A Pátria, de Soares de Passos (1826-1860), poeta nascido no Porto, fundador do jornal O Novo Trovador, representante do romantismo exaltado.

Depois de distribuidos os prêmios de comportamento e do curso teológico, o acadêmico Felipe de Souza recitou a poesia Portugal, escrita por um dos sacerdotes.

O bispo D. Lam Ka-Tseung salientou o significado do desenvolvimento da instituição após a Primeira Guerra, em particular na década de 20, quando, sob o reitorado do Pe. Francisco Bonito Bragança (1924-1929) deu-se acentuada atenção à formação musical de seminaristas.

Assim, se houve pela passagem do século uma reconscientização do patrimônio histórico e material representado pelos bens do Padroado, não houve reconhecimento do patrimônio imaterial representado pela cultura de séculos desenvolvida sob a sua égide, com características próprias, e que agora passava a ser reformada segundo concepções e tendências desenvolvidas nos centros do pensamento restaurador da Europa, em particular da França, da Alemanha e da Itália.

Macau transformou-se, assim - também de forma paradoxal - em centro de difusão do Restauracionismo católico no Extremo Oriente, determinando desenvolvimentos em várias outras regiões.

Elos com a Áustria e a Alemanha: Wilhelm Schmid SDB (Sima) (1910-2010)

Uma nova e importante fase foi inaugurada com a vinda do Salesiano austríaco Wilhelm Schmid SDB (Sima), destacado músico e professor de música de Macau, que até 1966 atuou como regente coral e professor do Seminário de São José e do Colégio Salesiano, assim como mestre da Banda da Força Policial e da Banda Salesiana.

Com os seus estudantes e com o apoio de músicos das diversas instituições com as quais mantinha contatos criou pressupostos para a realização de obras de maior envergadura em apresenções teatrais e concertos.

Como professor, deu atenção especial a uma sólida formação teórica em harmonia, contraponto e fuga; como compositor, criou cantos marianos e eucarísticos em latim, portugues e chinês.

Entre os seus alunos, além do próprio D. Lam Ka-Tseung, destacaram-se D. John Tong - que seria sucessor de D. Lam - e Domingo Lam Ngok-pui, assim como Mons. Antonio Lau, da Universidade Católica de Taiwan. Uma menção especial foi dada também a religiosos músicos de Timor que atuaram no passado em Macau; relativamente aos elos com Hong Kong, o prelado salientou Domingos Lam Senior, professor de música da Universidade de Hong Kong e que posteriormente passou a atuar em Toronto.

Assim como a atuação de Wilhelm Schmid demonstra, Macau distinguiu-se por um singular relacionamento entre as rêdes da música sacra e da banda de música. Este foi o caso da banda da paróquia de São Lázaro, chinesa, que tocava na tradicional Procissão dos Passos, um dos grandes acontecimentos religioso-culturais de Macau, e cujos instrumentos e materiais passaram posteriormente para a Banda Policial.

No decorrer do colóquio, procurou-se considerar os paralelos com a atuação de Salesianos no Brasil, em particular com a atuaçãoo e a orientação do Pe. Dr. José Geraldo de Souza, compositor e pesquisador, por vários anos presidente da Sociedade Brasileira de Musicologia e membro do I.S.M.P.S.. (http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/CM09-06.htm)

Ao mesmo tempo, procurou-se considerar as atividades relacionadas com bandas de música de Wilhelm Schmid nas suas inserções na longa história dessa prática em Macau e naquela de Hong Kong que tinha levado à integração de práticas e repertórios de esferas culturais não-latinas na vida musical de portugueses.


Wilhelm Schmid, segundo D. Lam Ka-Tseung, teria sido aquele que possibilitou a criação de estreitos elos entre Macau e o mundo de língua alemã. No decorrer do colóquio, porém, lembrou-se que o movimento de reforma da música sacra tinha sido promovido privilegiadamente por centros sacro-musicais da Alemanha, em particular de Regensburg, sendo a partir desses fundamentos que deviam ser considerados os elos do movimento de reforma litúrgico-musical de cunho restaurativo do Extremo Oriente com o mundo de língua alemã.

Açorianos no desenvolvimento sacro-musical da segunda metade do século XX

Relativamente aos elos com Portugal, D. Domingos Lam Ka-Tseung salientou a personalidade e a obra do Pe. Aureo da Costa Nunes e Castro (†1993).

Nascido nos Açores, na ilha do Pico, desde 1931 em Macau, onde estudou no Seminário de São José e foi ordenado sacerdote em 1943, tornou-se ali professor e capelão da Sé, além de pároco da Paróquia de São Lourenço e professor de canto coral do Liceu de Macau.

Enviado a Lisboa, estudou Composição no Conservatório Nacional, de 1951 a 1958, tendo como professores, entre outros, Croner de Vasconcelos (1910-1974); chegou a ser assistente de Mario Sampayo Ribeiro (1898-1966), um dos principais nomes da erudição musical portuguesa.

Como compositor, o Pe. Aureo da Costa Nunes e Castro escreveu, ainda em Portugal, sonatas e sonatinas, Três Corais sobre Melodias Gregorianas e um Te Deum, o que indica a sua orientação estética presa à tradição e à orientação teológico-musical fundamentada no Motu Proprio e no culto ao Gregoriano e à Polifonia Vocal.

Significativamente, fundou, ao retornar, o Grupo Coral Polifônico e, em 1962, a Academia de Música de S. Pio X. Exerceu, assim, importante papel na formação de grande número de músicos e no alcance do alto nível musical que caracterizou o clero de Macau.

Neste contexto, lembrou-se do nome do Pe. Cezar Brianza, que, juntamente com Pe. Aureo da Costa Nunes e Castro, atuou na Academia de Música S. Pio X. O seu trabalho teve repercussões entre outras regiões do Extremo Oriente e do Sudeste da Ásia, uma vez que de Macau partiram missionários, lembrando-se aqui da China, de Singapura e mesmo da Austrália, aqui através da atuação do Pe. Lucas Lam.

Os elos culturais com os Açores representados pelo Pe. Aureo da Costa Nunes e Castro tiveram a sua expressão também na ação de D. Paulo José Tavares, que, após ter atuado na Secretaria de Estado do Vaticano (1947-1961), foi Bispo de Macau (1961-1973), tendo tomado parte no Concílio Vaticano II. Ainda que o Seminário São José tenha deixado de funcionar no período pós-conciliar, sendo os seminaristas enviados a Portugal e a Hong Kong, esse bispo promoveu o estudo de sacerdotes em Manila e em Roma.

Sob D. Paulo José Tavares acentuou-se o antigo anelo da formação de clero nativo, levando-o a apoiar a formação de sacerdotes chineses com o sentido de equipará-los aos europeus filiados ao Padroado Português. Assim, em 1966, nomeou o Pe. António André Ngan para vigário-geral (1966-1974), o primeiro chinês que ocupou cargo de govêrno do bispado. Como D. Lam Ka-Tseung salientou, ainda que chinês, A. A. Ngan compunha na tradição teórico-musical ocidental, escrevendo motetos com texto latino.

Com o encerramento das atividades do seminário, em 1976/77, o ensino musical em Macau passou a ser mantido pela Academia de Música, apoiada por alguns sacerdotes e seminaristas, entre êles Marcos Lau na área das matérias teóricas.


Fim da prática polifônica na tradição da Restauração sacro-musical

A prática sacro-musical nas igrejas, segundo D. Domingos Lam Ka-Tseung, passou por um substancial retrocesso nas décadas posteriores ao Concílio, podendo-se constatar apenas mais raramente a execução de uma ou outra obra polifônica.

Os padres chineses da nova geração tiveram sobretudo a preocupação de traduzir textos do latim e do português para o chinês. As missas mais recentes, em chinês, com cantos de diferentes autores, foram antes coletâneas de melodias simples de cunho popular. Muito raramente passou-se a ouvir uma obra a várias vozes em latim do repertório mais antigo, e, nesta caso, tratava-se da Missa Tertia de Lorenzo Perosi (1878-1903).

Segundo Dom Lam Ka-Tseung, houve uma certa preocupação pelo desenvolvimento de uma música com características locais após a Segunda Guerra Mundial, sobretudo nos anos 50; teria sido um fenômeno paralelo a movimento de formação de uma hierarquia chinesa e teria levado à criação de algumas obras significativas. Entretanto, não teriam sido feitos esforços para a utilização de instrumentos chineses na música sacra, com exceção de algumas tentativas mais recentes encetadas por êle próprio, com as quais alguns não concordavam. Esse singular fato poderia ser explicado pelo fato dos euro-asiáticos não apreciarem música chinesa; isso mudava-se apenas gradualmente com uma nova geração de sacerdotes chineses.

Um dos grandes acontecimentos sob a perspectiva da consideração da cultura tradicional dos povos asiáticos na composição musical foi, para Dom Lam Ka-Tseung, o Congresso Eucarístico de Bombay, de 1966, onde constatou-se a qualidade do patrimônio cultural indo-cristão do Malabar. Ali, porém, não se falava de "inculturação", mas sim de valorização da tradição secular dos cristãos de São Tomé (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/131/Cochim-Cristaos_de_Sao_Tome.html).

A época de transição de Macau abria para D. Domingos Lam Ka-Tseung perspectivas promissoras, uma vez que a cultura local passaria a ser fomentada, esperando-se sobretudo uma nova fase de florescimento da poesia devido a tendência de chineses à arte poética.

Paradoxias de desenvolvimentos no século XX

A exposição de D. Domingos Lam Ka-Tseung demonstrou que os desenvolvimentos constatados no século XIX, sobretudo após a fundação de Hong Kong, foram acentuados e tiveram consequências que determinaram processos músico-culturais no século XX.

Se, como esse prelado salientou, os religiosos chineses não possuiam maior interesse pela cultura musical chinesa, êle próprio, como primeiro bispo chinês de Macau, nunca conseguiu libertar-se da formação que recebera no espírito do Motu Proprio.

Considerando a antiga tradição da música sacra com acompanhamento orquestral de Macau como portuguesa e, assim, européia, não via que a cultura musical no espírito do Motu Proprio era ainda mais do que ela expressão de movimentos europeus que conscientemente se orientavam segundo modêlos do passado polifônico europeu.

Os sacerdotes e músicos chineses, formados segundo esses ideais em Hong Kong e, posteriormente, em Macau tinham sido profundamente condicionados por desenvolvimentos europeus de cunho historicista, constatando-se uma discordância entre anelos de criação de clero nativo, de uso do chinês e de expressões músico-culturais.

Em visão panorâmica, os processos aqui considerados desde a fundação de Hong Kong - mas que têm raízes mais profundas - apresentam-se marcados por complexos desenvolvimentos paradoxos, marcados por destruições e reconstruções, continuidades e descontinuidades, de esforços surpreendentes de criação de coros, de obras, de elevação de nível de execução e de praticas de ensino que foram mudados e abandonados após algumas décadas. Os empreendimentos representaram extraordinários desgastes de forças e de talentos.

A análise cultural mais profunda deve voltar-se aqui às bases conceituais dos mecanismos que levaram a esse desenvolvimento marcado por contradições.

Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Mudanças de referenciais culturais de portugueses no Extremo Oriente à época da expansão do colonialismo britânico II: Música sacra em Macau". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 137/10 (2012:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Musica-sacra-Macau.html




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