Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Catedral de Manchester. ©Foto A.A.Bispo

Catedral de Manchester. ©Foto A.A.Bispo

Catedral de Manchester. ©Foto A.A.Bispo

Catedral de Manchester. ©Foto A.A.Bispo

Catedral de Manchester. ©Foto A.A.Bispo

Catedral de Manchester. ©Foto A.A.Bispo

Catedral de Manchester. ©Foto A.A.Bispo

Catedral de Manchester. ©Foto A.A.Bispo

Catedral de Manchester. ©Foto A.A.Bispo

Catedral de Manchester. ©Foto A.A.Bispo

Catedral de Manchester. ©Foto A.A.Bispo

Catedral de Manchester. ©Foto A.A.Bispo

Catedral de Manchester. ©Foto A.A.Bispo

Catedral de Manchester
Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 137/9 (2012:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2893





Mudanças de referenciais culturais de portugueses no Extremo Oriente
à época da expansão do colonialismo britânico I
Música sacra em Hong Kong
- reflexões em Manchester-


Ciclo de estudos em Peking/Beijing e Manchester
no ano da participação da China como nação convidada na Feira de Hannover 2012
pelos 500 anos da presença portuguesa na China
em atualização de trabalhos da A.B.E. em Hong Kong e Macau
à época da transferência de soberanias européias à China (1996). Catedral de Sta. Maria, S. Denis e S. Jorge, Manchester

 
Catedral de Manchester. ©Foto A.A.Bispo
Com a participação da China como nação convidada da Feira de Hannover 2012 - o maior evento de inovações tecnológicas do globo -, questões de natureza cultural referentes às relações entre a China e o Ocidente tornaram-se particularmente atuais.

Para o tratamento adequado de processos históricos que relacionam intercâmbios comerciais, científico-tecnológicos e desenvolvimentos culturais, realizaram-se ciclos de estudos em Peking/Beiging e Manchester.

Manchester possui uma das mais significativas colonias chinesas da Europa, mantém intensas ligações com Hong Kong e, como centro da Revolução Industrial e cidade por excelência do Liberalismo Econômico, surge como particularmente adequada para estudos de processos desencadeados na esfera do mundo colonial inglês do século XIX (veja Tema em Debate).

Catedral de Manchester. ©Foto A.A.Bispo
A catedral de Manchester, importante monumento do patrimônio arquitetônico e histórico-cultural inglês, oferece-se como local sugestivo para reflexões sôbre aspectos complexos e mesmo paradoxais de desenvolvimentos religioso-culturais no Extremo Oriente determinados pela presença britânica em Hong Kong.

Em exposição na nave lateral da catedral, pôde-se constatar o espírito de abertura, de tolerância e de respeito à diversidade cultural que orienta a comunidade anglicana de Manchester na atualidade. Ali expõe-se as origens e características da Igreja Anglicana, salientando-se os seus elos tanto com o Catolicismo como com a Reformação, assim como a sua particular conformação nacional como Igreja da Inglaterra. Também acentua-se o interesse pelo diálogo com outras religiões e os esforços que vêm sendo feitos para intensificá-lo em vários contextos culturais que contam com a presença de comunidades anglicanas.

O que não se tem considerado suficientemente são as consequências indiretas da existência de comunidades anglicanas em contextos que, no passado, pertenciam à jurisdição do Padroado Português do Extremo Oriente.


Consequências indiretas da presença inglesa em Hong Kong

Essas consequências não derivaram primordialmente do fato de surgir um colonia e um centro da igreja inglesa em Hong Kong, defronte a Macau, mas sim indiretamente, por possibilitar, sob a egide de outra nação européia, que ali se estabelecesse um centro de ação católica não vinculado à tradição do Padroado português.

Um dos argumentos que há séculos marcavam os esforços em nome da Propaganda Fide, fundada em 1622, e que a fazia surgir em tensão ao Padroado Português, era aquele salientava a necessidade de formação de clero das respectivas regiões, substituindo, assim, um sistema no qual o clero era sobretudo português.

Também em Hong Kong o o objetivo primordial dos esforços apostólicos foi o da criação de um polo irradiador da missão chinesa e o da formação de clero chinês. O desenvolvimento rápido da colonia britânica como centro comercial acarretou imigrações de chineses de Cantão e de outras regiões da China, tornando-se também centro de emigração e, portanto, de passagem.

Já no ano em que a ilha foi ocupada, em 1841, época da Guerra do Ópio (1839-1842), estabeleceu-se a Prefeitura Apostólica de Hong-Kong, separada da Diocese de Macau. Em 1846, construiu-se ali um seminário para a formação de clero chinês e, no ano seguinte, chegaram os religiosos da Sociedade de Missões Estrangeiras de Paris. Essa sociedade tinha como objetivo o envio a partir de Hong Kong de missionários para a China, Coréia, Japão e Vietnam. Em 1848, o trabalho social junto a órfãos e idosos passou a ser desempenhado pelas Irmãs de São Paulo de Chartres.

Uma nova fase foi iniciada a partir de 1867 após a cessão aos ingleses da península de Kowloon à época da Segunda Guerra do Ópio (1858-1860). Essa fase foi iniciada com a  vinda de seis missionários do Instituto Pontifício para as Missões Estrangeiras de Milão e das Irmãs Canossianas, tendo sido marcada por uma intensa atividade religioso-social com a construção de conventos, hospitais e escolas.

O desenvolvimento rápido de Hong Kong como centro comercial trouxe, porém, considerável número de migrantes de Macau, portugueses e seus descendentes, e que constituiram em grande parte a comunidade católica da colonia britânica, lançando as bases para o vir-a-ser de Kowloon com centro cultural do território.

Esses portugueses integraram-se em situação comunitária marcada pela orientação de representantes de instituições primordialmente voltadas à missão exterior, que passaram agora a atuar em missão interior junto a portugueses que já possuiam uma cultura religiosa de secular tradição.

Esses portugueses não precisavam ser atraídos, conquistados, afastados da sua cultura tradicional como os não-cristãos. O resultado da orientação missionária na Missão Portuguesa foi, assim, antes de natureza cultural, ou seja, de modificações de concepções e práticas religiosas. Surgiam como uma renovação que significava o abandono de tradições cultivadas em Macau e representava, na verdade, tendências restaurativas européias.

Mudança de referenciais culturais para os católicos portugueses de Kowloon

Para os 1500 portugueses que viviam numa comunidade de ca. de 3000 pessoas, a ação do Instituto de Milão representou uma significativa intensificação da influência italiana na vida religioso-cultural. Esses portugueses, ao mesmo tempo que se afastaram da tradição luso-macaísta, apesar de manterem os seus vínculos emocionais com o território, tornaram-se representantes de uma nova época, sentida como progressista. De Hong Kong e Kowloon partiram impulsos que influenciaram Macau e que culminaram na Reforma de cunho restaurativo de sua vida religiosa.

Esse redirecionamento trouxe consigo uma mudança de referencias históricas culturais católicas segundo a nacionalidade dos missionários, o que se manifestou sobretudo no culto de santos. A cultura católica de Macau, que agora tornava-se já expressão de um passado, era resultado de séculos de desenvolvimentos e adaptações a circunstâncias e possibilidades locais, ou seja, possuia características próprias na diversidade de suas festas, procissões e sobretudo na sua música sacra com acompanhamento orquestral.

Sob o aspecto sacro-musical, a comunidade dirigida pelos italianos tornou-se um centro de irradiação do movimento de combate à música teatral nas igrejas, representado pelo Mtro. Niccolo Cattaneo (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Carlos-Gomes-na-China.html), e que se extendeu à música vocal de acompanhamento orquestral em geral nas igrejas.

A familia Cattaneo encontrava-se representada na história missionária do Extremo Oriente há séculos e desempenhava importante papel na vida católica italiana. Assim, D. Angelo Cattaneo M.E.M., nascido em 1844 na Itália, tornou-se bispo de Hong Kong (1905-1910). Sob a ação de Cattaneo, Kowloon tornou-se um centro de orientação contrária à tradição que marcava a vida religioso-cultural de Macau.

O desenvolvimento da comunidade católica de Hong Kong, Kowloon e dos New Territories foi rápido, com consequências para o Catolicismo em todo o Extremo Oriente. Em 1874, Hong Kong é elevado a Vicariato Apostolico. Em 1883, iniciou-se a construção da catedral da Imaculada Conceição, consagrada em 1888.

Em visão panorâmica retrospectiva, tem-se, assim, a singular situação marcada por desenvolvimentos paradoxais: em colonia de potência com uma igreja de conformação nacional, desenvolveu-se um Catolicismo conduzido por instituições a serviço do universal representado por Roma a serviço de clero nativo. A colonia portuguesa, de antiga tradição católica, passou a ser conduzida por instituições contrárias aos elos eclesiásticos com Portugal e que eram fundamentados no Padroado. Afastou-se, assim, de uma cultura religiosa que já possuia características próprias, integrando-se em movimento marcado por uma profunda reeuropeização a partir de anelos restaurativos representados pelos  religiosos europeus e pelos pressupostos culturais que traziam.

Hong Kong, colonia tão progressiva, tornou-se - também aqui de forma paradoxal - um centro de Catolicismo restaurador, anti-modernista e anti-liberal, de conotações políticas de união com Roma que em países da Europa Central surgia como ultramontano e anti-nacional, razão, na Europa Central alemã, de um "conflito de culturas".

Com a crescente intensificação dessas tendências na Europa, com a formação de clero em instituições marcadas pelo movimento restaurador e com a ação da legislação pontifícia, essa orientação também passou a ser defendida por sacerdotes vinculados ao Padroado.

Retomada de reflexões da época da transferência de soberania de Hong Kong à China

Os estudos de 2012 realizaram-se 15 anos após encontros em Macau e Hong Kong, levados a efeito em época da transferência da soberania desses dois territórios respectivamente de Portugal e da Grã-Bretanha à China. A partir agora de outra perspectiva, retomaram-se questionamentos de então e reanalisaram-se materiais. Procurou-se, assim, focalizar as decorrências históricas a partir da perspectiva chinesa, não da colonial européia.

Um pesquisador chinês que procure estudar a história cultural de Hong Kong e que para isso necessariamente tenha que recorrer às fontes históricas da população européia, constata o extraordinário desenvolvimento da vida musical que a cidade vivenciou em poucos anos. Esse desenvolvimento adquire interesse sob diferentes aspectos para os estudos culturais regionais e globais.

Em Hong Kong surgiu em poucas décadas um centro cultural marcado por cosmopolitismo. Se Macau possuía há muito uma vida músico-cultural de características européias, o cosmopolitismo de Hong Kong dela diferenciou-se devido à presença inglêsa. Entretanto, o desenvolvimento de Hong Kong como centro cultural apenas tornou-se possível devido à migração de macaenses que para ali se transferiram à procura de melhores condições de comércio.

Hong Kong assume um significado especial para estudos culturais de migração e o próprio dinamismo de sua vida cultural pode ser estudado sob a perspectiva de questões de processos de transformação de identidade experimentados pelos imigrantes. Ao mesmo tempo, Hong Kong oferece um exemplo do papel relevante desempenhado pela cultura, em particular pela prática musical na formação de uma nova comunidade colonial.

O dinamismo da vida cultural de Hong Kong testemunha, como outra face da moeda, não apenas a força que a música havia exercido tradicionalmente na vida de Macau, manifestada na prática instrumental e vocal de imigrantes, como também a decadência causada pelo depauperamento gradativo de Macau e que levou a que músicos procurassem novas possibilidades de atuação na vizinha colonia. Com o desenvolvimento econômico e social de Hong Kong, Kowloon e dos Novos Territórios surgiram assim novas condições para a vida musical de cunho ocidental no Extremo Oriente, adquirindo, ao mesmo tempo, feições próprias.

Se músicos amadores provenientes de Macau contribuíram para a formação de grupos instrumentais e vocais nas novas comunidades, em contexto urbano dominado pelos inglêses receberam novos impulsos, tiveram outras possibilidades de atuação e tomaram conhecimento de outro tipo de repertório.

A música no processo de transformação de identidades de imigrantes portugueses

Diferentemente de Macau, em Hong Kong não existiam as tradições criadas pelas antigas irmandades, com as suas novenas, procissões e festas particulares, que, ao lado das grandes datas do calendário eclesiástico, sobretudo a Semana Santa e o Natal, dominavam a vida religioso-cultural da comunidade.

Se a vida artística profana de Macau já se encontrava em desenvolvimento, contando a sociedade com personalidades de círculos mais prestigiados que ofereciam saraus e organizavam concertos, a prática musical de igreja e as grandes festas religiosas ainda marcavam fundamentalmente a comunidade.

Em Hong Kong, sem a tradição secular de um longo passado colonial católico, marcado pela ação de ordens e irmandades com as suas respectivas culturas particulares, em território dominado por potência anglicana, a vida cultural desenvolveu-se antes com características profanas.

Diferentemente de Macau, a prática vocal e instrumental limitou-se menos a círculos sociais privilegiados, mas ampliou-se, contribuindo para a difusão do exercício musical de amadores entre as famílias de comerciantes que para ali se mudaram. Esse fato, porém, não significa que essa prática musical tenha ocorrido fora do meio eclesiástico. Sendo os portugueses e aqueles de ascendência portuguesa vindos de Macau católicos, a sua vida comunitária decorreu no âmbito da missão católica, ou melhor de círculos católicos.

Em Hong Kong criou-se, assim, uma situação conhecida até hoje em outras situações de comunidades de migrantes portugueses. Na esfera estrangeira, os portugueses organizam-se na missão portuguesa, onde decorre grande parte da vida comunitária e de onde surgem iniciativas. Nessas comunidades, as práticas artísticas, em particular o fazer música ou o cantar em conjunto desempenham papel importante para a coesão da comunidade e sua representação.

No caso de Hong Kong, teve-se a situação particular de tratar-se da vinda de imigrantes que provinham sobretudo de Macau, ou seja, também de um contexto colonial. Houve, assim, no processo de transformação de identidades, uma mudança no âmbito de duas situações marcadas pela colonização. Imigrantes provindos de uma comunidade marcada por seculares tradições, com acentuada consciência de sua própria história e singularidade no contexto global do mundo de língua portuguesa, transferiram-se para um assentamento estrangeiro, integrado em outro contexto colonial, aquele do império econômico britânico.

A manutenção da consciência e da identidade macaense tornou-se, nessas condições, fator importante para a comunidade em Hong Kong. Ao mesmo tempo, porém, compreende-se que tenha surgido a necessidade de demonstrar aos parentes e amigos deixados em Macau o sucesso alcançado no novo meio, capazes de justificar a saída de Macau e, talvez, apaziguar a própria consciência quanto ao fato de terem abandonado a cidade. A atmofesra da comunidade portuguesa em Hong Kong e Kowlon parece ter sido assim marcada ao mesmo tempo por saudosismo e ímpetos de progresso, manifestado na criação de grupos de mais alto nível artístico.

Círculo Católico de Kowloon. O Pe. R. F. Basuiau e as senhoras católicas

O centro da vida cultural da comunidade portuguesa de Hong Kong, Kowlon e New Territories foi o Círculo Católico de Kowloon. A sua mola propulsora e o seu spiritus rector foi o Pe. R. F. Basuiau, cuja atividade pode ser documentada na década de 80. A julgar pelos grupos que criou e pelo repertório que praticava, esse sacerdote possuia formação musical diversificada segundo critérios ocidentais.

É possível que, de ascendência chinesa ou sino-portuguesa, estivesse êle próprio inserido em complexos processos de mudança cultural causados por situações de conversão no passado familiar, o que explicaria um ímpeto de afirmação e demonstração da cultura ocidental com que se identificava. O Pe. Basuiau representaria um primeiro exemplo conhecido do fato apontado pelo bispo de Macau Dom Domingos Lam Ka-Tseung (1928-2009), em 1996, que os religiosos chineses são aqueles que menos interesse possuiem pela cultura musical chinesa e mais empenho demonstram em assimilar correntes e obras ocidentais.

O repertório de programas denota que o Pe. R. F. Basuiau acompanhava o desenvolvimento da vida musical na Europa, procurando realizar obras representativas e correspondentes às tendências mais recentes das programações de concertos em cidades européias.

Para exercer as suas atividades de direção religiosa da comunidade católica, que exigia esforços para integrá-la, formando uma consciência de comunidade, o Pe. Basuiau procurou sobretudo as senhoras católicas que, segundo os critérios de educação feminina em Macau, haviam recebido formação musical, cantavam ou tocavam instrumentos.

A base da prática musical na comunidade de Kowlon foi, assim, feminina. Se, porém, as senhoras com formação musical até então tinham apenas praticado música no âmbito doméstico, no seio de suas famílias, a atividade de formação de comunidade do Pe. Basuiau contribuiu a uma mudança de costumes à medida que criava possibilidades para apresentações públicas, ainda que no âmbito da comunidade, valorizando as aptidões musicais das senhoras. Essa valorização expressou-se antes na prática coletiva de conjunto do que na solística, fato compreensível pelo intuito de integração de membros da comunidade.

Para a formação de conjuntos vocais e instrumentais, precisava-se, porém, partir dos recursos disponíveis, dificultado pelo fato de que a maior parte das senhoras havia recebido uma formação em canto ou em piano. Havia, porém, a tradição da prática feminina do violino em Macau, conhecida também de outras regiões de formação colonial portuguesa, como no Brasil, onde a rabeca antecedeu ao piano como principal instrumento ensinado a meninas e jovens.

Tornou-se possível, assim, a formação de um conjunto com os instrumentistas disponíveis, sendo os violinos acompanhados por apenas dois violoncelos. O intuito do Pe. R. F. Basuiau não era, porém, o de fomentar música de câmara, mas sim criar uma orquestra para as apresentações por ocasião de festas e solenidades no centro. Assim, com esse grupo, ensaiou peças do repertório orquestral, a saber uma seleção do Guilherme Tell, de G. Rossini, e a Sinfonia n° 4 em Si b Maior op. 60 de L. v. Beethoven.

Com essas duas obras, o programa escolhido demonstrava duas principais correntes da vida musical internacional que marcaram a cultura local: a tradição da ópera italiana, recorrente a antigos elos da cultura musical lusa com o mundo musical italiano, popular já em Macau, e aquela da recepção da música sinfônica alemã, em particular marcada pelo culto a Beethoven.

Integração comunitária de católicos de diferentes nações através da prática musical

Para além das senhoras portuguesas que haviam recebido a sua formação em Macau, o Pe. R. F. Basuiau podia contar com instrumentistas de sôpro que provinham da prática da música militar ou de banda. Parece ter sido essa a razão de ter-se tornado possível, assim, incluir no programa inaugural, de 1882, realizado no Círculo Católico de Kowloon, e no qual participaram 42 senhoras da comunidade, variações para clarinete com acompanhamento de piano.

Um outro fator a ser considerado no processo de formação comunitária é o da participação de católicas não-portuguesas, provenientes de famílias de comerciantes e representantes da diplomacia e política.

A prática coral ofereceu-se aqui como possibilidade para a integração de católicos provenientes de diferentes nações, sendo significativo que a primeira obra maior apresentada tenha sido cantada em inglês, uma peça coral intitulada "London". Com isso, os portugueses, sino-lusos e luso-chineses vindos de Macau tinham a oportunidade de praticar a língua oficial do território no qual se integravam.

O incentivo à prática musical, a intensificação do seu estudo e exercício por amadores, assim como a formação de um público interessado em apresentações artísticas e as possibilidades econômicas existentes levou a que Hong Kong se tornasse, já nos anos iniciais de sua formação, centro procurado por músicos europeus itinerantes ou em viagens artísticas pelo Oriente.

A improvisação e as soluções por vezes singulares encontradas devido aos recursos disponíveis uniram-se aqui ao acaso da passagem de artistas, criando uma vida cultural marcada por colorida diversidade e desníveis quanto à execução técnica e orientações estético-culturais.

Nesse ambiente, que lembra em consideração retrospectiva aquele de outras regiões limites de expansão ocidental, compreende-se que, ao lado dos esforços sistemáticos de criação e melhoramento da prática musical local, o incipiente público local tinha a sua atenção chamada por artistas aventureiros ou aventureiros que se utilizavam de suas aptidões, inclusive musicais, para conseguir meios para a consecução ou prosseguimento de viagens.

Pode-se lembrar aqui, como caso exemplificador dessa situação, a visita de um violinista italiano, em 1883, que causou admiração na cidade por apresentar, no Oriente, pela primeira vez, um xilofone e um verrofone.

Niccolo E. Cattaneo: personalidade máxima da vida musical de Hong Kong no século XIX

Se a partir da ação de sacerdotes como o Pe. R. F. Basuiau e do empenho de amadoras pode-se compreender o objetivo pastoral-comunitário do fomento da prática musical, o extraordinário desenvolvimento que alcançou em Hong Kong, Kowlon e nos New Territories foi devido ao trabalho e às iniciativas de um músico italiano de particular competência que para ali se transferiu e que marcou com a sua atuação a vida musical local por muitos anos: Niccolo E. Cattaneo.

Esse músico foi a personalidade mais relevante da história musical de Hong Kong do século XIX e que marcou, como professor, a formação de muitos músicos, determinando o desenvolvimento futuro. Cattaneo havia sido diretor de Conservatório na Itália e era autor de livros técnico-musicais. Não era apenas um músico prático ou um professor, mas uma personalidade envolvida na discussão de questões estéticas e músico-culturais da sua época. Assim, era conhecido na Itália pelas suas críticas quanto à forma com que era tratado o idioma italiano na ópera e ao estilo teatral da música sacra.

Esses dois campos de interesse que marcaram a sua vida profissional e o seu empenho pessoal na Itália não podiam deixar de ter continuidade no Extremo Oriente e co-determinar desenvolvimentos locais. Esses problemas que o preocupavam tinham pouca aplicação concreta no ambiente ainda primário da vida musical de cunho ocidental da nova colonia, uma vez que não havia ópera institucionalizada e a comunidade católica encontrava-se em formação, sem prática sacro-musical estabelecida.

Os interesses de Cattaneo, porém, levaram a que se introduzisse no meio preocupações estéticas e sacro-musicais da Europa, fazendo com que o aprendizado e o exercício da música fosse acompanhado desde o início por questionamentos de natureza teórica. A interpretação e a apreciação de interpretações passaram a orientar-se segundo critérios de julgamento fundamentados teoricamente, seja o do tratamento do idioma italiano no canto, seja o da dignidade da prática musical de igreja segundo a sua função no culto. Sobretudo com relação a este último anelo de Cattaneo pode-se avaliar a influência exercida por sua personalidade. Macau possuia uma longa tradição da música sacra de acompanhamento orquestral, cultivada sobretudo pelas suas irmandades.

Essa prática de música de igreja com acompanhamento instrumental, resultante de processos culturais e missionários do passado, comum a muitas outras regiões de formação colonial, como o Brasil, estava estreitamente relacioada com o culto e expressões festivas da comunidade, representando elemento de fundamental importância para a consciência cultural de seus habitantes. Em Hong Kong, essa tradição não teve continuidade, pois mesmo possíveis esforços de sua transplantação teriam sido sufocados de início através da autoridade do Maestro Cattaneo.

Assim, a prática musical da comunidade católica de Hong Kong nasceu não apenas em época e sob condições diversas daquela de Macau, mas sim também sob a influência da crítica de formas de expressão que tinham em Macau um de seus principais centros.

A prática sacro-musical de Macau passou a ser vista à luz da crítica da teatralização da música nas igrejas, criando-se na comunidade católica em Hong Kong um sentido de diferença para com Macau, ao mesmo tempo de distanciamento crítico e de convicção de corresponder a tendências atuais do pensamento em círculos influentes na Igreja, de se estar sentindo o pulso do tempo, ou seja, de progresso, ainda que restaurador e mesmo re-acionário.

Cattaneo foi, assim, um precursor de um movimento reformador da música sacra que atingiu também a vida musical de Macau pela passagem do século e, de lá, outras comunidades portuguesas do Oriente, como a de Singapura (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Portugueses-em-Singapura.html).

Com a queda de Macau como bastião da música sacra coro-orquestral, apenas Goa permaneceu como centro do cultivo consciente da antiga tradição. Assim, em visão panorâmica retrospectiva, Hong Kong, através da personalidade de Cattaneo, exerceu um papel importante no desencadeamento de um processo de reforma sacro-musical que levou a fundamental mudança da vida musical das comunidades católicas em várias regiões do Oriente.

O Catholic Union Club de Kowlon pela passagem do século

Como maestro de renome, Cattaneo passou a ser procurado como professor e a manter relações tanto com músicos portugueses como com os amadores dos círculos inglêses de Hong Kong, Kowlon e New Territories.

Com os seus alunos, fundou, em 1883, a orquestra do
Catholic-Union-Club de Kowlon. Essa orquestra estava composta inicialmente por cinco violinos, duas flautas, duas clarinetas, um trompete, um barítono, uma tuba e um piano. Tratava-se, assim antes de uma banda de música à qual se acrescentaram alguns violinos e um piano para o apoio do conjunto e a sua condução.

Esse grupo inicial de Cattaneo, na sua formação, indica o seu cunho didático, distinguindo-o no seu escopo e na sua constituição do empreendimento do Pe. Basuiau, baseado sobretudo nas senhoras amadoras da comunidade. O conjunto do Catholic-Union-Club reflete antes o passado de Cattaneo como professor e diretor de Conservatório na Itália.

O clube Catholic Union tinha suas instalações em salas da Missão Italiana. Em abril de 1900, como relata o jornal local O Porvir, de 21 daquele mês, realizou-se ali uma récita cujo programa demonstra o já adiantado nível alcançado pela prática musical entre os portugueses daquela cidade.

Tratou-se de uma solenidade festiva, o que se manifestou no cuidado de ornamentação da sala com arbustos, flores e folhagens:

"Logo ao entrarmos duas coisas attrahiram a nossa attenção. A primeira foi a ornamentação da sala, (...) que, apesar da sua singeleza, estava muito elegante, e revelava superior bom gosto da parte do seu encarregado, o sr. José de Graça. A segunda foi o pano de bocca do palco, obra do nosso habil compatriota o sr. Marciano Baptista, infelizmente já fallecido, contendo uma linda vista de Macau, do lado da rads, e que a ribalta tornava de magnífico effeito".

Como essas frases demonstram, os portugueses de Hong Kong continuavam unidos sentimentalmente a Macau. O espetáculo, embora fora do território português, desenrolava-se como se os espectadores estivessem em Macau, ali presente através de sua imagem no pano de boca do palco.

A orquestra compunha-se de três primeiros violinos ( E.J. Lopes, C. A. P. Xavier e J. M. S. Rosario), dois segundos violinos (J. Baptista, e M. A. Vass), duas flautas (J. D. Osmond e F. X. V. Ribeiro), dois clarinetes (A. E. Alves e L. L. Xavier), um cornetim (P. N. Sequeira), um eufonium (A. Osmond), um baixo duplo (S. Pinna) e piano (J. P. Fonseca).

Essa formação orquestral documenta o pouco número de instrumentistas de corda na comunidade e a participação de alguns músicos de origem não-lusa. Comprova também a prática musical intensiva em alguns famílias de portugueses, salientando-se os sobrenomes Baptista e Xavier.

A primeira parte do programa consistiu de música vocal e instrumental executada por Sara Alves, L. d‘Almeida e Castro, A. L. Alves e o menino F. X. Graça Osório, além de números da orquestra e uma recitação por J. M. Alves. Sem estar incluida no programa, representou-se também uma farça com alusões satíricas ao govêrno e a militares portugueses em Timor. O personagem jocoso dessa farça foi entretanto um "chincau", representado de forma ridícula e que causou muita hilaridade. A crítica considerou imprópria a crítica à administração de Timor:

"Foi pena, repetimos, que a tempo não fossem eliminadas as taes allusões, que aliás estamos convencidos que não foram feitas com má intenção, porque sem ellas a peça teria agradado a todos, e assim desagradou a muitos. Estamos certos de que de futuro haverá todo o cuidado em evitarem-se taes tropeções."

Prática de instrumentos de corda dedilhados: bandolim, guitarra, cavaquinho, banjo

A segunda parte do programa consistiu de uma mazurca para instrumentos de corda dedilhados, composta por J. P. Fonseca, sendo o grupo por ele próprio dirigido. O registro no jornal dos nomes dos músicos que participaram da execução e dos instrumentos respectivos documenta o cultivo de vários instrumentos de corda dedilhados em Hong Kong e o seu uso sobretudo por senhoras.

A mazurca foi executada por um conjunto que incluia bandolim (Judith Danenberg, A. P. Gomes Jr. e E. J. Lopes), guitarra (Asteria Guttierres, F. F. Eça da Silva e A. L. Alves), guitarra espanhola (Maria da Silva Netto e Florita Fonseca, C. Chinek, E. Danenberg, L. C. Rosario e L. Silva Netto), bandurra (Sophia Alves e Maria Fonseca), banjo (Laura Alves e Bertha da Silva Netto) e cavaquinho, pelo menino J. Fonseca.

A seguir, apresentou-se um entreato cômico de título "Toborda no Pombal". O autor, que notou a falta de ensaios dos artistas, salientou porém a importância da representação de obras teatrais de autores portugueses:

"A proposito diremos que revelando os dignos amadores bastante habilidade scenica, fariam bem em continuar a representar boas obras theatraes portuguezas, bem ensaiadas, porque d‘isso poderia resultar grande utilidade para todos. O theatro é tambem uma boa escola…"

A terceira parte da récita consistiu de uma abertura orquestral, seguindo-se a representação de uma comédia inglêsa por membros de uma só família: M. Danenberg, F. Danenberg e E. Danenberg, acompanhados por uma irmã e por Judith Danenberg. Os membros dessa família desempenhavam, de resto, papel preponderante na vida musical de Hong Kong, sendo os seus méritos também reconhecidos em Macau.

Vida musical em outras comunidades: Shanghai Catholic Circle e Recreio-Club

Também em outras localidades do Extremo Oriente os círculos católicos de comunidades de imigrantes, sobretudo de portugueses, contribuiram para o desenvolvimento de uma vida musical de cunho ocidental. O principal desses centros foi o Shanghai Catholic Circle. Também aqui a prática musical foi marcada pela necessidade de união de todas as forças e recursos disponíveis no meio limitado da colonia, condicionando formas de execução musical e mesmo de repertório distintas daquela de um antigo centro musical como era Macau.

O leitor desses documentos coloniais constata que nos programas das comunidades a música chinesa não se encontrava representada. Singularmente, porém, o interesse dessas comunidades pelo Oriente se manifestava pelo caminho do Exotismo europeu. Se o ambiente europeu dessas colonias era o verdadeiro elemento exótico nessa região do globo, as comunidades cultivavam elas próprias um gosto pelo exótico a partir da ótica ocidental.

Um exemplo significativo dessa situação paradoxal é o programa do concerto vocal e instrumental realizado no Recreio-Club de Shanghai por ocasião do Ano Novo Chinês, em 1903, que, ao mesmo tempo, documenta o número de pianistas na colonia européia de Shanghai.

No salão ornamentado com retratos de reis portugueses, apresentou-se um programa que foi aberto por uma transcrição de Oberon de Karl Maria von Weber para piano a dez mãos (!), incluindo uma Ouvertura de nome "Voyage en Chine" e uma "Selection Gheisha" de compositores não especificados. Assim, enquanto que nas ruas o Ano Novo Chinês era comemorado com grandes festas, no interior do clube dos europeus a data era lembrada com música de entretenimento com conotações orientais.

Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Mudanças de referenciais culturais de portugueses no Extremo Oriente à época da expansão do colonialismo britânico. Música sacra en Hong Kong". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 137/9 (2012:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Musica-sacra-Hong-Kong.html






  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.