Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 137/7 (2012:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2891




A mulher nas relações sino-européias
Direitos Humanos e imagens:
a "lília dourada" dos pés aleijados e a virgem das águas doces e salgadas na China e no Brasil



Ciclo de estudos em Peking/Beijing e Manchester
no ano da participação da China como nação convidada na Feira de Hannover 2012
pelos 500 anos da presença portuguesa na China
em atualização de trabalhos da A.B.E. em Hong Kong e Macau
à época da transferência de soberanias européias à China (1996). Local de emparedamento da concumbina Zhen, Cidade Proibida

 
Emparedamento da concubina imperial. Beijing. Foto A.A.Bispo©
Uma das questões sempre levantadas em debates sôbre relações culturais da China com o Ocidente diz respeito aos Direitos Humanos - que poderiam e mesmo deveriam ser ampliados aos seres viventes em geral.

Nos trabalhos realizados em Peking/Beijing em 2012, retomando-se temas tratados em Hong Kong e Macau em 1996 por ocasião da transferência da soberania desses territórios à China, voltaram a ser considerados problemas relativos a Direitos Humanos como parte integrante e necessária dos Estudos Culturais em contextos globais.

O esforço de mudança de perspectivas no tratamento de relações entre a China e o Ocidente, vistas nos eventos de Hongkong e Macau sobretudo do ponto de vista ocidental, aguçou a sensibilidade para o reconhecimento das dimensões globais de questões éticas que se colocam nos diferentes contextos.

Nas relações entre a China e a Europa, questões die Direitos do Homem não dizem respeito apenas a uma das partes envolvidas. De ambos os lados houve e há usos, costumes, tradições, concepções e situações questionáveis que necessitaram e necessitam ser mudadas, e essa é uma tarefa do Homem em geral que deve ser considerada no intercâmbio de conhecimentos e nas reflexões.

Nos procssos culturais entre a China e a Europa, houve de ambos os lados contribuições que podem ser consideradas como positivas e outras negativas do ponto de vista dos Direitos Humanos e éticos em geral. Como um aspecto positivo da influência ocidental pode-se considerar a superação de situações referentes à mulher na tradição chinesa e de usos que causaram através dos séculos incalculáveis sofrimentos e martírios. Entretanto, estudos mais recentes, aqui apenas sumariamente relatados, indicam a vigência, nos costumes chineses, de imagens relativas ao femino e à mulher que também podem ser constatadas na tradição ocidental, o que chama a atenção para os riscos representados por edifícios de imagens de potencialidade atualizadora se não suficientemente analisados e refletidos. Dessa forma, o estudo dos costumes e de significados de tradições chinesas pode contribuir aos estudos culturais relativos à mulher em geral.

Os anelos voltados à melhoria da qualidade de vida e das perspectivas profissionais e de atuação social da mulher na China não podem deixar de considerar o passado para uma avaliação do presente e para o reconhecimento de caminhos no alcance de Direitos. A reconscientização desses aspectos na história da Humanidade é necessária também para  as reflexões referentes a Direitos da mulher em dimensões globais.

Um dos caminhos, ainda que primários, é o de uma maior consideração de vultos femininos na história da mulher na China, em geral não presentes em publicações. Esse intento diz respeito também ao papel exercido por mulheres na história cultural de sociedades coloniais européias na esfera chinesa, também em geral silenciadas ou pouco lembradas. Sob este último aspecto, um ponto de partida para as reflexões poderia ser visto na personalidade de Anna de Souza Caldas, uma das raras autoras representadas em publicações referentes ao Extremo Oriente do passado e a mais antiga conhecida que trata da situação da mulher na China com base nas suas próprias observações.

Primeiros estudos em português da mulher na China: Anna de Souza Caldas

Anna de Souza Caldas entra na história cultural e na etnografia em língua portuguesa com um estudo de natureza empírica dos chineses e de sua cultura que dedica especial atenção à mulher ("Chins vistos de perto - Notas e apontamentos tomados em Macau", Ta-Ssi-Yang-Kuo, ed. J.F. Marques Pereira, Arquivos e Anais do Extremo-Oriente Português II/III-IV, Lisboa: Bertrand-Jose Bastos 1900, 13-21, reed. Macau:  DSEJ/FM 1995).

Significativo para a avaliação da singularidade dessa publicação - e das concepções conservadoras da época - são as palavras com que a autora é apresentada por J. F. Marques Pereira:

Já não é a primeira vez que a Ex.ma Sr.a D. Anna de Sousa Caldas, a nossa distincta collaboradora, apresenta a publico as producções da sua lucida intelligencia; mas só a muito custo consegue vencer os impulsos da sua grande modestia para dotar a litteratura patria com os primores de observação, como as que se notam nos artigos, cuja serie encetamos hoje (...) emquanto viveu no Extremo-Oriente teve occasião de observar de perto os usos e costumes que tão magistralmente descreve. (...) (op.cit. 13-14)

Como esposa do Major Antonio Alfredo de Souza Calda, a autora teve a ocasião de conhecer diferentes regiões e culturas do mundo. O seu marido desempenhou várias comissões de serviço em Macau entre 1880 e 1887, tendo sido em 1885 adido da embaixada portuguesa junto à Côrte do Sião. Voltando a Macau, exerceu o cargo de comandante do presídio militar. Atuou em Moçambique como tenente do corpo policial e comandante interino de Lourenço Marques (Maputo), participando da expedições no início da década de 90; foi governador de distrito militar em Inhambame. De volta a Macau, foi enviado a Timor, onde atuou em difíceis missões. (S. Ribeiro Arthuir, "In memoriam... I Antonio Alfredo de Souza Caldas", op.cit. 59-62)

A autora inicia o seu estudo com observações genéricas sob a aparência dos chineses, salientando a sua diversidade fisionômica e descrevendo trajes. Passa, porém, logo a considerar com mais cuidado as mulheres, partindo também aqui da descrição de suas vestimentas.

As damas da classe principal usam cabaia comprida ou curta, calça e uma especie de saia justa e cheia de pregas em sentido vertical, sendo tudo de seda e tendo a cabaia, que trazem exteriormente, as mangas larguissimas para se verem as mangas das outras duas cabaias interiores, que são geralmente mais estreitas, mas de côres vivas e muito bordadas resumindo, por assim dizer n'ellas, a prova de bom tom das filhas do Celeste-Imperio.
As mulheres do povo trazem cabaia curta e umas calças larguissimas de seda ou de ganga."
(op.cit. 16)

Principal atenção: o aleijamento dos pés da mulheres chinesas

O principal objeto das atenções de Anna de Sousa Caldas é o aleijamento dos pés das mulheres chinesas, o que procura explicar com base nas suas observações.

"As da alta cathegoria todas, ou quasi todas, teem os pés aleijados, porque todos os chins favorecidos da fortuna, mandam comprimir com ligaduras os pés ás suas filhas, desde a mais tenra edade, e calçam-lhes depois uns sapatos de seda pequenos e ponteagudos, em que não entra senão metade do pé. Assim, o dedo pollegar é o unico que vae crescendo com a edade da creança, os demais vão, pouco a pouco, dobrando para a planta do pé, o qual, com o temo, forma quasi que um bico na frente, á feição do calçado." (op.cit. 16-17)

Da descrição do observado, Anna de Souza Caldas passa a dar explicações a respeito da razão desse costume, que para ela tinha função primordialmente social:

"Este defeito nas mulheres que nascem na opulencia serve para ostentar a grandeza de suas familias.
Com semelhante aleijão as mulheres nobres não podem andar sem o auxilio de creadas graves, em quem se apoiam. Quando sahem de casa vão fechadas em cadeirinhas; outras porém vão ás costas das creadas ou a pé, arrimadas a um chapeu de sol.
As classes pobres que não podem dar creadas às suas filhas, e que, pelo contrario, as destinam para creadas de servir ou para outro qualquer genero de trabalho, não lhes comprimem os pés."
(op.cit.17)

A autora passa, a seguir, a considerar as razões históricas que levaram a essa prática, já agora transformada em costume, não mais questionado conscientemente, pois aceito pela coletividade.

O uso de comprimir os pés data do anno de 954 da era de Christo.
Conta-se que houve então uma imperatriz que tinha os pés de pequenissimas dimensões e que todas as damas do paço tinham summo desgosto de não possuirem uns pés como os d'ella. Cada uma, portanto, comprimia os pés como podia, imaginando novos feitios de sapatos, cada vez mais apertados, porque o diminuir o volume dos pés era o sonho de todas. Mas nem por isso nenhuma poude egualar á imperatriz. Então, uma dama dotada de mais engenho do que as outras, decidiu que só uns sapatos onde não coubesse senão metade do pé, as poderiam satisfazer, pois que d'esta fórma fariam parecer os pés ainda mais pequenos que os da imperatriz. Assim, mandou fazer umas pequenissimas botinhas de setim bordadas a ouro e depois de comprimir os pés, forçando os dedos a dobrar para baixo da planta, excepto o pollegar, calçou as botinhas até meio do pé e appareceu ás outras damas apoiada nos braços de duas creadas.
Esta innovação foi ao principio reprovada por algumadas damas, mas dizendo-lhe ella que além de conseguirem de tal modo diminuir o volume dos pés, se distinguiram de todas as outras mulheres do imperio, e, obrigadas como ficavam a andar amparadas por duas creadas, ostentariam melhor a sua alta dignidade, todas ellas, movidas pela vaidade, começaram a seguir aquelle exemplo que agradou a toda a côrte. Em vista d'isto, todas as mulheres das novas gerações chinezas, que pertenciam a familias nobres, ou mesmo abastadas, deviam ter os pés aleijados. As familias pobres, porém, não puderam seguir o barbaro uso para não impossibilitarem assum as suas filhas de serem creadas de servir.
(op.cit. 17-18)

Fundamentos de uma mentalidade contrária ao progresso social

Anna de Souza Caldas salienta, nessa elucidação histórica do uso que designa como bárbaro, que o mesmo teve origem no espírito de imitação, de vaidade e de singular desejo de alcance de dignidade, servindo à demonstração da liberdade relativamente à necessidade de trabalho de famílias abastadas.

Essa explicação indica que, para a autora, a questão de barbárie ou cultura não se vinculava de forma unívoca com a situação social e mesmo com a esfera mais elevada de cultivo das classes de posses. Ela salienta que os chineses tinham um grande amor a seus costumes, crenças, ufanando-se de sua civilização. Neste sentido, porém, faz uma crítica a Confúcio:

(...) sendo a mais antiga, assim como o povo chinez é o decano, o mais velho dos povos, foi como condemnada por Confucio a permanecer na infancia. Este philosopho, depois de ter operado grandes reformas no Imperio, levou todos os chins a crer que a felicidade deixaria de existir para elles se algum dia alterassem a sua organisação social. O extraordinario sabio conseguiu que esse povo tão cheio de vida detestasse o progresso social.
Comtudo, n'estes ultimos tempos, os chins em grande parte, estão desenganados de muitos dos erros em que viviam, adoptando os nossos usos e costumes de preferencia aos seus.
(op.cit. pág. 18)

No contexto de sua argumentação relativamente ao aleijamento das mulheres, esta última observação, que poderia surgir como expressão de eurocentrismo, surge à luz do progresso social visto como necessário por Anna de Souza Caldas.

O aleijamento justamente das mulheres que não necessitavam trabalhar significavam não apenas sofrimentos por toda a vida, mas também impedi-las de uma atuação efetiva na sociedade. Justamente as mulheres de mais posses e mais possibilidades de formação estavam impedidas de locomoção, devendo ser carregadas. Os argumentos da autora salientam a questionabilidade de usos e costumes mantidos por uma mentalidade de irrefletido apêgo a uma organização social excessivamente rígida.

Mulheres de classes inferiores como veículos de progresso social

As gravuras que ilustram o texto Anna de Souza Caldas dão força expressiva a seus argumentos. Em primeiro lugar, apresenta-se o retrato de uma mulher casada, com os pés comprimidos a modo chinês e luxuosamente trajada, seguida de uma foto de mulher de pés pequenos, ricamente vestida de seda bordada. A publicação inclui também a imagem de uma jovem de família abastada, com penteado em forma de trança enfeitadas de flores e de travessões de ouro.

Uma das fotos apresenta uma mulher e filha de comerciante, usando calças compridas e largas de costume quotidiano do traje de círculos menos abastados. Uma foto de burguês abastado apresenta o chefe de família como fumante de ópio, com mulher e filha luxuosamente vestidas de seda borda, "tendo os pés minusculos, signal de riqueza e do dolce far niente das torturadas pela exigencia tyrannica da moda." (op.cit. 20-21)

De particular interesse é a imagem de mulheres de condições mais inferiores, sem pés aleijados, e que são apresentadas como aquelas que mais contribuiram ao progresso social adotando calçados europeus, sem saltos, ao lado de sombrinhas e outras peças do vestuário ocidental.

Uma das fotos apresenta uma jovem do povo, como uma daquelas que trabalhavam em fábricas de tecidos, na seleção de chá ou na produção de fogos de artíficio, outra, a de uma trabalhadora agrícola de Chin-cheu, da província de Fokien, exemplo daquelas que frequentavam Macau, vistas como semi-selvagens pelas mulheres de Kuang-tung ou de Cantão.

Também as chinesas católicas pertenciam às camadas mais simples da população, sendo em geral serviçais, usando chinelas de verniz em substituição aos sapatos tradicionais.

Que, sob o ponto de vista dos estudos culturais, essas mulheres mais simples estavam inseridas em processos de transformação cultural, isso é indicado pela observação de que misturavam peças do vestuário chinês e do europeu de forma "desastrada" segundo Anna de Souza Caldas.

Justamente essas mulheres de condições mais simples, que apresentavam mistura de peças ocidentais e chinesas nos seus trajes, teriam sido, assim, veículos para a mudança dos costumes.

O aleijamento e a falta de direitos de chinesas na recepção européía

A prática do aleijamento de mulheres de camadas sociais mais elevadas na China e o seu destino marcado pela exclusão da vida de trabalho e pela falta de direitos foram temas de publicações de larga difusão destinadas à ilustração e entretenimento de leitores de interesses culturais e de famílias na Europa Central.

Em época que aos poucos as mulheres européias passavam gradualmente a tomar parte mais ativa na vida cultural e artística, sobretudo em círculos da alta burguesia e da aristocracia, as notícias da situação das mulheres chinesas de classes abastadas despertavam naturalmente a atenção, a comoção e a indignação.

Embora ainda não tendo sido objeto de estudos, seria de interesse considerar até que ponto esses conhecimentos não contribuiram para o despertar de consciência relativo aos direitos femininos em século marcado pela atenção ao exótico na Europa.

Um exemplo significativo de publicação de divulgação popular de notícias de povos e culturas e que considerou o tema do aleijamento das mulheres chinesas é o Panorama des Universums, um periódico difundido no mundo de língua alemã, sobretudo na esfera da Dupla Monarquia Austro-Húngara.

Em 1836, esse magazine publicou um artigo de título "As mulheres chinesas", no qual o aleijamento e as relações dessa prática com as vestimentas e a vida das mulheres na sociedade foram alvo de pormenorizada descrição. ("Die chinesischen Frauen", Das wohlfeiste Panorama des Universums 5 (Praga, 1836), 36-38)

As mulheres usam uma saia apenas até os joelhos, e as calças são presas acima dos tornozelos para que possam mostrar os seus pés mantidos pequenos por arte. Logo após o nascimento, as parteiras dobram os dedos das meninas com violência sob as palmas dos pés, apertam também os calcanhares a fundo nos pés e enrolam tudo com faixas que são mantidas durante o crescimento. Assim, uma menina adquire um pé de 4 ou 5 polegadas de comprimento, não pode porém dar mais do que alguns passos. Um sapato ornamentado magnificamente salienta a pequenez do pé. O cabelo, as mulheres trazem preso em nó no pescoço, preso com um alfinete, outros com um chapéu enviezado, outro com um pássaro dourado ou prateado, cujas asas chegam até as têmporas e cujo rabo forma uma espécie de espanador de penas. Em geral, é costume entre as mulheres de se pintar e de enegrecer os cílios, frequentemente a pintura se extende também ao queixo. (loc.cit.)

Especial atenção é dada pela revista à falta de capacidade de vida em sociedade causada pela inexistência de convívio e de formação social da vida em exclusão, salientando-se assim a diferença para com os valores da educação feminina na Europa.

De fazer-se presente em público, de sociabilidade, de uma posição na sociedade nada sabem. São escravas e quando são a primeira, a legítima esposa, têm apenas o consolo de terem escravas, ou seja, as mulheres ilegítimas. A sociedade dos homens não podem avivar com a sua conversação. Os sogros não podem ver a sua nora após o dia do casamento; esta tem de virar-se caso os vejam acidentalmente em casa. Também os parentes mais próximos não o podem fazer. Apenas uma vez por ano, no dia do Ano Novo, a mulher, com a face totalmente coberta, em palanquim ou em carro, pode ser levada pelas ruas a visitar os seus parentes. (loc.cit.)

Em período do cultivo de sentimentos e do Romantismo, os costumes chineses de casamento surgiam como contrários a princípios do amor e suas expressões.

O jovem marido adquire a mulher de seus pais através de compra. Até então, apenas a conhece através de descrições; só no dia do casamento a vê, e isso ocorre anteriormente através da mediacão secreta de velhas serviçais e governantas. A noiva, em palanquim fechado, é acompanhada por músicos e portadores de archotes à moradia do noivo; a meio caminho era recebida por um carro puxado a bois. Aqui, êle recebe a chave do palanquim, desce, abre, e a bela apresenta-se pela primeira vez sem o véu. Se não lhe agrada, manda-a de volta, perdendo o dinheiro de compra. Nem se pode falar de uma atração pré-existente, da doçura e dos carinhos do noivado, do amor de almas, de uma valorização moral, a base de um amor permanente e da felicidade matrimonial duradoura! Na casa do noivo, chegada ao som contínuo do barulho ensurdecedor da música, toma lugar a seu lado, profere com êle com diversos movimentos a oração Tien, bebe um copo de vinho, tira o véu por um momento diante dos convidados e e entra no quarto de casal. (loc.cit.)


Um dos aspectos mais tristes da situação em que viviam as mulheres aleijadas chinesas era visto na perda de sentido de suas vidas pela falta de ocupação e de uso de suas aptidões mentais. Em estreita relação com essa inanição era vista a prática excessiva do fumo pelas mulheres. Paralelamente a essa vida sem sentido derivado de funções e objetivos, estavam condenadas ao silêncio e à dependência pela falta de direitos.

A partir daí, dela toma conta o maior aborrecimento devido à ausência de toda e qualquer atividade intelectual, e, para afugentá-lo, passa a usar o cachimbo de tabaco. Se o homem quer se separar, não há dificuldades. Já o fato da mulher falar demais é motivo para definitivo divórcio. Se uma mulher é infiel, o seu marido pode vendê-la como escrava; as leis chinesas são muito severas no caso. A nossa gravura mostra uma chinesa que é segura pelos cabelos, ajoelhada, esperando a sua sentença de dois mandarins. As mulheres jamais têm herança de seus maridos; estes, porém, prevêem a bel-prazer um presente nos seus testamentos. Já a partir de seus nove anos toda a menina tem um cachimbo e tabaco. Os seus trabalhos são bordar e pintar pássaros e flores em gase. (loc.cit.)

Os pés aleijados das chinesas como motivo de interesse de viajantes

A prática do aleijamento dos pés de mulheres tornou-se assunto tão divulgado na Europa que passou a constituir, ainda que de modo negativo, um dos elementos caracterizadores da cultura chinesa. Viajantes que se dirigiam ao Extremo Oriente eram tomados da curiosidade e mesmo do desejo de ver pés aleijados de mulheres.

Exemplo expressivo desse interesse de homens europeus pode ser visto no relato de viagens do oficial da marinha imperial austríaca Josef Lehnert, que realizou uma viagem ao redor do mundo entre 1874 e 1876. (Josef Lehnert, Um die Erde. Reiseskizzen von der Erdumseglung mit S.M. Corvette Erzherzog Friedrich in den Jahren 1874, 1875 und 1876, Viena, 1878, 629-630)

Após visitar Hongkong e antes de fazer uma excursão a Macau, passou com a sua comitiva por Cantão. Aqui, observou a falta de mulheres nas ruas, interpretando esse fato pela vida em exclusão das mulheres aleijadas. Como todos os estrangeiros, o seu principal desejo era de poder ver os pés de uma dessas senhoras.

"Chamou-me a atenção o fato de encontrarmos apenas muito poucas mulheres, e essas pertenciam apenas à classe mais pobre, pois as chinesas de mais posses ou ainda mais aquelas de posição social nunca saem de casa, a não ser em liteiras fechadas. Os famosos pés aleijados, "da lília dourada dos chineses", que todo o estrangeiro tem vontade de ver, também encontramos em mulheres pobres. Como esses seres andavam desajeitadas aos saltinhos! (loc.cit.)

O texto descreve de modo expressivo as dificuldades que tiveram em conseguir ver os pés aleijados de uma mulher. O que surpreende o leitor atual é, sobretudo, a razão dada para essa dificuldade. Ela não residia na vergonha das mulheres em mostrar os pés, mas sim na desaprovação dos maridos a respeito do interesse demonstrado pelas esposas, e isso não por ciúmes, mas pelo fato de mulheres não merecerem atenção.

Perguntei ao guia se êle podia nos levar a uma mulher para que pudessemos ver melhor os pés aleijados. 'Será difícil, disse êle, 'pois nenhum homem vai tolerar que a sua mulher mostre os pés a um gentlemen.'
'Nós, europeus, não vemos nada de mais nisso,' disse um dos senhores, trata-se só de um 'numble one curiosity'.
'O yes, mas significa dar atenção demasiada a uma mulher', balançou a cabeça o cicerone.
'Mas vai-se poder encontrar certamente uma que não entenda mal o nosso interesse,' disse.
'Sir, cem mulheres, milhares de mulheres, - mas nenhum marido ficará satisfeito! Muitos gentlemen tentaram, mas nunca conseguiram!'
Por fim, depois de muito convencer, prometeu-nos o guia tentar fazê-lo, um tanto surprêso com o nosso desejo que lhe era estranho. Entrou numa casa, nós esperamos à frente da porta. Voltou balançando a cabeça e tentou numa outra moradia, mas também sem sucesso. Passou a usar de mais ousadia. Por fim, o vimos sair com uma feição vitoriosa de uma casa. 'Se desejarem, os Gentlemen podem entrar nesta casa, lá há uma lília dourada!' (loc.cit.)

O relato do encontro com uma senhora que se dispôs a mostrar os seus pés expressa bem a questionável moral dos europeus, movidos ao mesmo tempo por curiosidade, gozo macabro, sentimentos de superioridade e idéias depreciativas relacionadas com "chinesismos".

Entramos. Em um quarto do térreo estava sentada a proprietária do pé maravilhoso. Da mobília da câmara, e da vestimenta simples mas simpática da senhora via-se que ela devia ser de uma família de posses. Ao nosso cumprimento cordial respondeu a modo chinês com um abaixar da cabeça e com um apertar das mãos fechadas ao busto. O guia já tinha falado com a senhora a respeito do nosso desejo e não foi necessário pedir duas vezes; sem pejo, tirou os minúsculos sapatos. Os pés estavam enfaixados com cuidado; a senhora desenrolou-os até que surgiu o pé nú. Eu nunca vi algo mais nojento do que um membro assim tão aleijado. Esta é sem dúvida a maior das chinesiches que o Império Celestial pode mostrar! (loc.cit.)

O modo de locomoção das mulheres como razão do aleijamento

Assim como a autora portuguesa, também o oficial austríaco registra a explicação histórica da origem dessa prática, que também para êle seria produto da imitação e da vaidade.

A questão, se a idéia original que levou ao aleijamento de pés ainda tem hoje vigência não pode certamente ser respondida, pois falta aqui todos os argumentos necessários. Apenas se sabe que os pequenos pés de mulheres apareceram sob o govêrrno da dinastia Tang (617 a 907 DC). Na época, como se conta, uma princesa chamou a atenção com os seus pequenos pés - segundo alguns relatos pés aleijados, e como era, além de ter essa qualidade, uma mulher excelente, passou a ser vista como modêlo para as damas da capital, que passaram a partir daí a assegurar que pelo menos as meninas tivessem aquele sinal de beleza. Passou-se a amarrar sem compaixão os pés das pobres crianças. (loc.cit.)

Também como Anna de Souza Caldas, Josef Lehnert menciona a função social da prática do aleijamento de mulheres. Seria mais um indicativo do fato de não precisarem trabalhar e, assim, um distintivo de classes abastadas. Ao contrário da autora portuguesa, porém, o viajante austríaco não concorda com essa explicação, dizendo que nem todas as chinesas aleijadas se encontravam em situação de prosperidade.

Uma outra versão dessa moda a relaciona com a idéia do não precisar trabalhar, que, entre outros, também explica as longas unhas. O não precisar trabalhar e mostrar isso aos outros é o que mais deseja o chinês e é o objetivo que quer alcançar. Por conseguinte, pés de mulheres aleijados devem ser sinais especiais de boa situação, o que, porém, não é o caso.

Para o observador austríaco também não seria verdade que a prática era consequência dos ciúmes dos maridos, obrigando as suas mulheres a ficar em casa. Elas podiam mover-se até mesmo com ligeireza, ainda que com movimentação singular do corpo.

A menor fé merece a suposição de que a moda surgiu de ciúmes, obrigando as mulheres a ficar em casa, pois sabe-se que os pés aleijados não são impecilhos para que andem com ligeireza e grande segurança.

Para Josef Lehnert, a explicação encontrava-se justamente nesse tipo de locomoção, que oferecia um efeito especial, como se ondulassem ou nadassem. Esse efeito era procurado também por mulheres de outros povos, como as da Tartaria, que não aleijavam os pés, e até mesmo pelas ocidentais.

As mulheres tátaras mandschu não assumiram o hábito da "lília dourada", ainda que procurem adotar outros usos chineses, usando sapatos que em baixo têm forma esférica. O mesmo efeito procuram as nossas mulheres por outro meio, quero dizer com os saltos altos postos no meio da sola.(loc.cit.)

O autor termina o seu relato mencionando ter comprado o par de minúsculos sapatos da senhora que lhe mostrara o pé como souvenir para o comandante do seu navio. (!)

A chinesa que vimos pertencia, quanto à altura, às maiores do seu sexo; a sola do seu gracioso sapato não tinha porém mais do que 8 centímetros! Com a ajuda do nosso guia conseguimos comprar o par de sapatos que a dama descalçou à nossa frente para o Tenente Conde Dubsty. (loc.cit.)"

Os pés aleijados de chinesas na literatura em francês

Também em textos referentes à China em obras de divulgação cultural e de conhecimento de povos do mundo francofone os pés das chinesas foram objeto de particular atenção. Um exemplo dessa literatura é o livro "Os Povos da Terra", publicado em várias edições em Paris pela passagem do século, e dedicado à leitura em escolas e famílias.( Ch. Delon, Les Peuples de la Terre, 5a. Éd. , Paris: Hachette 1905, pág. 126)

Correspondendo ao interesse especial dos franceses por questões de moda, os elos da prática de aleijamento com as ricas vestimentas e com um modo de vida marcado pelo ócio marcam a descrição. Quanto aos sofrimentos causados pelo aleijamento, compreendido assim como moda, o autor francês demonstra compreensão, uma vez que também as mulheres francesas se submetiam a rigores exigidos pela moda.

"Les femmes portent la robe longue, tombant jusqu'aux pieds, et le mantelet à manches plus long que celui des hommes; leur coiffure, assez variée de forme, est élégamment ornée de broderies, de rubans et de fleurs; les femmes mariées se distinguent par une longue aiguille de tête, retenant leur chevelure. - Très oisives, les femmes chinoises riches passent leur temps dans leurs jolis petits appartements retirés, à cultiver des fleurs, soigner des oiseaux, peindre des éventails, broder, tresser, prendre de petites tasses de thé, jouer d'une petite guitare, recevoir des visites. Elles ne sortent qu'en palanquin bien fermé, et ne se laissent point voir aux hommes. Elles subissent la mode étrange et ridicule des petits pieds... A force d'entourer, dès l'enfance, leurs pieds de bandelettes étroitement serrées, elles arrivent à les empêcher de croître, en sorte qu'ils restent petits,... mais transformés en hideux moignons presque sans orteils, sur lesquels elles peuvent à peine faire quelques pas en chancelant. Pour en arriver là, elles auront souffert toute leur vie. - Qu'avez-vous à dire, vous autres? C'est la mode! Eta l'égard de la toute-puissance de la mode, tous les Chinois, savez-vos, ne sont pas en Asie!..." (loc.cit.)


A mulher na sociedade colonial de Macau e mudanças advindas de Hong Kong

As fontes relativas a Macau registram nomes de mulheres que desempenharam papel de importância na história cultural da cidade, em particular esposas de autoridades governamentais e de representantes de nações estrangeiras que organizavam saraus e recepções em círculos restritos nas suas residências. Uma delas foi a esposa do cônsul dos Países Baixos, a pianista Emmarentia Anna Peter Van der Hoeven (1836-1865) (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Emmarentia-Anna-Peter-Van-der-Hoeven.html).

A intensa vida religiosa da cidade, com as suas procissões e festas de irmandades, possibilitava a participação de mulheres na vida cultural e social da cidade de círculos mais amplos da população. O ensino vocal e instrumental como parte importante da educação feminina levou também à formação de diletantes que exerciam a música no âmbito mais restrito de suas famílias. A transformação de hábitos da conservadora sociedade luso-oriental processou-se gradativamente, sendo impulsionada pelos novos desenvolvimentos possibilitados pelo ambiente menos prêso à tradição, mais cosmopolita de Hongkong.

As notícias nos jornais de fins do século XIX e início do século XX permitem que se reconheça o papel extraordinário exercido por cantoras e pianistas portuguesas que passaram a viver em Hongkong na realização dos primeiros concertos locais, primeiramente no âmbito de comunidades católicas, a seguir em clubes.

Já tendo recebido formação musical em Macau, puderam desenvolver as suas aptidões em Hongkong  e em ambiente marcado por novidades e por espírito empreendedor. A apresentação em público de senhoras que até então apenas cantavam e tocavam em casa representou um passo significativo para uma nova presença feminina na sociedade. Esse passo não foi sempre fácil para senhoras acostumadas a manter a modéstia e a reserva, e que passavam agora a receber aplausos, como alguns comentários de jornais da época mencionam.

Muitas foram as mulheres com aptidões artísticas que auxiliaram na constituição da comunidade portuguesa de Hong Kong e que participaram de apresentações festivas. Tem-se referência a mais de 40 senhoras que auxiliaram o pároco da Missão Italiana na realização de um primeiro grande concerto, cantando trechos de óperas, participando em duetos e em coros (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Carlos-Gomes-na-China.html).

A nova consciência e desenvoltura alcançadas no ambiente mais aberto a progressos sociais da colonia britânica repercutiu também em Macau. As portuguesas de Hongkong, conduzidas pelo seu professor, puderam, em visitas à cidade, ali se apresentar. Acompanhando seus maridos que tocavam na banda de Hongkong, também presenciaram os novos impulsos musicais renovadores transmitidos a Macau, participando também aqui de um movimento de transformação de hábitos.

A situação local, comum também em outras regiões do mundo de cultura portuguesa, caracterizada pelo domínio de normas sociais de uma sociedade de cunho patriarcal, fundamentado em preceitos morais da Igreja, passou a ser colocada em questão com o incremento de tendências cosmopolitas causadas por um crescente intercâmbio entre Macau e Hongkong.

Ausência de mulheres em retretas no jardim de Macau

Um dos principais documentos dessa gradual modificação de costumes diz respeito à prática da música de banda ao ar livre. Ainda no início do século XX esses concertos vespertinos pouco eram frequentados por senhoras. Uma expressiva descrição dessa situação encontra-se em crônica publicada por um jornal de Macau, de 1910 (A Verdade, 2/96), de 15 de setembro de 1910)

Nessa crônica, o comentarista expõe a indecisão por que passou por muito tempo até ter a coragem de tocar em tema tão delicado, fundamentando filosoficamente a necessidade que sentiu em expor o seu pensamento tão ousado:

Coisas ha, que, por mais que queiramos fugir a ellas, nos andam constantemente no pensamento, ferindo-nos com a sua insistencia, impondo-se pela obstinação com que nos perseguem, chegando mesmo a brutalizar-nos pela duresa com que ao nosso espirito vêm e voltam, maguando-nos o pensamento, tal como a vista se nos magôa quando insistentemente seguimos um bando d‘aves em espiraliferos vôos pelo infinito em fóra… E o lema fatalista? tem que ser‘ executa-se, porque não ha meio de fugir a um pretendente que agora, logo, depois e sempre, nos persegue implacavelmente com o mesmo pedido, a mesma aria, a mesma e eterna lamuria!…
A talho de foice vem estas considerações filosoficas, a proposito d‘um facto que é o primeiro a ser tratado nestas minhas cronicas e que vem a ser a ausencia das lindas mulheres de Macau, nas noites de musica, no jardim publico.

Embora criticando sutilmente a reserva imposta silenciosamente às mulheres pela tradição, o autor expõe os seus pontos de vista a partir de uma perspectiva masculina: as mulheres de Macau deveriam contribuir, com a sua feminilidade, ao encanto da natureza à beira-mar nas noites de verão e da música de banda.

É uma coisa exquisita essa: jardim junto ao mar, onde, nestas noites quentissimas do verão de Macau, se goza d‘uma frescura admiravel; musica, a melhor que cá temos, a da tropa; portanto, flor e musica, falta o complemento mulher, a terceira pessoa d‘esse belo terceto, a mais bela obra da creação e do creador…

Visão masculina: mulher como "música concretizada" e éter feito matéria

O autor pergunta qual seria a razão da ausência das mulheres nas apresentações da banda no jardim, por que é que a essas apresentações somente concorriam homens. A falta de mulheres era fatal para a apreciação profunda das músicas, pois elas seriam, por si, música concretizada:

"E porque hão de faltar, porque não hão de vir á noite dar-nos o encanto que das suas figuras lindas dimana, envolver-nos naquella onda de caricias que mais se adivinha do que se sente; deixar-nos embalar o espirito ao ouvirmos uma valsa de Strauss, e, vendo-as passar, ligeiras, subtis, vaporeas, sonhar que ellas são a cristalização d‘essas notas divinaes - ether feito materia - de conjunto com o aroma das pobres florsitas que de iume se mirram pelos canteiros além?…"

A ausência das mulheres seria até mesmo uma afronta aos músicos da banda, pois estes apenas para elas tocavam, esforçando-se em transmitir sentimentos pelos sons dos instrumentos:

"Porque não hão de vir?! Sim. Se as noites são tão amenas, se a viração nos refresca o corpo e o espirito, se a musica convida?… E, depois, lindas mulheres, como sois ingratas com os pobres musicos, se é para vós que elles tocam, que elles se esfalfam para que as notas tenham o sentimento que devem ter!!

Para finalizar, o autor faz um apelo às jovens de Macau:

E, agora, leitoras lindas, acedei ao meu apêlo (como não aceder ao apêlo do ignoto?): ide com a vossa presença animar aquelles que só estão bem sob a caricia dôce do vosso olhar, completando esse conjunto: flores, musica e mulheres, sob a luz pálida da lua, nun flirt dôce, bem dôce… emquanto o mar, o eterno namorado, continua, lá em baixo, a sua eterna canção d‘amor…

Da mulher na história ao estudo de concepções do feminino na cultura

Essa crônica de A Verdade, representa, sem dúvida, um dos textos mais sentimentais já publicados na imprensa local, assim como expressão de visões masculinas e patriarcais. Na sua argumentação, o cronista procura unir poesia e filosofia. A expressão de seus desejos de poder ter encontros sentimentais no jardim, ao som da música, é admirável literariamente, a sua crônica, porém, é sobretudo relevante como indicativo de uma situação social da comunidade macaense de fins do seculo XIX e início do século XX.

Reflete, também, a concepção de música como sendo "éter feito matéria", algo divino, nas suas relações com a imagem da mulher. Ao mesmo tempo, revela a concepção de feminilidade da sociedade macaense, impregnada de associações com a doçura, a luz pálida da lua nas águas do mar.

É, sem dúvida, um expressivo documento para estudos da mulher sob um aspecto mais amplo, ou seja, o da conotação feminina dada à música e ao feminino na cultura.

Fundamentação imagológica: mulheres de água doce e salgada

As elucidações relativas às origens da prática do aleijamento das mulheres chinesas, como já pressentidas pelos autores citados, são questionáveis.

A sempre mencionada narrativa que remonta a prática a um fato histórico, ou seja, a da imitação de pés extraordinariamente pequenos de uma imperatriz ou de dama de alta posição, pressupõe a existência de critérios estéticos que justificavam tal admiração.

Esses critérios já existiam, assim, em imagens integradas em edifício de visões do mundo e do homem de remota proveniência.

Um ponto de partida para a compreensão dessas imagens oferece a própria publicação que contém o estudo de Anna de Sousa Caldas. Ali, em nota de rodapé explicativa de ilustrações, registra-se que as mulheres que não precisavam ser aleijadas, por pertencerem a camadas mais inferiores da sociedade, e que se trajavam simplesmente, eram designadas irônicamente pelos chineses como "mulheres de água salgada." Eram aquelas sujeitas ao trabalho.

Essa menção indica, portanto, uma relação das imagens da mulher com a água e, distinguindo-se aqui a água salgada da água doce, ou seja, a água do mar daquela das fontes e dos rios.

As mulheres que tinham os seus pés aleijados correspondiam, assim, à água doce corrente dessas fontes, podendo-se dizer que o movimento singular com que se locomoviam, céleres, mas ondulantes, correspondiam a essa imagem da água corrente de fontes e córregos.

O fundamento das imagens reside aqui na figura tão difundida da mulher de corpo inferior aquático, da mulher com rabo de peixe, da sereia conhecida da tradição ocidental. Já nos primeiros relatos de portugueses na China tem-se referência à participação de chinesas que lembravam sereias (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Comercio-Cultura-China-Brasil.html).

Essa imagem de mulher com a parte inferior do corpo de natureza aquática, terminando com uma ponta, é complementada pela irradiante parte superior do corpo, salientada pela riqueza das vestimentas e do cuidado pelo penteado, pelo uso de pentes e enfeites de ouro e pela predominância da cor amarela.

A própria denominação de "lília dourada" para o pé aleijado da mulher chinesa indica o significado simbólico do amarelo e do ouro.

Ao mesmo tempo, a vaidade apontada pela narrativa histórica - e que apenas descreve uma atualização em determinada época de uma imagem pré-existente -, indica a beleza e a vaidade que seriam própria da imagem-tipo.

O dourado e o amarelo, se interpretados como sinais de luz, indicam elos dessa imagem com luz e fogo espiritual, um fogo interno que explicaria certas concepções vinculadas às mulheres assim aleijadas, à intocabilidade e pureza por assim dizer incortável, continuamente virgem que se manifestava no recato e na não-exposição.

Considerando-se que regiões marcadas pela água da China, em particular no Sul, o culto da divindade que dá o nome a Macau e invocada como virgem do mar e rainha dos céus era e é muito difundido, revela-se como importante tarefa para os estudos culturais investigar mais profundamente os elos intrínsecos existentes entre essa imagem e aquela que, concretizada, determinou a prática do aleijamento das mulheres.

O pesquisador cultural constata similaridades com concepções e imagens conhecidas da própria tradição ocidental, vivas ainda de forma particularmente evidente em expressões culturais e religioso-culturais do Brasil.

Um aspecto desses estudos relacionados pode e deve ser salientado no contexto das preocupações voltadas aos Direitos Humanos, em particular daqueles da mulher: o da importância de imagens de remotas proveniências que, concretizadas na realidade, podem dar origens a lamentáveis desenvolvimentos e questionáveis situações, causadoras de inacreditáveis sofrimentos e injustiças.

O combate e a superação dessas concretizações de imagens não são, assim, suficientes para a melhoria de condições e o progresso social desejado já por uma Anna de Souza Caldas.

Enquanto as imagens não estiverem desativadas, poderão novamente dar origens a novas formas de expressão igualmente questionáveis. O caminho adequado apenas pode ser, neste sentido, o trabalho consciente e resignificativo no próprio edifício de imagens, pelo que tudo indica vigente de forma similar tanto na China como no Ocidente - e, em especial, também no Brasil. A concretização de imagens e a sua historização, frequentemente registráveis sobretudo no âmbito religioso, representam graves problemas para a Humanidade e a contribuição ao esclarecimento de seus mecanismos importante tarefe para os estudos culturais.

grupo de trabalho sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "A mulher nas relações sino-européias. Direitos Humanos e imagens: a "lília dourada" dos pés aleijados e a virgem das águas doces e salgadas na China e no Brasil". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 137/7 (2012:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Mulher-na-China-e-no Brasil.html




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