Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Encontro A.B.E. no Teatro Liyuan

Encontro A.B.E. no Teatro Liyuan

Encontro A.B.E. no Teatro Liyuan









Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 137/16 (2012:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2900




O comércio musical de portugueses em Hong Kong
e nos estudos culturais do Popular internacionalizado na China
Flauta, bandolim e guitarra, valsas, polcas, maxixes e tangos

Ciclo de estudos em Peking/Beijing e Manchester
no ano da participação da China como nação convidada na Feira de Hannover 2012
Pelos 500 anos da presença portuguesa na China
em atualização de trabalhos da A.B.E. em Hong Kong e Macau
à época da transferência de soberanias européias à China (1996)

 

A China desempenha papel cada vez mais relevante na economia e na tecnologia mundial, fato demonstrado pela sua participação como nação convidada da Feira de Hannover 2012. O estudo dos pressupostos do desenvolvimento comercial e técnico-industrial da China nas suas relações com processos culturais impõe-se para o esclarecimento de questões que se levantam (veja Tema em Debate).

A atenção dirigida a desenvolvimentos que evidenciam vínculos entre a história cultural, a do comércio e da técnica na esfera chinesa no passado abre perspectivas para uma compreensão mais diferenciada do papel desempenhado pela China no cenário global no presente. Ao mesmo tempo, abre caminhos para o reconhecimento de paralelos com outros países que também experimentaram, no século XIX, a influência da expansão comercial européia, em particular da exportação britânica, e que não se limitou a produtos manufaturados e texteis, mas a máquinas, instrumentos musicais, livros e partituras que possibilitaram novos desenvolvimentos e forneceram impulsos à vida intelectual e cultural no mundo extra-europeu.

Reflexões no Teatro Lyuan, Beijing

Constata-se, na mídia e nas várias esferas da vida cultural da China da atualidade, a supremacia da música e de outras expressões do Popular internacionalizado. Em diálogos com estudantes europeus e norte-americanos em Beijing/Peking, apontou-se a predominância de determinadas correntes da música popular internacional que não correspondem a preferências da juventude universitária do Ocidente como um dos fatores que dificultam o convívio social.

Por parte chinesa, constata-se que jovens, fascinados pela música popular internacional, já não apresentam interessam por expressões tradicionais, como a da ópera de Peking, o que causa preocupações. Esse fenômeno é explicado como consequência da Revolução Cultural de algumas décadas atrás: formadas sem contatos com a cultura tradicional, as novas gerações sentem dificuldades de a fruir (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Ludico-nas-relacoes-sino-ocidentais.html).

Encontro A.B.E. no Teatro Liyuan

Encontro A.B.E. no Teatro Liyuan
Como refletido em encontro no Teatro Liyuan com artistas que procuram criar um espetáculo que abra portas para a cultura tradicional através de recursos de show, do teatro de revista e de musicais do Ocidente, servindo, ao mesmo tempo, como entretenimento e representação cultural a homens de finanças e negócios que visitam a capital chinesa, o predominío da música popular internacional e o distanciamento das gerações mais jovens com relação à cultura tradicional não podem ser explicados apenas como efeitos da Revolução Cultural.

A difusão da música e de outras expressões culturais populares internacionalizadas possui raízes mais antigas, podendo até mesmo ter contribuído aos pressupostos de acontecimentos políticos e medidas político-culturais.

Encontro A.B.E. no Teatro Liyuan
A situação assim delineada demonstra a necessidade de estudos culturais que enfoquem com particular atenção a recepção da música popular internacional na China, seus efeitos e consequências sob o aspecto de suas inserções em processos de transformação cultural sobretudo nas grandes cidades cosmopolitas chinesas e nos antigos territórios administrados por potências européias.

Essa necessidade de estudos mais aprofundados do papel exercido pelas comunidades européias e das colonias na história da cultura popular de cunho internacional na China decorre também do significado concedido na atualidade a questões da diversidade cultural no patrimônio intangível na China.

Arquivo ISMPS/A.B.E.

Música e dança populares portuguesas como parte do patrimônio chinês

Demonstrando terem sido infundadas preocupações de alguns observadores à época da transferência de soberania de Hong Kong e Macau à China, em fins da década de 90, expressões culturais remontantes ao passado colonial desses territórios não são silenciadas, mas sim utilizadas para a valorização der seus atrativos, para o fomento do turismo cultural e para a demonstração da diversidade multifacetada da China da atualidade.

Também danças tradicionais portuguesas surgem inseridas em grandes painés que decantam o fascínio de Macau àqueles que entram em Beijing/Peking. A música e a dança de protagonistas de traços chineses e trajes portugueses representam a cultura popular nesses painéis que incluem menções a máscaras chinesas, ao ballet clássico ocidental, à música erudita de uma metrópole apresentada como feérica, envolvida por espetáculos pirotécnicos e marcada pela velocidade de corridas automobilísticas.


Ponto de partida: Hong Kong, comércio musical e música popular ocidental

A fundação e o extraordinário desenvolvimento comercial de Hong Kong a partir de meados do século XIX não têm sido suficientemente considerados na pesquisa da vida musical e da história da música popular em contextos globais.

Tornando-se centro cosmopolita e de presença britânica no Extremo Oriente, Hong Kong desempenhou papel fundamental na redirecionamento cultural dessa esfera do globo em direção à esfera inglesa e norteamericana, na difusão de tendências contemporâneas de centros cosmopolitas da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos, e que surgiam como expressões de renovação e progresso.

Esse papel renovador exercido por Hong Kong manifestou-se em particular na comunidade de portugueses vindos de Macau que, à procura de condições mais promissoras de trabalho e comércio, assentaram-se em Hong Kong, sobretudo em Kowloon.

Ainda que relativamente próximos da colonia portuguesa de Macau, esses imigrantes sentiram-se transportados para um meio social e cultural de diferentes características, movido pelo empreendedorismo, pelo entusiasmo progressista e pela abertura à internacionalidade que marcavam os centros industriais britânicos e aqueles do pioneirismo e da expansão econômica nas Américas, em particular da sua costa pacífica.

O contraste entre a decadência nostálgica de Macau e o progressismo entusiástico de Hong Kong reflete-se em artigos de jornais que dão testemunho da intensa e diversificada vida musical dos portugueses em Hong Kong e de suas atuações na antiga Macau, onde surgiam como portadores de novidades e de impulsos de renovação de repertório e de revitalização.

A situação de imigração dos portugueses e macaenses em Hong Kong diferia daquela de Macau também e sobretudo sob o aspecto da prática e da função social da música. Em território inglês e de língua inglesa, a criação e a manutenção de elos comunitários determinados pelas origens e pelo idioma surgiam como de significado existencial para os portugueses, possibilitando rêdes de suporte humano, social e de abertura de caminhos para negócios, e facilitando o processo integrativo.

Nessas circunstâncias, compreende-se que, diferentemente de Macau, onde a prática musical se concentrava sobretudo nas igrejas, o exercício musical em Hong Kong tenha adquirido outras características, servindo sobretudo à vida associativa e ao convívio familiar.

A prática ampla da música vocal e instrumental por parte de amadores em Hong Kong trouxe consigo também uma diferenciação do tipo de música cultivada relativamente àquela de Macau. Esse fato foi não apenas decorrente da necessidade de escolha de obras à altura das possibilidades técnicas de execução de diletantes; foi também resultado das novas circunstâncias cosmopolitas da sociedade britânica de Hong Kong e da situação particular da influência italiana na Missão Portuguesa (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Carlos-Gomes-na-China.html). Representou, sobretudo, as necessidades de escolha de um repertório acessível e ameno, capaz de agradar e despertar o entusiasmo de ouvintes e amadores de diferentes profissões.

Nesse sentido, explica-se o significado que deve ser reconhecido em Hong Kong numa história da música popular em contextos internacionais.  Para satifsfazer à crescente procura de instrumentos e materiais musicais por parte dos imigrantes europeus, desenvolveu-se um intenso comércio musical em Hong Kong.

Nos trabalhos e encontros ali realizados pelo I.S.M.P.S. em 1996, pôde-se estudar a função das casas comerciais de música na colonia inglesa em comparação àquela que se constata no Brasil da mesma época. Lembrou-se, então, dos vários estabelecimentos do Rio de Janeiro e de São Paulo, e do papel por êles exercido no desenvolvimento da vida musical profana nas cidades brasileiras, na difusão de novos repertórios, em particular de salão e de banda de música, assim como na propagação de gêneros, formas e ritmos em peças características que prepararam o surgimento de uma música popular identificada com contextos locais, regionais e nacionais.

Salientou-se, porém, as diferentes circunstâncias em que se processou esse desenvolvimento do comércio musical e da música popular em Hong Kong. No exemplo da Casa Levy de São Paulo, cujo papel na história da vida musical paulistana vem sendo considerado desde o início da década de 70, tendo sido reconsiderado no concerto de fundação do I.S.M.P.S. em 1985, atentou-se ao fato de terem sido sobretudo estrangeiros imigrados que contribuiram ao desenvolvimento do comércio musical, com todas as suas consequências relativamente ao ensino, à formação de um público de concertos e à transformação de repertórios.

Em Hong Kong, esses imigrantes foram sobretudo portugueses, havendo, assim, sob determinados aspectos, uma inversão de situações relativamente àquela de São Paulo. Ao mesmo tempo, porém, esse papel exercido pelos portugueses no comércio musical traz á consciência que também no Brasil, em particular no Rio de Janeiro, os portugueses se salientaram no comércio de instrumentos e de partituras, um fato ainda não suficientemente considerado pelas consequências que traz para o estudo de processos de difusão, popularização e para a história da música popular em geral.

Comércio de música de portugueses em Kowloon: Isidoro da Costa

Reclames publicados em jornais de Hong Kong e Macau registram a atividade de várias casas comerciais que vendiam instrumentos e músicas importados. Assim como no Brasil,  essas casas eram denominadas segundo o seu proprietário. Sabe-se, no caso do Brasil e de outros países, que muitos músicos que procuravam tirar proveito profissional das suas aptidões, extenderam as suas atividades ao comércio musical, alguns deles passando à fabricação de instrumentos e à composição de peças acessíveis destinadas à venda a um público mais amplo. No caso de Hong Kong, um exemplo a ser mencionado é o de Isidoro da Costa, que manteve uma casa comercial na Cameron Road, em Kowloon, centro da comunidade portuguesa, onde vendia músicas para piano, banda, orquestra, para canto e outros instrumentos. Nos seus anúncios, Isidoro da Costa salientava explicitamente que se encarregava de encomendar quaisquer instrumentos de banda ou de orquestra, assim como de outros acessórios musicais.

Esses instrumentos e músicas eram provenientes da Europa e dos Estados Unidos, encomendados sobretudo em San Francisco. Essa cidade americana exerceu papel de mediação no processo de difusão musical, não apenas intermediário no caminho das importações, mas também no da difusão de obras impressas nos Estados Unidos. As casas comerciais de Hong Kong, tais como a de Isidoro da Costa, passaram a ser procuradas por músicos e amadores de Macau, o que explica a divulgação que promoviam nos jornais da colonia portuguesa.

Comércio de música de portugueses e o meio britânico: Costa & Sons Music & Co.

O comércio de importação de instrumentos e músicas desenvolvido por portugueses em Hong Kong não tinha apenas o objetivo de suprir a procura dos amadores e das associações de língua portuguesa. Se essa função fora a primordial, os estabelecimentos portugueses passaram a servir aos inglêses e a residentes de outras nacionalidades. Encontrando-se em território britânico, passaram a utilizar-se do inglês como idioma, como foi o caso da firma fundada por Isidoro da Costa.

Esse fato pode ser considerado como um exemplo a integração na sociedade colonial britânica dos filhos dos imigrados. Tudo indica que também em Hong Kong ocorreram mudanças de identidade em ritmos geracionais que vêm sendo estudadas em outros contextos. Se a geração dos imigrados ainda se mantinham vinculados por estreitos laços com o seu meio de origem, no caso Macau, para ali pretendendo retornar em melhores condições materiais, preocupados, assim, em manter o idioma e as expressões culturais no ambiente estranho, a geração daqueles já nascidos em Hong Kong passavam a se identificar com a nova sociedade cosmopolita da colonia britânica. Pode-se constatar das fontes que também em Hong Kong essa situação se transformou na terceira geração, quando os descendentes de portugueses passaram a se reconscientizar de suas origens e a valorizar a cultura de seus avós, o que explica, por exemplo, as preocupações voltadas ao fomento do ensino de português no início do século XX.

Imprensa de portugueses: O Porvir e Hongkong Printing Press de Lisbello J. Xavier

No campo de tensões determinado pela manutenção de identidade portuguesa/macaense de origem e pela integração na sociedade colonial britânica, o idioma desempenhou naturalmente papel de particular significado. Os portugueses em Hong Kong defrontavam-se ao mesmo tempo com a necessidade de aprender e exercitar o inglês e com o desejo de ler em português, constituindo, assim, um grupo de leitores que pedia e possibilitava a edição de jornais. Os portugueses traziam consigo uma considerável tradição tipográfica e publicística de Macau, documentada pelos órgãos que ali foram e eram publicados. A imigração de portugueses a Hong Kong levou a uma extensão dessa tradição à colonia britânica, à sua revitalização no espírito de empreendedorismo que ali reinava e à sua modernização através de novos maquinários de importação inglesa. O papel desempenhado pelos portugueses na história da imprensa de Hong Kong não deveria ser visto, assim, como extensão de desenvolvimentos ingleses, mas sim como a de uma nova fase de atividades de impressão e de publicação portuguesas sob as novas circunstâncias da colonia britânica.

Um nome de empresário que deve ser lembrado pelos seus serviços ao jornalismo e à impressão  em geral de Hong Kong é Lisbello J. Xavier. Esse macaense, proprietário de uma tipografia, fundou e dirigiu o jornal O Porvir, designação que bem reflete o espírito progressista e voltado ao futuro de Hong Kong. Em português, era uma folha dedicada à colonia lusófona de Hong Kong. 

Esse jornal desempenhou não apenas como órgão de divulgação e porta-voz da comunidade um papel de importância na colonia portuguesa, mas também como folha de uma firma que se tornou centro de atividades intelectuais e culturais. A tipografia passou a ser visitada por membros da comunidade para a divulgação de seus empreendimentos, desenvolvendo uma função integradora dos portugueses ativos em associações e ativos em diferentes esferas da sociedade.

As atividades da tipografia de Lisbello J. Xavier não se limitou à comunidade portuguesa, tornando-se empresa de significado em todo Hong Kong, dimensão que se reflete na sua designação de Hongkong Printing Press. O seu desenvolvimento levou à aquisição de máquinas tipográficas e de impressão litográfica importadas em fins do século XIX, transformando-a numa das empresas tecnicamente mais avançadas do gênero no Extremo Oriente.

Impressão musical: Marcha-Polka "Pereira Marques" de Oscar Baptista

Com as novas possibilidades técnicas, Lisbello J. Xavier encontrou-se em condições de publicar músicas. Para divulgar esse seu projeto e preparar interessados, publicou uma nota no seu jornal  (O Porvir, 30 de junho de 1900).

Nessa notícia, Lisbello J. Xavier anunciava que estava mandando litografar uma Marcha-Polka para piano de título "Pereira Marques", composta por Oscar Baptista.

Tratava-se de uma homenagem ao médico macaense Dr. Lourenço Pereira Marques (1852-1911) feita pela Sociedade Philarmonica Portuguesa de Hong Kong, por círculos portugueses da colonia e pelo auxílio financeiro de um amigo do jornal O Porvir que permanecia anônimo.

A impressão dessa primeira música publicada em Hong Kong adquire interesse por diversas razões. Ela dá testemunho do papel exercido na vida musical da colonia pela banda de música dos amadores portugueses, agora já Sociedade Filârmonica Portuguesa de Hong Kong, do cultivo do piano na colonia, que tornava realizável a edição da obra para piano, da prática criadora dos músicos portugueses de Hong Kong e, para os estudos da música de salão e popular, o fato de tratar-se de uma Marcha-Polca.

Essa edição testemunha também a força de vínculos pessoais e afetivos da colonia portuguesa de Hongkong com a cidade de Macau. Tudo indica que os portugueses de Hongkong davam maior importância à manutenção desses vínculos do que os de Macau, onde parece ter havido certos ressentimentos com relação à colonia vizinha, constituida em parte por macaenses que tinham abandonado a sua cidade e agora participavam do desenvolvimento econômico de Hongkong.

A publicação da peça de Oscar Baptista, sendo a primeira peça musical litografada em Hongkong, surge, assim, como um sinal e prova dos elos de amizade e fraternidade entre as duas colonias e, ao mesmo tempo, de uma identidade cultural lusa que transpassava os limites das colonias.

Pelo seu título e pelo escopo de sua impressão, a Marca-Polka indica também a prática, também conhecida do Brasil, de homenagear-se personalidades com composições musicais, assim como revela o significado do médico homenageado, já então retirado em Macau, na comunidade de Hong Kong.

Sabe-se, do Brasil, que os homenageados eram sobretudo conhecidos e amigos influentes de compositores e grupos. Esperava-se que a dedicação de uma obra a um político, a um militar, a um magistrado ou, no caso, a um médico, abrisse portas que facilitassem a realização de empreendimentos de determinada entidade ou de personalidades da vida musical. Tratava-se, em geral, de bandas de música, cujos mestres, ao mesmo tempo compositores, procuravam apoio político e financeiro, além de, naturalmente, alargar a rêde de contatos necessária para a criação de um público leal à entidade.

No caso da "Marcha-Polka Pereira Marques", surgida também no âmbito da banda de música lusa de Hongkong, a publicação da peça deu-se a partir de sua versão para piano. Somente assim fazia sentido litografá-la, pois nessa versão poderia ser divulgada entre os numerosos pianistas. Sabendo que o renomado médico de Macau dispunha de um amplo círculo de contatos, já pelo número de seus pacientes e pela sua posição social, os responsáveis pela edição esperavam que ela pudesse ser bem vendida.

"É de crer, pois, que com tal recomendação, tenha o melhor exito, além de que sendo a peça uma homenagem ao dr. Marques, todos os amigos do benemérito facultativo, que são todos os que o conhecem, hão de sentir o prazer em possuí-la."

De acordo com o costume da época, comum em várias outras regiões do mundo de língua portuguesa e também fora dele, tornara-se popular o cultivo de formas híbridas, no caso uma "Marcha-Polka". Percebe-se, aqui, assim, a integração dos repertórios de dança, da música de salão e de banda, uma amálgama e às vezes simbiose que relacionava-se com o fato da música de banda assumir cada vez mais um caráter civil e de recreação. Embora ter sido concebida para a Filarmônica, Oscar Baptista a escreveu provavelmente ao piano, realizando a posteriori a instrumentação. Assim, a versão para piano litografada não seria uma redução ou arranjo, mas sim a composição original. Ao mesmo tempo, o fato da primeira música impressa em Hong Kong ter sido uma Marcha-Polka indica a recepção, no Extremo Oriente, de formas então populares na Europa e nos Estados Unidos, particularmente associada com determinadas regiões da Europa Central, em particular com a Baviera. A Marcha-Polka, tipo de música também difundido no Brasil à época, surgia como apropriada como expressão de alegria, bom humor e animação.

O Popular em círculos sociais elevados: a homenagem a Pereira Marques

Uma atenção especial merece a personalidade daquele que foi homenageado com a primeira música impressa em Hong Kong, o Dr. Lourenço Pereira Marques.

Esse médico, de tradicional família macaense, cujo nome ficou perenizado também pela posse da quinta no qual se encontrava a gruta de Camões, representa de forma particularmente expressiva a ponte entre Macau e Hong Kong, assim como processos culturais complexos marcados pela manutenção de identidade portuguesa e integração na esfera britânica.

Os estreitos elos de Pereira Marques com o mundo científico-cultural anglofone foram possibilitados pela sua especialização em Dublin após ter realizado os seus estudos de medicina em Lisboa.

Na Irlanda, Pereira Marques alcançou, em 1877, diplomas dos Colleges of Physicians and Surgeons. Estabeleceu-se em 1878 em Hong Kong, onde praticou até 1896. Em 1880, foi nomeado médico superintendente do hospital civil de Hong Kong, atuando em outros hospitais da colonia. Em 1881, foi admitido como membro do Royal College of Physicians.

As suas atividades na colonia e os méritos que alcançou durante epidemias, em particular no combate à cólera, valeram-lhe reconhecimentos tanto do Governo do território, em 1883, da Irlanda como de Portugal, tendo recebido títulos honoríficos, entre êles o da Ordem de Cristo e o da Torre e Espada.

Por ocasião do seu falecimento, os seus méritos foram salientados por órgãos ingleses de Medicina.

Dr. Lourenço Pereira Marques, who died recently at Macao in China, was born at that place in the famous "Garden of Camoens" in 1852. He received his early education from the Jesuits, studied medicine at Lisbon, and afterwards at Dublin where he obtained the diplomas of the Colleges of Physicians and Surgeons in 1877. In 1881 he was admitted a Member of the Royal College of Physicians in Ireland. He returned to China in 1878 and practised at Hong Kong till 1896. He was appointed Medical Superintendent of the civil hospital there in 1880, and held several other appointments in the hospitals of the colony. He received the thanks of the Government for his services during the cholera epidemic in 1883. He was a Commander of the Order of Christ and a Knight of that of the Torre e Espada, distinctions conferred upon him for his services during epidemics of plague and cholera. In 1895 he retired from the public service and settled in his native place. Dr. Pereira Marques had a high ideal of his profession, and throughout his life showed the most self-sacrificing devotion to duty. (Public Health, The British Medical Journal April 29, 1(2626) 1911, 1031

Obstáculos culturais à produção musical com fins de lucro

Como também conhecido de outras regiões do mundo, também em Macau e em Hong Kong não era de distinção em círculos socialmente mais elevados da sociedade que músicos manifestassem abertamente intenções de obtenção de lucros financeiros com a sua arte. Esse problema fêz-se sentir em particular no caso da Marcha-Polka que trazia o nome de uma das personalidades mais destacadas da vida social de Hong Kong e Macau, proveniente de família de elevado prestígio e tradição.

Já na visita do círculo de amadores de Hongkong liderados por N. Cattaneo a Macau, alguns anos antes, estes apenas vieram à cidade sob o pretexto de realização de um concerto beneficiente. Mesmo assim, o emprêgo dos meios obtidos com a venda de entradas para a recepção dos músicos foi causa de escândalo.

Um musicista que deixasse entrever claramente as suas ambições profissionais perdia em reputação. Esse foi o caso de um dedicado músico macaense, Constâncio J. , que teve que reagir fortemente contra insinuações que diziam ter ele "mendigado" uma colocação como regente da banda daquela cidade.

Assim, é compreensível que o jornal O Porvir haja salientado que o responsável pela impressão da Marcha-Polka, o editor-proprietário Lisbello J. Xavier, tinha a intenção de fazer reverter o produto da venda da peça em benefício da Assistência Nacional aos Tuberculosos. Os lucros seriam também divididos com de uma infeliz senhora viúva de um oficial português da Índia que ficara nas mais precárias circunstâncias.

Com essa manifestação de honradez e esse apêlo ao sentimento nobre dos amantes da música, o proprietário da Hongkong Printing Press tinha a certeza de iniciar bem o trabalho de impressão de músicas no Oriente.

Comércio, ensino e práticas instrumentais populares: flauta, bandolim e guitarra

Como conhecido também no Brasil, também em Hong Kong casas de comércio musical serviram à divulgação de serviços de professores particulares de música e locais de estabelecimento de contatos. Assim, Miguel H. Roxas anunciava, em 1901, que podia ser contatado na Hongkong Printing Press por interessados em aprender solfejo, piano e composição.

Dos anúncios publicados em jornais da colonia, sabe-se também que Lourenço A. de Graça utilizava-se da Hongkong Printing Press para poder ser contatado por aqueles que desejavam aprender violino, guitarra portuguesa e bandolim. Mencionando que lecionava a preços módicos e segundo métodos que possibilitavam rápido progresso, dá testemunho do interesse que havia pelo aprendizado desses instrumentos em círculos de menores posses da comunidade.

No entusiasmo por instrumentos de cordas dedilhadas, os amadores de Hong Kong compartilhavam de tendências da época, correspondendo tanto à tradição portuguesa como à inglesa e à italiana dos grupos populacionais mais representados na colonia britânica. Essa popularidade de instrumentos de cordas dedilhadas faz com que Hong Kong se aproxime da situação conhecida do Havaí, onde imigrantes portugueses alcançaram extraordinário sucesso com instrumentos da família da guitarra, dando origem ao instrumento que se tornou emblemático para o Havaí e a um desenvolvimento musical que floresceu sobretudo nos Estados Unidos. Em ambos os casos, Havaí e Hong Kong, esse fenômeno ocorreu em sociedade marcada pela imigração portuguesa, no primeiro caso das ilhas atlânticas, no segundo sobretudo da vizinha Macau, e, ao mesmo tempo, pela supremacia cultural anglofone. Tudo indica, também, que a difusão de instrumentos de cordas dedilhadas, tão cultivados por amadoras na Inglaterra, deu-se através do caminho norte-americano.

Paralelamente aos instrumentos da família da guitarra, cumpre salientar o papel exercido pela flauta na história da música popular ocidental no Extremo Oriente. O desenvolvimento das bandas de música e o ensino que os seus músicos proporcionavam contribuiram para a formação de executantes desse instrumento.

O aperfeiçoamento técnico e a sua exibição exigiam também instrumentos capazes que possibilitassem a execução de obras brilhantes e que oferecessem meios para a realização mais sonora, doce e maleável de linhas melódicas.

Como esses instrumentos deviam ser importados, houve também nas colonias do Oriente músicos que procuraram eles próprios aperfeiçoar artesanalmente os instrumentos que já possuiam.

Um deles, um "aprimorado gentleman muito conhecido em Macau", segundo notícia de O Independente, de 20 de fevereiro de 1898, inventou uma nova flauta, da qual conseguia tirar sons "especialmente harmoniosos". Era conhecido pelo aspecto bicolor de seu instrumento, pois havia substituido um dos tubos de ébano, - o de maior diâmetro -, por um de marfim.

Para exibir as possibilidades de seu instrumento, esse artista resolveu realizar uma excursão pelas principais cidades da China. Ia, também como veículo da difusão da música ocidental, pois era o seu objetivo impressionar os chineses e, através de suas aptidões na flauta, impressionar os chineses, demonstrando uma superioridade da cultura musical européia. O produto desses concertos deveria ser entregue à comissão encarregada de promover em Macau os festejos pelo Centenário da Índia, ou melhor, pelos 400 anos do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, em 1898. Para essas comemorações de Vasco da Gama, comunidades de várias regiões do Oriente estabeleceram ou estreitaram contatos, criando-se rêdes e possibilitando cooperações e a união de forças. Para tais comemorações, o levantamento de meios financeiros tornou-se questão de importância. Com essa intenção, o flautista tinha também a certeza de receber a simpatia dos macaenses:

"Actos de desinteressa abnegação d‘esta natureza, derivados alem d‘isso d‘uma affirmação perante o Celeste Imperio do talento artístico portuguez, não podem ficar no esquecimento e impõem-se ás gerações futuras."

De Costa & Sons à Casa Alto Douro em Macau. Valsas, tangos e maxixes

Para os estudos euro-brasileiros é relevante salientar que também quanto ao repertório as cidades européias da China cultivaram danças e peças de salão que marcaram a história da música popular no Brasil. Entre elas, salientaram-se as valsas, sobretudo as lentas e sentimentais, que correspondiam à imagem romântica de Macau. Maxixes e tangos foram ali executados já nos anos anteriores à Primeira Guerra. Uma casa de comércio de Macau, a "Alto Douro", anunciava ter exemplares à venda de valsas, tangos e maxixes para piano, além de fox-trots e one steps.
Essa casa era uma agência da Costa & Sons de Hong Kong, dela recebendo materiais. Tudo indica, portanto, que essas peças não eram provenientes de Portugal, mas importadas através de San Francisco. Haveria, assim, também sob o ponto de vista da difusão do maxixe e do tango, afinidades com a vida músico-popular norte-americana.

A americanização da música popular ocidental no Extremo Oriente não se manifesta apenas na expressa difusão do fox-trott e do one-steps, mas deve ser considerada no contexto mais amplo dos elos comerciais entre Hong Kong e as cidades da costa pacífica dos Estados Unidos, em particular San Francisco.




 





Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "O comércio musical de portugueses em Hong Kong e nos estudos culturais do Popular internacionalizado na China. Flauta, bandolim e guitarra, valsas, polcas, maxixes e tangos". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 137/16 (2012:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Hong-Kong-comercio-musical-portugues.html




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


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  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.