Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Ópera de Peking. Foto A.A.Bispo©

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Ópera de Peking. Foto A.A.Bispo©

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Ópera de Peking. Foto A.A.Bispo©

Ópera de Peking. Foto A.A.Bispo©

Ópera de Peking. Foto A.A.Bispo©

Ópera de Peking. Foto A.A.Bispo©

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 137/8 (2012:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2892


A.B.E.


O lúdico como tarefa de análises a serviço do entendimento sino-ocidental
Da Ópera de Peking à Paródia à Bastiana em Macau, à Negra Catarina no Brasil e aos Christy Minstrels


Ciclo de estudos em Peking/Beijing e Manchester
no ano da participação da China como nação convidada na Feira de Hannover 2012
Pelos 500 anos da presença portuguesa na China
em atualização de trabalhos da A.B.E. em Hong Kong e Macau
à época da transferência de soberanias européias à China (1996)

 

A participação especial da China na Feira de Hannover de 2012, demonstrando o papel que o país desempenha no cenário tecnólogico e econômico internacional da atualidade, trouxe à consciência também o significado do entendimento mútuo, da compreensão de mentalidades e expressões culturais. Para isso, tornam-se indispensáveis análises culturais.

Com esse objetivo, realizaram-se trabalhos em Peking/Beijing, encerrados em ciclo de estudos desenvolvidos em Manchester, Inglaterra, respectivamente em Janeiro e em Abril de 2012. A escolha desta última cidade, centro por excelência de estudos da história da tecnologia, do comércio e do liberalismo econômico nas suas dimensões mundiais, justificou-se pelo fato de ali haver uma das mais significativas comunidades chinesas do Ocidente e que participa na vida cultural diversificada e vital da metrópole em fase de renovação urbano-ecológica (veja Tema em Debate)

A dificuldade de compreensão mútua de diferentes culturas e mentalidades evidencia-se não apenas na apreciação de expressões tradicionais, que surgem como exóticas ou relitos já de um passado remoto, mas sim também no convívio atual, quando os participantes sentem dificuldade em entender sentidos subjacentes a conversações, gestos e comportamentos. Essa dificuldade manifesta-se de forma particularmente evidente no humor, na constatação de não poder-se rir de anedotas contadas em idioma e por pessoa de contexto cultural estranho. A aquisição dessa capacidade surge como um dos principais testemunhos de alto grau de competência intercultural.

Achar graça do que pretende ser engraçado, não rir do sério, discernir a seriedade do cômico e a comicidade no sério, captar intuitos e finalidades de expressões jocosas ou irônicas, não ferir susceptibilidades involuntariamente através de expressões que possam ser mal interpretadas e mesmo não ofender-se com palavras mal-compreendidas revelam-se como constantes preocupações no diálogo intercultural.

Longe de ser apenas resultado de insuficiente proficiência em idiomas, tem-se aqui um complexo de questões que diz respeito a visões do mundo e do homem, a modos de pensar e de sua expressão que nem sempre são conscientes, surgindo como naturais para aquele que os profere. Constitui, assim, objeto de estudo por excelência de estudos culturais. Não se trata, porém, apenas de estudos de alteralidades, mas também o da própria cultura, daquilo que surge como ridículo e irrisível no contexto cultural a que se pertence.

Ópera de Peking. Foto A.A.Bispo©

Da perplexidade ocidental perante a Ópera de Peking: de tradições populares à arte

Como ponto de partida para análises referentes a esse complexo de questões ofereceu-se, nos trabalhos realizados, a Ópera de Peking. O estudo dessa forma de expressão, que relaciona vestir-se e pintar-se, teatro, música, canto, dança, pantomímica, acrobacia e arte marcial, exige perspectivas distintas daquelas da ópera ocidental.

As aproximações devem partir muito mais do que no caso da ópera e expressões afins do Ocidente de suas raízes em expressões tradicionais populares. Ela representa uma extensão urbana de práticas culturais nas zonas rurais, sobretudo em regiões provincianas de Shaanxi, Hubel e Anhui, quando grupos de artistas e músicos, em determinadas épocas do ano, andando de casa em casa, pelas ruas ou em praças, encenavam com caráter de folguedo, em todo mais ou menos coerente ou fragmentário, episódios de antigos mitos, lendas e fatos históricos, podendo incluir referências a acontecimentos de atualidade de cunho crítico e satírico.

Para além dessas ocasiões festivas, os seus protagonistas apresentavam-se também em casas de chá para o divertimento de seus frequentadores. Essa função de entretenimento, de expressão de tempo livre de trabalho e da vida cerimonial ou religiosa manteve-se através dos séculos até o presente, condicionando também a comunicação entre assistentes e artistas, podendo o público interferir com manifestações de agrado ou desagrado, assim como apartes jocosos nas decorrências em cena.


Essas origens "de rua" do gênero explicam também o fato de praticamente não haver cenários, baseando-se as representações sobretudo na arte do mascaramento e do vestir, repleto de associações e indicadores de caráter ou do modo a ser lido ou entendido os diferentes personagens.

Significativamente, as representações iniciam-se hoje com a apresentação em público do pintar-se e do vestir-se, o que salienta o significado fundamental do inserir-se nos papéis a serem desempenhados. Como em representações ao ar livre, com poucos objetos - uma cadeira ou uma mesa - sugerem-se ambientes, se a encenação decorrer no interior ou no exterior de espaços e o subir em cima de cadeiras ou mesas pode ter sentidos figurados.

Descobertos por funcionários imperiais em fins do século XVIII, quatro grupos da província Anhui trazidos à capital para apresentar-se à Côrte. Nessa época do Império de Qianlong (1711-1799), Imperador que entrou na história pelo seu interesse pela cultura e pelas artes, período considerado como época culminante da dinastia Qing e mesmo da história chinesa mais recente, essas representações com elementos encenatórios, alcançaram a sua grande popularidade. Os seus elos com o mundo provinciano ou rural permaneceram estreitos, adquirindo-se crianças e jovens nas zonas afastadas para que, instruidas, participassem dos numerosos grupos. Em 1828,  deu-se início a apresentações com grupos locais da província Hubei na Côrte. Influenciadas pelo dialeto e tradições de Peking, o gênero desenvolveu-se à forma de expressão conhecida como ópera de Peking à época do Imperador Xianfeng (1831-1861) em meados do século XIX.

Correspondendo a essas origens populares, que viviam do repositório do patrimônio cultural tradicional, o repertório desses grupos era altamente diversificado, caracterizado por múltiplas possibilidades de combinações de episódios e fragmentos de diferentes proveniências, guardando, porém, conotações de crítica social.

Nessa transposição à capital, que significou também o redescobrimento de antigas expressões, e com a ascensão a círculos de corte, o gênero ganhou em riqueza nos trajes, em perfeição das pinturas faciais e nas realizações artísticas. De forma distante pode-se reconhecer ainda, nos chapéus, com as suas bolas coloridas, relitos de antigas coberturas de cabeça de tradições populares.

No século XIX, o gênero manteve essa posição de relevância  para a caracterização de uma cultura de identidade chinesa, reconhecida e apoiada oficialmente. Alguns de seus artistas tornaram-se populares, entre eles Yu Sansheng e Zhang Erkui, salientou-se o grupo San-Qing, dirigido por Cheng Changgeng (1811-1880).

Após um período de decadência no início do século XX, o gênero experimentou nova revitalização entre a primeira e a segunda guerras mundiais, salientando-se aqui a personalidade de Mei Lanfang (1894-1961).

Significado atual. Instituto da Ópera de Peking, Teatro Liyun e Exposição

A relevância atual da Ópera de Peking evidencia-se sobretudo pelo fato de dar testemunho das dimensões da transformação político-cultural da China das últimas décadas. Proibida na sua forma tradicional durante a Revolução Cultural (1966-1976), sendo apenas permitidas representações nas quais os personagens tradicionais haviam sido substituidos por camponeses, soldados e operários, a Ópera de Peking surge hoje com nova vitalidade.

Em 1979, fundou-se o Instituto da Ópera de Peking através da coordenação de quatro grupos, respectivamente orientados por Mei Lanfang, Shang Xiaoyun, Cheng Yanqiu e Xun Huisheng, atores masculinos que se salientaram em papéis femininos. Incluindo artistas de diferentes escolas e tradições, assim como várias óperas no seu repertório, o Instituto passou a ser o grupo nacional da Ópera de Peking. Entre as obras apresentadas, salientam-se aquelas do romance chinês "Viagem ao Ocidente", como o episódio da provocação de problemas no palácio do céu ou a provocação de problemas no palácio do dragão, ou aquelas do romance da Serpente Branca.

O seu significado para a representação da China a estrangeiros revela-se nas atividades do Teatro Liyuan, mantido pela Teatro de Ópera de Peking e pelo Hotel Beijing Qianmen. Em exposição no foyer do teatro, apresentam-se fotografias de artistas renomados, costumes, máscaras e instrumentos musicais, caligrafias e pinturas, assim como gravações.

Embora havendo número extraordinário de apresentações, o que exige esforços sobrehumanos dos protagonistas, o gênero sofre com um distanciamento da juventude chinesa, desenvolvimento explicável pela internacionalização da vida cultural, em particular da música.

Significado da linguagem de imagens

O significado fundamental da linguagem de imagens, que é indicado de início nas vestimentas e nas pinturas faciais, evidencia-se também nos atributos dos personagens. Esses podem ser por exemplo chicotes, cetros, remos e armas que indicam cargos, profissões, papéis e ações. Significados são indicados sobretudo por bandeiras de diferentes cores e que podem conter sinais indicativos, por exemplo desenhos ondulados sugerindo o mar.

Essa linguagem de imagens, que marca em diferentes sentidos as representações e é acompanhada, salientada e diferenciada por gestos, faz com que a apreciação, a leitura e a compreensão da ópera de Peking apenas possa ser alcançada se for compreendida como peças de mosaico no complexo imagológico no seu todo, onde as representações surgem antes como sinais que indicam algo outro.

Apesar de toda a estranheza que causa de início o confronto do observador ocidental com esse gênero chinês, a visão dirigida ao edifício das imagens e às suas origens de tradições populares pode abrir perspectivas para a compreensão de suas características e de seus mecanismos imanentes.

O pesquisador de expressões culturais tradicionais do Ocidente, em particular também do Brasil, onde se mantiveram de forma particularmente vitais, encontra-se em posição privilegiada para esses exercícios de entendimento cultural.

Êle tem conhecimento de várias formas de folguedos tradicionais de remotas origens que incluem encenações dramáticas, música, dança, representações de combates de natureza lúdica e mesmo jocosa e satírica, que constituem complexos de conteúdos nem sempre fáceis de serem explicados e que manifestam combinações e interações de expressões de conotações mitológicas e históricas.

Esses fragmentos e episódios são de conhecimento popular, bastando em geral apenas palavras, gestos ou mesmo ritmos sugestivos para o despertar de associações e mesmo a hilariedade. Assim como na ópera chinesa, também as expressões tradicionais ocidentais, em particular aqui as brasileiras, conhecem a figura do palhaço que acompanha as apresentações fazendo gracejos, correndo, fazendo estrepolias, e indicando, por diferentes modos, o caráter lúdico do todo.

Esse palhaço, o Chou, também tem na China, singularmente, elos com um boi. Também discordâncias ou contrastes de sentidos entre denominações de figuras ocorre tanto na expressão chinesa como naquelas de folguedos ocidentais - o limpo que na verdade é sujo, o masculino que é efeminado ou o feminino que masculinizado, e, sobretudo o da Velha. (Lao Dan) Também como no Ocidente no passado, na China os papéis femininos foram desempenhados por homens.


Análises relacionadas de mecanismos intrínsecos de edifícios imagológicos

Sem, portanto, haver vinculação histórica entre expressões de distantes regiões do mundo e de contextos culturais diferentes, um procedimento analítico revela similaridades que apenas podem ser explicadas por mecanismos inerentes às expressões e intrínsecos a edifícios de concepções e imagens fundamentados em determinadas visões do mundo e do homem.

Não se trata, assim, nem de procedimento dirigido primordialmente a suposições de remotos processos de difusão, nem apenas de comparações exteriores, mas sim de estudos voltados a mecanismos de sistemas de imagens, às suas similaridades e diferenças. É a partir de uma análise assim dirigida que se espera encontrar bases para um entendimento mútuo. Independentemente dessa análise, poder-se-ia tecer paralelos quanto à ascensão de expressões tradicionais populares e à sua valorização cultural com movimentos similares no Ocidente no século XIX, caracterizado em diferentes nações pelo redescobrimento de tradições e mesmo pelo desenvolvimento de uma área específica de estudos.

Análises nesse sentido, dirigido ao próprio contexto cultural ocidental, em particular brasileiro, vêm sendo desenvolvidas nas últimas décadas. No seu decorrer, reconheceu-se a frequência e a intensidade do Grotesco em expressões lúdicas do patrimônio cultural herdado da Idade Média.

Muitas dessas expressões foram tratadas e discutidas em colóquios e seminários, salientando-se aqui o evento internacional dedicado à Antropologia Simbólica realizado em São Paulo, em 1997. Uma das principais figuras que revelam características fundamentais dos mecanismos próprios da organização do edifício de imagens é a da Velha (e dos Velhos), já considerada no Simpósio Internacional realizado em São Paulo, em 1981, e centro das atenções dos trabalhos voltados a estudos da antropologia cultural cristã realizados pelo editor desta revista na década de 80 (e.o. A.A.Bispo, Grundlagen christlicher Musikkultur in der außereuropäischen Welt der Neuzeit: der Raum des früheren portugiesischen Patronatsrechts, 1986/87, Roma e Colonia 1989, Christliche Musikanthropologie: Eine Einführung, 1992/93, Roma e Clonia 1999).

No decorrer desses estudos, considerou-se que nem todas as figuras e ocorrências das expressões tradicionais podem ser analisadas indiferenciadamente a partir do conceito do Grotesco, mas fundamental é o campo de tensões entre o Novo e o Velho.

Nas expressões do patrimônio cultural de origens mais remotas a representação é feita segundo tipos - que não necessariamente precisam constar de representações de pessoas velhas no sentido superficial do termo - sinalizam porém o anti-tipo, sendo assim entendidos por aqueles inseridos no contexto cultural, o que fundamenta o aspecto lúdico do todo. A jocosidade, porém, apenas pode acontecer se a negatividade do tipo foi desativada por critérios inerentes ao sistema de concepções que o apresenta como superado.

Mesmo não havendo intenções em complexos estudos de possíveis elos comuns de origem, de difusões ou contatos em remotas eras, o pesquisador não pode deixar de considerar, no estudo das relações entre a China e o Ocidente, o encontro e a interação de expressões culturais.  A atenção é aqui dirigida às leituras mútuas de expressões culturais aparentemente estranhas para, num segundo momento, passar-se a análises mais aprofundadas de afinidades quanto a mecanismos intrínsecos de edifícios culturais.

Sabe-se, das fontes documentais, que já os primeiros navegantes portugueses que se assentaram em portos comerciais do litoral da China a partir da segunda década do século XVI levaram consigo expressões tradicionais que se manifestaram em grupos de folias, pelas e encenações várias e figurações lúdicas, registradas sob diferentes denominações, como entremeses e invenções (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Comercio-Cultura-China-Brasil.html).

Tem-se, assim, fontes documentais que indicam que também para o Extremo Oriente foi levado o repertório de expressões tradicionais da Idade Média trazido para o Brasil e que ainda hoje permanece vivo, independentemente de todas as suas adaptações e transformações. Diferentemente do Brasil, porém, as comunidades de passado colonial europeu ou marcadas por contatos com europeus não contaram no Extremo Oriente com estudos mais amplos de tradições culturais que as tivessem registrado nos séculos XIX e XX.

Várias razões para essa falta de pesquisas poderiam ser aqui sugeridas, pelo menos para Macau, uma vez que ali houve sensibilidade e interesse por parte de eruditos para com tradições culturais. Para além da decadência da colonia e de imigrações, sobretudo após a fundação de Hong Kong, as exíguas dimensões do território impediram que expressões tradicionais se mantivessem em nichos e em zonas afastadas, como no Brasil, tornando-se mais sujeitas à fúria da Reforma restaurativa do Catolicismo em fins do século XIX e início do XX e que levou, em todas nações católicas, à interrupção de tradições e à destruição de patrimônios culturais seculares.

Há, porém, documentos registrados no século XIX que testemunham a vigência de imagens de fundamental significado para as expressões ocidentais no Extremo Oriente e que foi até hoje insuficientemente considerado: a "Paródia à Bastiana" e "Quadras Populares Macaístas" (J. F. Marques Pereira, "Cancioneiro musical crioulo: Cantilenas macaístas I, Parodia á Bastiana; II, Quadras Populares", Ta-Ssi-Yang-Kuo, Arquivos e Anais do Extremo-Oriente Português I e II, Lisboa: Bertrand-José Bastos 1900; reed. Macau:  DSEJ/FM 1995, 239 ss., 703-ss.) 

A "Paródia à Bastiana" e os animais músicos

Publicada sob o título "Cancioneiro musical crioulo“ a "Paródia à Bastiana" é uma melodia com 8 compassos, em 2/4, com acompanhamento de piano e 21 versos. Esse exemplo musical adquire especial interesse por representar a única transcrição conhecida da época da música popular tradicional de Macau. Como  registrado em nota, J.F.Marques Pereira a recebeu de um capitão da guarnição da cidade, Cláudio Ignacio da Silva, um estudioso dos costumes de Macau. Algumas das quadras foram obtidas por outros caminhos. Como foi o caso das ""Quadras Populares", a fixação do canto em notas parece apenas ter ocorrido em Lisboa, transmitida de memória ao músico Gomes da Silva, que a registrou, acrescentando um acompanhamento ao piano. (op.cit. 703)



O autor faz algumas considerações a respeito desse exemplo musical, partindo de sua denominação e do conteúdo de seus versos. Sendo uma paródia, pareceu-lhe ser imitação jocosa de qualquer outra cantilena do mesmo gênero de origem portuguesa do continente.

O texto está repleto de alusões a animais que dançam, fazem música, tais como um capão que já sabe dançar schotisch, sapo que dança lundú (landum), porco que toca viola ou grilo que toca guitarra.

"Capam de minha horta, Cathrina,/ Já sabe dançá shotiz/, Branquinha cô minha Nito, Cathrina,/Já sabe caçá perdiz./

"Gom-gom cantá saião, Cathrina,/PArdal jugá turûm/ Andorinho furtá casa, Cathrina,/Sapo dançá landum"/

"Pomba puçá ago, Cathrina,/Ade virá piám/, Porco tocá viola, Cathrina,/Mosca lavá buiam./

"Mosquito dá caçada, Cathrina,/ Manduco limpá cambrám/ Grilho tocá guitara, Cathrina,/Cabra sandê lampiám"

"Macaco tocá piano, Cathrina,/Barata capi-ôlo/ Quim ôze lembra cazá, Cathrina, /Certo são muito tolo."

J.F. Marques Pereira salienta que seriam comuns no cancioneiro luso as cantigas, cantilenas e fados que faziam alusões a animais de todo o gênero para tornar o sentido do texto mais ridículo. Como exemplo, o autor cita uma paródia ou dança carnavalesca do carnaval de Lisboa de 1898, dizendo que podia citar centenas outras canções populares em que se apresentam animais praticando despropósitos para o gáudio e o divertimento do povo.

Aproximações à interpretação de sentidos

A aproximação de J. F. Marques Pereira à peça é de natureza filológica. Assim, nas suas observações, indica outros trabalhos relativos à dialetologia crioula e que podiam contribuir à análise da "Paródia à Bastiana".

Considerada sob uma perspectiva mais ampla, o documento oferece possibilidades de interpretação mais diferenciada e capazes de revelar o significado de um contexto maior, cujas expressões apenas teriam sobrevivido em forma de uma cantiga.

De início, apresenta-se como significativo já para os estudos da área disciplinar convencionalmente designada como Folclore, uma vez que oferece possibilidades de reconhecimento de paralelos com expressões de outras partes do mundo, em particular também do Brasil, possibilitando comparações e análises de caminhos que permitam explicar tais ocorrências em esferas tão distantes do globo.

Ponto de partida para o reconhecimento dessas similaridades de expressões é sobretudo a figura da Negra Catarina, constantemente citada nos versos.

A figura da negra Catarina na "Paródia à Bastiana"

O texto oferece de início a imagem da Catarina como uma mulher que se encontra insatisfeita com a sua situação. Ela deseja casar-se, para isso, porém, não apresenta qualidades suficientes. Como a cantiga diz, ela primeiramente aprender trabalhos domésticos.

"Cathrina, minha Cathrina, /Cathrina meu de travessa/, Nunca bom, fica tristi, Cathrina,/Vós lôgo ficá condessa./"

"Quim querê casá, Cathrina,/Primero déve sabê,/ Lavá-rópa, cuzinhá,/ Cathrina, Puçá ágo, comprá sôm, bare.“

O texto revela conotações negativas do negro:

"Branca, sã innocente, Cathrina,/Morena, capaz fingí,/Preta abusadéra, Cathrina,/Vingança sempre pidi."

No segundo exemplo acompanhado de notação musical, também constata-se a figura de uma mulher e referências que surgem como discriminatórias e ofensicas de negros. Fala-se de uma "Nonha bixigosa" que "Sab'inganá gente" e que deseja casar-se: "Ade pidi chúa,/Sápu pidi vento:/Nhonhónha bunita/Pidi casamento". Afirma-se, porém, que "Casamento fêto/Na ponto de lenço;/Quim casá cô preto/Tem pôco sintimento".

Desses exemplos pode-se reconhecer a vigência da imagem de uma mulher de idade, sem filhos, pobre, obrigada a uma vida de trabalho, desejosa de se casar. Essa figura é conhecida também da tradição brasileira, onde aparece também como Negra Catarina ou Catalina ou Catilina. Trata-se de uma personagem conhecida de Reisados, em particular do Bumba Meu Boi.

Significados da imagem da Bastiana ou da Negra Catarina

Nesse paralelo com a figura da Negra Catarina em expressões brasileiras, a cantilena macaísta deve ser considerada como sendo uma versão improvisada, com atualizações, de um gênero de antiga tradição, a ser compreendido apenas dentro do repertório de expressões grotescas dos costumes da época do ano que se refere o ciclo de Natal e Reis.

Com essa consideração mais ampla do contexto em que se insere essa cantiga, constata-se que ela é um documento valioso da difusão de antigo repertório lúdico de costumes luso-europeus vinculados em princípio a ciclos do calendário das festas católicas. Somente a comparação com exemplos similares dessa tradição documentada também no Brasil é que revela o valor cultural desses exemplos macaístas.

Alusões a negros e um aparente cunho africano da melodia não indicam necessariamente que tais cantos sejam de origem africana. Tais associações devem ser consideradas dentro da linguagem de imagens própria das tradições correspondentes, revelam antigas concepções de fundo bíblico relacionadas com a África.

Trata-se, em geral, de uma das formas de expressão da Velha, personagem grotesca que surge sobretudo em costumes da época de Advento, Natal, Epifania, Carnaval e primeira metade da Quaresma. Essa figura, no contexto hermenêutico das tradições desse ciclo do ano, é uma das representações tipológicas da Humanidade carnal, terrena, superada pelos cristãos através do batismo.

Ela representa, assim, em linhas gerais, o inverno da humanidade nas trevas causadas pela procura de conhecimentos apenas pelos órgãos dos sentidos. Assim, a figura, apesar da sua idade, é ridicularizada em muitas expressões pela sua sensualidade, pelos seus anseios de ascenção social, de enriquecimento. Ela denota, assim, ser guiada pelos sentidos do corpo como os animais, e daí também as numerosas imagens referentes a animais personalizados ou a pessoas com características animalescas nos textos grotescos dessas tradições.

A imagem da Bastiana ou da Catarina tem relações não apenas com a Humanidade Velha, superada, como com a parte inferior de uma concepção tripartida do Homem, de antiga tradição, equivalente ao homem carnal e que foi associada através dos séculos com a África.

Representações grotescas do negro em expressões da esfera anglofone na China

Poder-se-ia supor que, com o surgimento de Hong Kong, o seu cosmopolitismo e rápido desenvolvimento marcado pelo progresso, essas antigas figuras de implicações simbólico-antropológicas intrínsecas a expressões de remotas origens medievais trazidas pelos portugueses tivessem deixado de vigorar. Pelo contrário, porém, pode-se constatar uma revitalização dessas imagens e de suas questionáveis associações na esfera inglêsa do século XIX. O testemunho mais relevante dessa intensificação sob novas formas de expressão no mundo cosmopolita britânico é o da popularidade alcançada nos Estados Unidos, na Inglaterra e no mundo anglofone em geral pelos Minstrels.

Esses grupos de atores que se apresentavam como negros, com faces pintadas de prêto e imitando, de forma ambivalente, melancólica e hilariante, a triste vida de trabalho e os seus costumes e instrumentos, demonstrando, em ridículas combinações de trajes e em outros aspectos grotescos, anseios de ascensão e reconhecimento, tornaram-se populares em cidades de diferentes regiões do mundo, fato também possibilitado pela itinerância de grupos.

Os minstrels desempenharam papel de extraordinária relevância ao desenvolvimento músico-poular nos Estados Unidos, contribuindo à difusão do banjo e de elementos musicais conotados com a vida de escravos ou afro-americanos em geral e ao desenvolvimento de novas formas de expressão, práticas de execução e interpretação.

A consideração de dados referentes ao mundo extra-europeu vem revelando o significado da visita de grupos de minstrels em vários contextos, mesmo em países africanos. Para o Extremo Oriente, tem-se referência à viagem de um grupo de minstrels a Hong Kong e a Macau. Tratou-se do grupo designado como "companhia original das sociedades ministreis do Christy" e que alcançou grande sucesso em Hong Kong e Macau em 1865.

O grupo do Christy's Minstrels fora formado em 1843 por Edwin Pearce Christy, em 1843 em Buffalo, New York. As suas apresentações tornaram-se conhecidas por uma estruturação em três partes, das quais a primeira mostrava o grupo em linha, com um interlocutor no seu centro e duas figuras em cada ponta, o Mr. Tambo e o Mr. Bones. Em 1857, constituiu-se um novo grupo com membros do Christy Minstrels em Londres, que passou a ser conhecido como Raynor & Pierce's Christy Minstrels.

Em 1859, o grupo mudou-se para Liverpool, atuando no St. James's Hall, passando a visitar outras cidades inglesas, em particular também Manchester. Foi esse sucesso que fêz com que a denominação passasse a ser usada por outros grupos nos quais participavam elementos da antiga companhia, e que se apresentavam como sendo o original Christy Minstrels.

Extendendo a sua tournée de Hong Kong a Macau, um desses grupos do "original" Christy Minstrels americano apresentou-se como uma "companhia philarmonica", sendo a sua atuação comentada com palavras altamente elogiosas e que indicam a receptividade desse tipo de apresentações.

"Não se lhe póde negar um merito absoluto, sabem cultivar a arte em todos os seus preceitos. No doce e mavioso tocar e cantar, na dança em que desempenharam sem difficuldades, na elegancia verdadeiramente comica, no pisar o palco, na caracterisação e, em uma palavra, em tudo, ha um primor artistico difficil de exceder.

A concorrencia, principalmente hontem á noite, foi numerosa, e os artistas foram calorosamente applaudidos pelos espectadores com estrepitosas palmas e clamorosos bravos, sendo por mais de uma vez chamados fóra, e festejados com frenetico enthusiasmo.

Essas diversas facecias, cheias de espirito, em que elles se sabem tambem exaltar, executarão vários fragmentos das operas italianas com aquelle mimor e habilidade que já todos lhes reconhecem."

Os Christy Minstrels, embora já tendo sido alvo de pormenorizados estudos, ainda não foram suficientemente considerados no papel cultural que exerceram no mundo extra-europeu. Vários grupos realizaram extensas viagens, percorrendo cidades de muitas regiões, as fontes documentais levantadas ainda permitem apenas estudos puntuais.

Os Birch & Cotton's Party, que alcançou popularidade com as suas apresentações em San Francisco, Sacramento e outras cidades da região, passaram a apresentar-se em conjunto com o Backus' Minstrels, após o seu retorno, em 1863, de Hong Kong, formando o San Francisco Minstrels.

A viagem dos American Christy Minstrels pelo Extremo Oriente e pela Austrália, em 1865, ficou marcada pelo trágico suicídio, em Sydney, de um dos cantores, William Henry Caster. Sendo também fotógrafo, este artista incluiu um quadro no programa dedicado ao trabalho em estúdio fotográfico e que, não sendo bem recebido, levou-o a matar-se ingerindo ácido utilizado para a revelação de fotos.

O grupo Norton's (Wash) Merrymakers, de San Francisco, dirigido por Wash Norton e sua esposa, com a participação do violinista e pianista Karl Steele e dois outros cantores e dançarinos (Kirk e Drew), apresentaram-se em 1877 e 1878 no Japão, Shanghai, Hong Kong, Singapura, Penang, Calcutta, Bombay, Sri Lanka, Java e Austrália.

Significadode considerações aproximadoras dos três contextos considerados

Passados 15 anos dos trabalhos efetuados em Hongkong e Macau pelo Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (I.S.M.P.S.) por ocasião da transferência desses territórios à China, os estudos 2012 realizados em Beijing/Peking tiveram como objetivo atualizar conhecimentos e retomar questionamentos de então sob novas perspectivas. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/China-Brasil.html)

Os trabalhos desenvolvidos ao término da soberania européia naqueles territórios, estiveram, na época, voltados à necessária reconscientização, por parte da pesquisa ocidental, da história de sua ação no Extremo Oriente, do levantamento do patrimônio cultural que ali deixava e de suas fontes, à reflexão auto-crítica do procedimento europeu no passado e os conhecimentos que poderia tirar desses estudos para a preparação de caminhos para o futuro. Nesse empreendimento em Macau e Hongkong e nos eventos que se seguiram - também em Portugal -a essa iniciativa pioneira, devido ao acento dado à auto-reflexão, a perspectiva foi sobretudo a do Ocidente.

Decorridos agora mais de uma década da transferência de ambos os territórios à China, pareceu ser oportuno retomar alguns complexos temáticos a partir da perspectiva de Peking, ou seja, de um leitor chinês ou identificado com a China que passa a se preocupar com a história cultural de uma fase encerrada de cidades e regiões que estiveram sob a administração européia.

Trata-se, assim, do esforço de empatia para com um pesquisador chinês que procure considerar documentos deixados pelos europeus no sentido de analisar uma determinada época de determinadas regiões do seu país, interessando-se por suas consequências e possíveis permanências no presente. Procurar ver como os chineses vêem surge como pressuposto para o desenvolvimento dos estudos em cooperação internacional e que passam a ser marcados, sob o ponto de vista teórico, por um diálogo de diferentes perspectivações e interpretações da história e do presente.

Uma das preocupações dos estudos culturais no âmbito dos trabalhos de 1996 e dos anos que se seguiram residiu na detectação e no estudo contextualizado de expressões culturais populares também conhecidas em Portugal, no Brasil e em outras partes do mundo marcadas na sua formação pelos portugueses.

Procurou-se, assim, saber se também em Macau praticaram-se danças, cortejos e outras expressões festivas dos ciclos do ano conhecidas também do patrimônio cultural do Brasil, tais como tradições pastorís da época de Natal, de São João ou outras, comparando-as e analisando-as nos seus diferentes contextos. Um dos pensamentos condutores dessa preocupação era o de que o desaparecimento dessas expressões não apenas representaria uma perda para o patrimônio cultural supra-nacional do mundo marcado pelos portugueses no seu todo, como também um prejuízo para a compreensão dos processos histórico-culturais globais em que se inseriram e que ultrapassam limites geográficos de "folclores" nacionais.

A questão que agora se levanta é a de como um pesquisador não posicionado em sistema de referenciais portugueses e brasileiros entende e interpreta expressões tradicionais populares ocidentais do passado das respectivas áreas da China.

Esse observador confronta-se, nesse intento, com um repertório de expressões lúdicas no qual representações grotescas desempenham papel significativo. Essa constatação pode ser feita não apenas em expressões de um patrimônio cultural de origens mais remotas, sobretudo em folguedos trazidos pelos portugueses, mas também naquelas mais recentes, da época da predominância britânica e dos elos com a América do Norte, e à qual remontam desenvolvimentos que marcaram a história da cultura musical popular.

O observador, a partir da perspectiva chinesa, procurando compreender os mecanismos intrínsecos do edifício cultural que explicam as características dessas expressões de divertimentos do Ocidente, necessita levar em consideração as análises que os próprios estudioso ocidentais estão desenvolvendo com relação à sua própria cultura.

Confrontados com esses auto-descobrimentos e auto-reflexões, compenetram-se que uma de suas principais expressões culturais, a da Ópera de Peking, revelam surpreendentes possibilidades para estudos similares e em paralelos com aqueles do Ocidente. Abrem-se aqui, portanto, perspectivas para cooperações intelectuais entre a China e o Ocidente em plano mais abstrato - e mais profundo - de reflexões e análises.

grupo de trabalho sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "O lúdico como tarefa de análises a serviço do entendimento sino-ocidental
Da Ópera de Peking à Paródia à Bastiana em Macau, à Negra Catarina no Brasil e aos Christy Minstrels". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 137/8 (2012:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Ludico-nas-relacoes-sino-ocidentais.html



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