Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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People's History Museum

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Manchester. Foto A.A.Bispo

Manchester. Foto A.A.Bispo

Manchester. Foto A.A.Bispo

Manchester. Foto A.A.Bispo

Manchester. Foto A.A.Bispo

Manchester. Foto A.A.Bispo

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 137/15 (2012:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2899


A..B.E.


Migrações a centros de comércio e mudanças de práticas tradicionais
Das cavalgadas do Divino de zonas rurais inglesas à música de banda em Manchester
e na integração de portugueses no universo britânico de Hong Kong


Ciclo de estudos em Peking/Beijing e Manchester
no ano da participação da China como nação convidada na Feira de Hannover 2012
Pelos 500 anos da presença portuguesa na China
em atualização de trabalhos da A.B.E. em Hong Kong e Macau
à época da transferência de soberanias européias à China (1996). People's History Museum, Manchester

 

A China foi alvo de estudos culturais euro-brasileiros realizados em Beijing/Peking e em Manchester, respectivamente em janeiro e em abril de 2012.

O motivo desses trabalhos foi a participação da China como país convidado na Feira de Hannover 2012, o maior evento do gênero na área de inovações tecnológicas, um fato que chama a atenção para o papel de crescente relevância desempenhada pela China no mercado técnico-científico e industrial do globo. Esse desenvolvimento é acompanhado por questões que apenas podem ser esclarecidas através de análises de processos histórico-culturais das relações da China com o Ocidente (veja Tema em Debate).

Um marco na história da inserção da China no desenvolvimento econômico e industrial do Ocidente no século XIX foi a ocupação da ilha de Hong Kong pela Grã-Bretanha durante a Guerra do Ópio, em 1841. Situado na área de desembocadura do rio Si-Kian, a 145 km ao sul de Cantão, centro comercial do Sul da China, transformou-se em bastião da presença britânica e, sob a sua proteção militar, centro urbano que experimentou rápido desenvolvimento econômico, atraindo imigrantes de várias regiões, também portugueses da vizinha Macau.

Como porto livre, Hong Kong tornou-se a principal praça comercial do Ocidente com a China. No decorrer dos anos, a Grã-Bretanha adquiriu a área fronteiriça do continente da cidade de Kowloon, aumentando-se posteriormente o território com o arrendamento de outra área do continente e de ilhas circunvizinhas, por 99 anos. Hong Kong foi frequentemente comparado ao Rio de Janeiro - e a São Francisco - pelas excelentes qualidades portuárias que oferece, uma das razões do seu extraordinário desenvolvimento.

Essa presença da Grã-Bretanha na esfera chinesa, que determinou as relações da China com o Ocidente a partir de meados do século XIX, foi objeto dos trabalhos desenvolvidos em Manchester.

Passados 15 anos dos estudos levados a efeito em Hong Kong por ocasião da transferência de sua soberania da Grã-Bretanha à China, decidiu-se retomar algumas das questões então tratadas num dos centros por excelência da Revolução Industrial e da produção industrializada de tecidos e outros produtos, exportados para todo o mundo através de Liverpool, também principal porto de saída de emigrantes.

Com os seus museus e centros de história da época da Revolução Industrial e de movimentos sociais, em particular do People's History Museum, Manchester oferece condições particularmente favoráveis para estudos culturais, em particular de processos que marcaram o período vitoriano, rainha que foi perenizada na própria denominação da capital de Hong Kong: Vitoria.

A consideração da história da vida musical de Manchester no século XIX demonstra elos entre o desenvolvimento industrial, suas consequências sociais e transformações culturais. A cidade transformou-se em centro cosmopolita, marcado por singular dinamismo.

Arquivo ISMPS/ABE

Das Cavalgadas do Divino aos desfiles e competições de bandas de música

Uma particular atenção no sentido dos Cultural Studies merece o desenvolvimento da música de banda em Manchester como resultado de migrações e transformações sociais e culturais decorrentes do crescimento da cidade como centro fabril e comercial.

A música de banda tornou-se parte importante do patrimônio cultural de Manchester e suas vizinhanças. Em localidades periféricas, tais como Tameside e Saddleworth realizam-se anualmente concursos de bandas do Whit Friday. Em Stalybridge, esse concurso se realiza pelo menos desde 1870. Em 1884, com a conjunção de eventos em Uppermill e Mossley, teve origem o Annual Whit Friday Band Contest.

A origem desse uso remonta às festas do Espírito Santo, ou melhor da oitava de Pentecostes (Whitsuntide), da primeira sexta-feira antes do Whitsun (White Sunday). No Norte da Inglaterra, realizavam nessa época do ano as cavalgadas Whit Walks. Essa tradição das cavalgadas do Espírito Santo, remontantes à Idade Média e fundamentadas em imagens de antiga proveniência, também é conhecida do mundo atlântico dos Açores e do Brasil, representando importante objeto dos estudos da cultura tradicional brasileira, hoje em fase de revitalização (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/130/Divineiros_de_Joanopolis.html)

A consideração do processo que levou à transformação de praticas antes rurais de festas do Espírito Santo com a migração para centros industriais da Inglaterra no século XIX pode chamar a atenção para um aspecto até hoje pouco considerado de desenvolvimentos brasileiros que levaram também ao florescimento da prática de bandas de música no Brasil na segunda metade daquele século.

Com a imigração de trabalhadores do campo e de pequenas aldeias do Norte da Inglaterra para Manchester durante a Revolução Industrial, ocorreu um abandono de tradições mais expressamente vinculadas a conteúdos religiosos, passando a oitava de Pentecostes a ser uma semana de recreações populares.

Ainda que a tradição de corridas de cavalos entre a quarta-feira e o sábado da oitava de Pentecostes tenha-se mantido em Manchester, a atenção dos estudos foi dirigida ao desenvolvimento de outras formas de acompanhamento musical de cortejos.

Uma das razões da transformação de práticas e expressões que aqui se processou é vista em preocupações moralizadoras de fundamentação religiosa: procurando afastar a juventude de corridas de cavalos, escolas e pastores passaram a organizar festividades nesses dias, assim como aniversários, encontros para chá e desfiles nas escolas. Assim, no Whit Friday, igrejas da região passaram a contratar bandas para guiar procissões tradicionais pelas ruas. Na Sexta Feira dessa semana, as festividades passaram a ser marcadas pelo Scholars'Walk, quando alunos e alunas recebiam novos uniformes e desfilavam pelas ruas com cestos de flores e mastros com fitas ao som de música. Em estudos culturais comparados, pode-se estudar essas tradições em paralelos com as companhias de Divino no Brasil e suas possíveis transformações no decorrer de processos de urbanização.


As transformações ocorridas em expressões culturais de período de festas sob as novas condições das metrópoles industriais e cosmopolitas em crescimento britânicas, em particular Manchester, não ocorreram apenas na semana de festas da Oitava de Pentecostes, podendo ser estudadas sob diferentes aspectos no desenvolvimento de uma cultura de entretenimento e de tempo livre com novas características.

Em linhas gerais, pode-se constatar um processo de secularização de divertimentos populares com a substituição de antigos folguedos vinculados ao calendário religioso por outros passatempos. O desenvolvimento de atividades de lazer, de concertos e realização de bailes, patinações e outras atividades ao ar-livre poderia ser analisado sob essa perspectiva.

Ao mesmo tempo, porém, constata-se expressões de saudosismo da vida rural nessas comunidades cosmopolitas de metrópoles industriais e comerciais e que se manifestavam em referências a antigas tradições e à vida de campo. Esses regionalismos eram por vezes expressos de forma ambivalente, em mixto de nostalgia, orgulho e distância relativadora irônica ou hilariante. Músicas e danças tornaram-se meios privilegiados para essas sugestões e associações, servindo com as suas referências ao passado e à vida de campo à fruição da memória cultural sob novas expressões.

Esse processo de integração e diferenciação de grupos populacionais de migrantes dos campos às cidades industriais e cosmopolitas inglesas, configurando uma cultura urbana, teve repercussões no mundo extra-europeu, em particular nos Estados Unidos, mas também em outras regiões do globo. Não se tratou aqui apenas de expressões transplantadas no âmbito da emigração de irlandeses, escoceses e ingleses, mas sim também de recepções por parte de grupos populacionais de outras origens e formação cultural que se inseriram em esferas coloniais britânicas. Esse foi o caso da comunidade de portugueses de Hong Kong.

Pressupostos: tradição da música de instrumentos de sôpro em Macau

O estudo da música militar ocidental no Oriente inicia-se à época dos Descobrimentos; instrumentistas acompanharam armadas, participaram de atos de representação oficial e de empreendimentos bélicos, serviram a dar coragem e a levantar a moral de combatentes e à intimidação de inimigos, e a dar brilho às festas de vitórias e a celebrações de triunfos e datas memoráveis.

Desde os primeiros tempos, portanto, houve relações entre o militar e o civil, músicos militares de fortalezas e guarnições que atuaram em solenidades e festas religiosas e comunitárias e, correspondentemente, uma vida musical civil marcada pela atuação de músicos militares que foi, dependendo das situações, mais ou menos militarizada.

Na história da banda de música, pode-se distinguir um período mais antigo, anterior ao século XIX, e aquele iniciado sob as novas condições políticas criadas pelas guerras européias à época napoleônica e suas consequências após 1815.

Sabe-se que já antes de 1844 existia em Macau uma Sociedade Filarmônica, podendo-se supor tratar-se de uma sociedade de instrumentistas de sôpro. Essa sociedade tornou-se, como em outras regiões do mundo português - e também no Brasil - centro da vida musical profana, onde, nos seu salão, realizavam-se também apresentações com a participação de outros instrumentistas e cantores.

Também como em outras regiões, essa sociedade esteve vinculada a círculos do comércio. Testemunho significativo desse vínculo foi um concerto realizado no dia 4 de maio de 1844 que se encontra documentado no jornal O Procurador dos Macaístas. Um músico de nome Rafael Jovita, que residia na feitoria comercial local de Francisco Antonio Tovar, realizou então um concerto com finalidades lucrativas no salão da Gamboa daquela sociedade, e que contou com a colaboração de cantores e instrumentistas amadores de Macau.

Nesse evento, a presença inglêsa é documentada pelo fato dos bilhetes serem vendidos no escritório de um John Smith. O anúncio testemunha que a prática de concertos públicos ainda não estava estabelecida em Macau. Os ouvintes - pelo que parece apenas se esperava a frequência de homens - precisavam trazer de casa no dia anterior cadeiras para o salão e chamava-se a atenção para que não falassem alto e nem fumassem durante a audição.


Rafael Jovita tem o prazer de annunciar ao Publico que Sexta-feira 13 do corrente, dará um Concerto Filarmonico em seu beneficio vocal, e instrumental, no Salão da Gamboa, ajudado pelos melhores curiosos desta Cidade, constante das Peças de Musica designadas nos Programas que hão de ser espalhados.

Os Senhores que quizerem concorrer a este Concerto acham os bilhetes no Escritório de John Smith, e em caza do beneficiado na Feitoria de Francisco Antonio Tovar, e terão a bondade de mandar as suas cadeiras no dia anterior ao do Beneficio.

Observaçoens algumas faz o beneficiado, sobre fumar, fallar alto & & : pois bem certo está que os concorrentes não ignorão o que he um Concerto. Macao, 4 de Dezembro de 1844. (O Procurador dos Macaístas, Macau 1/40, 5. 12.1844, 93)

De uma referência de algumas décadas mais tarde, toma-se conhecimento que o repertório da banda de Macau possuia tradicionalmente elos com Goa e outras regiões do Império português, sendo marcado por dobrados e "quadrilhas indianas". Esses elos eram possibilitados pelas rêdes de contatos e de difusão de partituras através dos navios que estabeleciam intercâmbios entre os portos. Na década de 80, esse repertório já era sentido como antiquado.

O publico e particularmente os melomanos pedem um novo repertorio musical. Os passos dobrados e as quadrilhas indianas já causam tedio. (O Macaense, Macau 1/23, 21. Setembro de 1882, 101)

Hong Kong: mudança de referenciações culturais de imigrantes portugueses

A história da China foi marcada durante várias décadas do século XIX pela Guerra do Ópio e, com isso, pela presença de forças militares européias na região, em particular da Grã-Bretanha. Ocorrendo neste contexto o assentamento inglês em Hong Kong, em 1841, compreende-se o significado que ali desempenhou a música militar.

O rápido desenvolvimento de Hong Kong com a presença britânica na embocadura do Rio das Pérolas processou-se paralelamente à decadência de Macau. Comerciantes macaístas que procuravam situações mais promissoras para negócios passaram para Hong Kong, onde as atividades gozavam da proteção inglêsa, criando ali uma considerável colonia portuguesa. Instrumentistas amadores que haviam sido formados em Macau vieram entre esses imigrantes.

Apesar de vínculos familiares e da manutenção de elos de identidade com a antiga colonia portuguesa, esses imigrantes experimentaram transformações culturais resultantes de processos de integração na esfera britânica. Esses processos não se resumiram à questão do aprendizado do idioma inglês, uma necessidade para as operações comerciais e o convívio humano na sociedade cosmopolita. Implicaram em mudança de referências culturais que, pela sua complexidade, exigem considerações diferenciadas.

Um dos aspectos que devem ser considerados diz respeito à mudança de orientações culturais ocorrida dentro da própria comunidade devido à orientação religiosa que os portugueses passaram a receber de italianos, o que marcou a cultura religiosa, o ensino musical e atividades artísticas comunitárias dos portugueses. O quadro que se obtém dos estudos de fontes é o da formação de uma esfera comunitária marcada culturalmente por elos com a Itália. Tratou-se antes de uma vida musical de ambições artísticas e de ascensão cultural, na qual sobretudo mulheres se salientaram, constituindo uma esfera erudita ou de "música clássica" no complexo de uma cidade formada por diferentes grupos populacionais, em incipiente processo de formação de identidade própria (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Musica-sacra-Hong-Kong.html; http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Carlos-Gomes-na-China.html).

A integração no mundo cultural britânico pode ser analisada sobretudo através da prática da banda de música. Esta, constituida por homens, servia sobretudo à ocupação de horas livres dos comerciantes, possuindo um repertório adequado ao entretenimento. Ainda que também participassem de concertos com grupos corais e orquestrais e oferecessem apresentações bem preparadas em praças, a prática musical manteve a sua função mais acentuadamente recreativa. Foi, assim, através da lúdica na sua forma adaptada às novas condições de uma cidade cosmopolita que processou-se a integração dos portugueses no mundo  cultural inglês, o que pode ser reconhecido a partir da música que passaram a cultivar. Essas composições, para serem atuais, precisavam ser encomendadas de centros do Exterior.

Se Macau se inseria há séculos em configuração geográfico-cultural criada pelas viagens dos portugueses à procura do caminho das Índias contornando a África, a rêde inglesa caracterizava-se por outros desenvolvimentos históricos e outras rêdes.

Houve, sob vários aspectos, intersecções de rêdes, constatando-se porém uma crescente intensificação da orientação geográfico-cultural britânica. Se os elos culturais de Macau davam-se tradicionalmente com outros pontos de importância do império português, como aqueles da Índia e Moçambique, sendo também centro de irradiação para outros centros coloniais portugueses, como Timor e Sião, com o desenvolvimento de Hong Kong acentuaram-se os elos com os centros da costa pacífica dos Estados Unidos.

Navios que subiam pelo litoral oeste da América do Sul, alcançavam o México e a América do Norte, dali partindo para o Oriente. A pesquisa tem até hoje considerado insuficientemente essa mudança na intensidade de vias e rêdes, atentando apenas aos elos tradicionais de Macau com as colonias portuguesas e não ao novo papel desempenhado por S. Francisco como centro irradiador de impulsos. Os elos e as similaridades quanto à difusão de obras e mesmo à atuação de músicos devem ser mais intensamente analisados nos centros da área assim constituida e na qual cai, também, o desenvolvimento músico-cultural do Havaí.

A corrida do ouro da Califórnia, que representou intensas transformações sociais e culturais no continente americano e na sua história imigratória interna e transatlântico-pacífica, teve repercussões também para a esfera asiática centralizada em Hong Kong.

Com tais transformações de redes e rotas, Hong Kong passou a ser procurado em primeiro lugar, antes que Macau, o que se repercutiu também na vida musical.

A Banda dos Amadores Portugueses de Kowloon e o espírito empreendedor

A Banda dos Amadores Portugueses, organizando os portugueses de Hong Kong e Kowloon para o seu passatempo e para o acompanhamento de atos festivos da coletividade da imigração, representa uma instituição particularmente significativa para a história do comércio, da imigração e de processos de transformação de identidades. 

O espírito de progresso e de empreendimento comercial que tomou conta da crescente colonia contrapôs-se àquele de decadência de Macau, e os músicos de banda de Hong Kong tornaram-se principais expressões desse entusiasmo e animação.

O desenvolvimento da música de banda civil dos amadores portugueses de Hong Kong e Kowloon foi possibilitada pela iniciativa de homens de negócios empreendedores, de famílias de interesse ao mesmo tempo econômico e cultural.

Entre elas deve-se salientar os Danenberg. Vindos de Macau, possivelmente de origem judia de proveniência alemã, como sugerido pelo sobrenome, mas enraizados em Macau, os Danenberg surgem nas fontes como ativos participantes de diferentes esferas da vida cultural civil tanto da imigração portuguesa em Hong Kong e Kowloon como do mundo de língua inglesa.

Alguns de seus membros atuaram como atores, como na realização de uma comédia inglêsa por M. Danenberg, F. Danenberg e E. Danenberg, acompanhados por Judith Danenberg e outra irmã, que levaram a palco uma comédia inglêsa por ocasião da primeira maior festividade na comunidade portuguesa de Kowloon. (Vide artigo)

Relativamente à prática da banda de música, o principal representante dessa família foi Vicente Sebastião Danenberg (1841-1904), mestre da Banda dos Amadores Portugueses. Nascido em Macau, filho de Antonio Carlos Danenberg (ca. 1805-1848) e de Ana Simões,  neto de Henrique Danenberg (1770-?) e Isabel de Sá, vem sendo objeto de pesquisas genealógicas que revelam pormenores esclarecedores da antiga história de Hong Kong. Pouco considerado tem sido o fato de Vicente Danenberg ter falecido em Shanghai, o que pode contribuir para estudos da influência exercida por macaístas de origem no desenvolvimento da vida cultural dessa cidade. Casado com Alcina Cordeiro, sabe-se que um de seus filhos, Jerônimo (1880-1930), nascido em Hong Kong, também faleceu em Shanghai.

Macau como cidade de lazer e a Banda Portuguesa de Hong Kong em Macau

A banda dos músicos portugueses de Hong Kong alcançou um período de particular florescimento na década de 80 e 90 do século XIX. Uma referência a viagem da banda a Macau em fins de julho de 1891 indica que a corporação já alcançara um nível que levara o mestre Vicente Danenberg a querer apresentá-la na sua cidade natal.

Essa viagem decorreu em época na qual Macau já era local de passeios para habitantes de Hong Kong, fato facilitado pela melhoria das condições de travessia. Esses anos foram marcados por uma intensificação da vida social em jardins da cidade, em particular no jardim público de Macau, o de São Francisco.

Macau inseriu-se, assim, no rol das cidades de diferentes regiões do globo que testemunham um florescimento da prática musical ao ar livre em fins do século XIX (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/128/Jardins-e-coretos.html).

Uma referência em jornal de 1888 quanto à transferência do local dos concertos para a praia Boa Vista, então uma das áreas privilegiadas da cidade, habitada sobretudo por europeus e seus descendentes, indica que a música ao ar livre era prestigiada pelos círculos mais influentes da sociedade colonial. Essa medida, afastando os concertos do centro da cidade e, portanto, da população mais simples, dera motivo a críticas:

A banda da guarda policial tem ordem para continuar a tocar as quintas feiras na aristocratica praia denominada Boa Vista mudando apenas as horas que eram das 7 as 9 passando a tocar das 6 às 7 horas.
Apezar de.. medida administrativa de mudar tocar a musica a uma distancia tal, em prejuizo do povo, vê-se que mudanca das horas já indica alguma cousa, e estamos certos que essa ordem em breve será revogada, do contrario irá sanccionar um capricho que não fica bem a primeira autoridade da colonia.
(O Correio Macaense, Macau 5/250, 6 de julho 1888, 2-3)

O significado da vinda da banda de Hong Kong pode ser avaliado considerando-se a presença de representantes do govêrno ao concerto e os comentários de jornais que salientaram a excelência das execuções.

"Como era d'esperar, entre os passageiros contavam-se muitos macaistas que aproveitaram o ensejo para visitar os seus parentes e amigos.
Veiu tambem a banda de amadores portuguezes de Hongkong.
Consta-nos que essa banda concorreu muito para amenisar as tres horas de viagem de Hongkong a Macau, pois esteve tocando lindas peças de musica com applauso geral dos passageiros que foram unanimes em louvar a perfeição com que tocaram.
N'esse mesmo dia, das 5 ás 7 horas da tarde, a mesma banda tocou tambem no jardim de S. Francisco.
Houve grande concurso de gente. O sr. secretario geral, Sande e Castro, que faz as vezes de governador da provincia, esteve presente, e na sua companhia tivemos o prazer de vêr o exmo. sr. conselheiro Romano, que n'esse dia tinha vindo a Macau com a sua familia.
É admiravel o progresso que estes nossos compatricios teem feito, pois que executaram com mestria as varias peças do seu programma, que abaixo publicamos.
Ao director da banda, o sr. Vicente Danenberg, cabe a gloria de ter conseguido vencer todas as difficuldades para levar a banda á perfeição a que tem chegado.
Publicamos em seguida a relação dos cavalheiros que compunham a banda, e aproveitamos o ensejo para agradecer-lhes a fineza de virem tocar no jardim publico de Macau, desejando que perseverem no seu empenho de cultivar uma arte tão util como agradavel.
(O Macaense 3/83, 1. Agosto de 1891, 1-2, 9)

Músicos participantes e rêdes familiares

A relação dos componentes da Banda de Amadores Portugueses de Hong Kong publicada em O Macaense (op.cit.) possibilita o reconhecimento dos instrumentos empregados e contribui à reconstrução de rêdes sociais daqueles que mais contribuiram ao desenvolvimento da prática musical civil em Hong Kong.

Para além do mestre Vicente Danenberg, que desempenhava também o cargo de Presidente da entidade, a relação publicada registra outros membros da sua família como componentes da banda: Antonio, o seu pai, e Augusto, um de seus filhos. Esses, provavelmente sem maior formação musical, participavam como instrumentistas de percussão.

Na lista encontram-se também sobrenomes conhecidos de outras esferas da vida musical. Entre esses, salientam-se o de Remédios, Ozorio, Marques e Collaço. Da família Remédios, por exemplo, conhece-se não apenas o trombonista mencionado, mas sim também senhoras que atuavam como cantoras e pianistas na comunidade portuguesa da Missão. Ao mesmo tempo, a presença do saxofone, executado por Leocadio M. Ozorio, pode ser vista como mais um indicador do cunho progressista que marcou a imagem da banda.

  1. Francisco L. Pereira, 1° clarinete Eb
    Leocadio M. Ozorio, Saxophone
    Ricardo R. Robarts, Basso
    Carlos M. Robarts, 2° cornetim
    Isidoro A. Collaço, 1° cornetim
    Luiz A. Vichy, Solo clarinete Bb
    Marcelino Marques, Euphonio
    Pompilio Marques, 1° clarinete Bb
    Francisco P. Figueredo, Baritono
    José Thomaz Tercio da Silva, 2° saxhorn E
    Carlos J. Hyndamn, 2° clarinete Bb
    Tito A. Collaço, 1° saxhorn Eb
    Carlos E. da Silva, 3° clarinete Bb
    Ernesto Antonio, 3° saxhorn Eb
    Manoel S. Lima, 3° clarinete Bb
    Antonio Danenberg, Bombo
    Augusto C. Danenberg, Caixa
    F. G. Remedios, Trombone
    José Marçal, Prato

    Commissão Diretora
    Presidente, V. Danenberg
    Secretario, Francisco D. Pereira
    Thesoureiro, J.T.T. da Silva
    Vogaes, L. M. Ozorio e M. Marques

Considerando que a grande maioria dos participantes da banda era portuguesa, excluindo-se os dois músicos de sobrenome Robarts, assim como os clarinetistas L. A. Vichy e C. J. Hyndman, pergunta-se a razão do repertório inglês da corporação. Uma razão residia certamente no acesso a partituras e material para instrumentos em casas de Hong Kong e que eram encomendados de casas comerciais em S. Francisco.

O repertório e a coerência do programa inglês da Banda de Amadores Portugueses

O programa apresentado em Macau indica uma organização coerente de conteúdos, uma lógica que considera obras de atualidade popular dos diferentes gêneros e formas, inclusive sugerindo associações com as circunstâncias locais, e que culmina com uma peça que evoca uma das maiores vitórias inglêsas da história recente do Oriente.

Com o seu programa inglês de peças da atualidade, a Banda de Amadores Portugueses de Hongkong demonstrou, em Macau, não apenas a integração músico-cultural dos portugueses na colonia britânica, mas também o seu repertório atualizado, constante de novidades para Macau. Os portugueses de Hong Kong demonstravam assim o espírito progressista da comunidade lusa de Hong Kong.

Nenhum compositor português encontra-se representado no programa, com excessão do autor do Hino da Carta Constitucional, D. Pedro I do Brasil ( IV. de Portugal) (1798-1834) executado como peça de encerramento. Terminar a apresentação com o hino português foi, assim, a homenagem feita a Macau pelos portugueses que viviam em Hong Kong e que ali se apresentavam com novidades de uma programação musical inglêsa.

Nesse sentido, o seu repertório era bastante atual, pois apresenta similaridades com programas conhecidos da época de bandas da Inglaterra, do Canadá, dos Estados Unidos e da Austrália.

A música ao ar livre em parques ingleses e no jardim de São Francisco de Macau

O concerto dos portugueses de Hong Kong em Macau foi aberto com a marcha Horatius, de W. Newton, uma peça que pode ser constatada com frequência em programas de bandas do mundo anglofone da época.

Newton surge como personalidade emblemática da cultura de lazer britânica, tendo sido conhecido e popular regente de bailes e de música para patinação no Regents Park de Londres, além de ser êle próprio apto patinador. Era conhecido também como compositor de música de dança, em particular quadrilhas, que, em versões para piano, publicadas em Londres (W. Paxton), faziam parte de repertório doméstico de diletantes. Com a inclusão de peças de Newton, os portugueses de Hong Kong estabeleceram um elo entre a tradição da música ao ar livre na Inglaterra e o jardim de Macau.

Memória da tradição recreativa de feiras populares da Escócia e da Irlanda

Também testemunho da atualidade do repertório da Banda de Portugueses de Hong Kong foi a inclusão da Abertura The Humours of Donnybroock, de Carl Volti (1848-1919), pseudônimo de Archibald Milligan, compositor nascido em Glasgow.

De família de músicos vinculados à tradição popular escocesa de fiddlers, Volti foi êle próprio executante de instrumentos populares, tendo o seu nome permanecido vinculado à música de conotação céltica. Volti contribuiu com melodias populares para o Kerr's Merry Melodies, publicou albuns de canções populares e escreveu aberturas de conotações patrióticas e nacionais. Entre as suas composições encontram-se várias que sugerem gaitas de foles (Albion Hornpipe, Clutha Hornpipe), e muitas outras que que evocam locais e contextos britânicos, escocêses e irlandeses, tais como Dunbarton Castle, Haggs Castle, Highland Fling ou Inverararay.

Entre essas composições de evocações nacionais irlandesas, a Humours of Donnybrook, designada como overture national, era também difundida nos Estados Unidos, sobretudo em versão para três pianos com acompanhamento de orquestra.

Com essa peça, a banda dos portugueses estabeleceu uma significativa ponte sonora com o mundo cultural irlandês relacionado com a tradição das feiras e, portanto, com o comércio. A peça relembra um tradicional mercado que marcou Dublin até meados do século XIX, dando origem a conhecida balada e a uma melodia de dança irlandesa. Essas peças remoravam a concessão dada à corporação de Dublin pelo rei inglês em 1204 para a realização da feira, fato de importância para o desenvolvimento comercial da cidade e da auto-consciência de seus habitantes. Com o decorrer dos séculos, tornou-se principal ocasião para divertimentos de todo o tipo, adquirindo uma conotação marcadamente popular, marcada por excessos no consumo de bebidas alcoólicas que despertaram vozes que pediam a sua extinção. (Seamus O'Maity, The Humours of Donnybrook: Dublin's Famous Fair and Its Suppression. Collected Poems of James Clarence Mangan (1818-1937, Irish Academic Press 1995).

To Donnybrook steer, all you sons of Parnassus

Poor painters, poor poets, poor newsmen, poor knaves

To see what the fun is that all fun surpasses

The sorrow and sadness of Erin's green slaves

O Donnybrook, jewel, full of mirth is your quiver

Where all flock from Dublin to gape and to stare

At two elegant bridges, without e'er a river

So success to the humours of Donnybrook Fair


A abertura de Carl Volti relacionava-se com a giga popular irlandêsa Humours of Donnybrook Fair, também conhecida sob vários outros nomes, tais como Aonach Domhnach Broc (ou Brocach, e que despertava imagens das alegrias da vida, do amor, do amor à terra irlandesa e ao rio Cree.

Já não mais existindo a tradicional feira, tratava-se de uma expressão de nostalgia do passado que havia marcado a cultura de lazer de Dublin e cuja memória surgia como significativa para a auto-consciência de irlandeses, também e em particular na imigração no Canadá e nos Estados Unidos. De S. Francisco levada para Hong Kong, essa memória foi transmitida nos seus ecos aos portugueses em fase de integração e reorientação de referenciais culturais.

Composições e métodos de músicos de banda atuantes nos Estados Unidos

A peça Polka Our babies (op. 22) executada pelos portugueses de Hong Kong em Macau dirige a atenção a outro significativo contexto no estudo de processos músico-culturais; o do ensino insgtrumental. Essa polca, de 1880, era de autoria do compositor de origem alemã Otto Langey (1851-1922), que, após longos anos de atividades na Inglaterra, transferiu-se para os Estados Unidos em 1889. Atuou no Boston Symphony Bochert Club e, posteriormente foi professor e arranjador em New York. É provável que os muitos métodos práticos para instrumentos de sôpro de Otto Langey (e.o. clarinete, eufônio, flauta, fagote, trombone), tenham sido usados no aprendizado de músicos de Hong Kong.

A peça executada pelos músicos de Hong Kong em Macau pertencia ao repertório da Banda do Segundo Regimento americano, como um programa de concerto no Golden Gate Park de San Francisco documenta (Daily Alta California 39/13048, 4 de dezembro de 1885). Também era conhecida no Canadá, tendo sido executada em Halifax pela St. Patrick's brass band, a 30 de junho de 1884.

Inserção da Banda de Portugueses na esfera britânica da Austrália

Se o programa incluiu quadrilha e polka dos mais renomados compositores do gênero no mundo inglês, esse também foi o caso da valsa, representada pela Waltz Serenade de H.L. D'Arcy Jaxone (†1915). Esse compositor, muito produtivo, ainda pouco estudado, é conhecido sobretudo por suas valsas italianas e a valsa The Sunshine of Paradise Alley.

D'Arcy Jaxone foi também conhecido como compositor de textos de populares canções com música de outros autores como Ciro Pinsuti, Frank L. Moir, Carlo Ducci, May Ostlere, Caroline Lowthian ou Friedrich von Flotow e que são conservadas, entre outras, na Biblioteca Nacional da Austrália.

Também a Abertura Croix de Geneve, de M. Bleger, incluida no programa, era executada no mundo colonial inglês, sendo executada, na época, em Sydney. (The Sydney Morning Herald, 26. April 1890). Bleger foi compositor de populatres peças para banda, tais como Le Coeur et la Main, o galope A toute vapeur, e a quadrilha Au Pied du Mur, sendo conhecido sobretudo como autor de métodos e estudos para instrumentos de metal, em particular trombone (e. o. Nouvelle Methode Complete, 31 Études Brillantes).

Celebrações de feitos do império britânico: a Batalha de Tel el-Kebir (1882)

A última peça do programa, o galope de Kassassin, surge como testemunho expressivo da reorientação cultural através da música dos portugueses de Hong Kong. Tratava-se de composição de um dos mais renomados músicos militares ingleses, o trombonista William Winterbottom (1821-1889).

Winterbottom era autor de composições e arranjos de óperas para banda muito difundidos no mundo inglês e que, com o Kassassin, lembrava um feito militar de significado histórico e simbólico para o mundo colonial britânico: a Batalha de Tel el-Kebir. Essa batalha tinha ocorrido no contexto da guerra anglo-egípcia a 13 de setembro de 1882 entre a armada sob Ahmed Urabi e as forças britânicas e surgia como decisiva para o sucesso do Canal de Suez. Com isso, o programa fazia uma referências às novas rotas, às novas rêdes, às novas possibilidades que se abriam com essa nova reconfiguração geográfico cultural nas relações entre o Extremo Oriente e o Ocidente.

O significado da música de banda em Macau em fins do século XIX

A intensidade da prática da música de banda em Macau e o seu significado para a vida social e cultural da cidade pode ser avaliada a partir de uma referência, de 1891, e que registra a participação do conjunto e de seus músicos individualmente em procissões, em casamentos e enterros, em representações teatrais e bailes.

Essa referência diz respeito à publicação da tabela de honorários de músicos pelo Boletim Oficial e que foi alvo de algumas críticas. Desses dados, toma-se conhecimento que músicos da banda apoiavam orquestras de igrejas em missas solenes e que a própria banda atuavam em missas nupciais. Os dados indicam também o uso de música profana nas igrejas, uma vez que documenta que em casamentos se executavam polcas e valsas. As principais ocasiões de contratação de músicos eram bailes, que, segundo o relator, duravam em Macau até altas horas da madrugada.

Ha muito tempo que se queixam em Macau de que a banda de musica addida á guarda policial de Macau, precisava d'uma tabella por onde se regulassem as gratificações que devem receber os musicos quando são convidados a tocar em actos não officiaes, porque era exagerado o preço que elles exigiam por cada soirée em que tivessem de tocar.
Felizmente, poré, acaba de ser publicada no Boletim official de 19 do corrente a seguinte tabela:
Tabela

  1. Procissão (toda a banda) $20,00
    Casamento na egreja (idem) $20,00
    Enterro (idem) $20,00
    Representação theatral (idem) $30,00

  2. Bailes e soirés dançantes (idem) $40,00
    Mestre $3,50
    Contra-mestre $2,50
    Musico de 1a classe $2,00
    Idem de 2a. classe $1,75
    Idem dee 3a classe $1,50
    Aprendizes $1,00
    Musico de pancada $0,75
    Missa instrumental (conforme o ajuste)

Esta tabella importa um melhoramento de ha muito reclamado, mas ha alguns pontos obscuros que convem ser elucidados.
A taxa de vinte patacas por um casamento na egreja, abrangerá tambem a missa nupcial, ou restringir-se-ha aocasamento celebrado durante a tarde, em que se gastam apenas 10 minutos?
Na primeira hypothese a taxa é rasoavel; mas na segunda é exagerada, porque se pagam $20 só para a execução d'uma polka ou valsa, unica musica que a banda poderá executar no periodo de 10 minutos.
Talvez seria mais completa a tabella, determinando-se uma taxa para o caso de casamento sem missa, e outra para casamento com missa.
O outro ponto que precisa ser esclarecido é o seguinte: qual é o tempo que os musicos terão de tocar n'uma soirée dançante?
Um baile pode muitas vezes terminar á meia noite ou prolongar-se até ás 5 horas da manhã, como de ordinario acontece em Macau: por tanto se se não especificar o tempo que os musicos da guarda policial terão de tocar n'uma noite de baile para receber o que esta fixado na tabella, é certo que elles ficam com o direito de recusar-se a tocar até alta noite.
Estas nossas breves considerações são dictados pelo desejo de evitar futuras queixas.
(O Macaense 3/60, 21 de Fevereiro de 1891, 3-4)

A música de banda no ensino escolar em Macau

Se a prática da banda de música militar e civil foi a escola de muitos músicos que atuaram em outras esferas da vida cultural, a música de banda também teve influência na formação escolar. Um exemplo a ser citado é o da banda da Escola Central de Macau, que já em 1891 se encontrava em condições de realizar uma série de concertos.

Preocupações pela melhoria de nível técnico e atualização de repertórios

Um dos problemas da música de banda de Macau residia na falta de verbas, o que impedia a renovação de instrumentos e, com isso, a melhoria técnica das execuções, assim como a aquisição de novas partituras.

A necessidade de uma melhoria de nível passou a ser sentida após o confronto com a Banda dos Amadores Portugueses de Hong Kong.

Sendo os programas da Filarmônica de Macau sentidos como antiquados em fins do século, quando constavam de dobrados e quadrilhas ainda de repertório proveniente da Índia, e sendo os programas da banda de Hong Kong sobretudo de cunho inglês e americano, sentiu-se a necessidade de composições de autores locais. Uma composição a ser citada é a valsa Saudades de Macau e o galope Luz Brilhante, de C. do Canto e Castro, de 1895.

Um testemunho da necesidade que se sentia de renovação pode ser visto em artigos publicados no Eco Macaense, em 1896, onde se faz referência a cartas de leitores que reclamavam da desafinação da banda regimental. Talvez também tendo em mente o exemplo de Hong Kong, sugere-se que os próprios músicos e aficcionados procurassem meios para o levantamento de fundos, uma vez que o orçamento oficial não podia oferecê-los. Ao contrario do espírito empreendedor que reinava em Hong Kong e que tinha possibilitado o desenvolvimento da Banda de Amadores Portugueses, os músicos de Macau surgem como demasiadamente dependentes de subsídios públicos, ou seja, marcados por uma outra mentalidade.

Acabamos de receber mais um comunicado sobre o assumpto. Desculpe-nos o seu auctor por não publicarmos as suas allegações. A questão está esclarecida.
Está provado que a banda regimental tem tocado com alguma desafinação, porque os instrumentos são velhos e de differentes auctores.
Provou-se tambem que a fazenda provincial não tem verba de orçamento para compra de musicas novas.
Trate-se pois de remediar isto.
Ou peçam ao governo que dê dinheiro para comprar instrumentos novos e musicas novas; ou tratem de promover os fundos necessarios por meio de subscripção; ou lancem um imposto de um avo por cada pessoa que entrar no jardim nos dias de musica. Em breve tempo teremos bons instrumentos e boa musica.
(Eco Macaense, Macau 4/55, 1. Agosto 1897, 2-3)

Repercussões do entusiasmo pela música de banda em Hong Kong: Schamee e Bangkok

Com o apoio de músicos de Hong Kong formaram-se grupos instrumentais em outras localidades do Extremo Oriente. Como exemplo pode ser citada a Banda de Música de Schamee que, em 1900, realizou o seu primeiro concerto. Nesse evento esteve presente o consul britânico, pois teve a finalidade de contribuir à arrecadação de meios a favor dos atingidos pela fome na Índia.

No mesmo ano, 18 dos músicos se uniram para formar, no âmbito da comunidade portuguesa de Bangkok, a Bangkokgh Philarmonic Society.

Entusiasmo pela banda de música, custos e utilidade. O caso do Timor (1901)

A música militar - e as suas extensões civís -, tendo alcançado um grau de intensidade extraordinário em Macau, levantou também questões relativas aos gastos que causavam e a seu sentido e utilidade.

Em 1902, o Ministério da Marinha resolveu criar uma corporação musical em Timor. Os opositores diziam que o Estado precisava, nos seus pontos do Oriente, não de músicos, já tão numerosos e que custavam demasiado aos cofres públicos, mas sim de homens empreendedores e ativos.

Os seus defensores, também na hierarquia militar, argumentavam que a música servia ao estreitamento de laços de camaradagem entre os soldados e contribuia, assim, à manutenção da ordem pública e à conservação da soberania nacional na esfera colonial.

A banda na reconscientização da identidade portuguesa durante a Primeira Guerra

Durante os anos de Guerra, a prática da música militar experimentou uma intensificação com a presença de músicos e grupos vindos em navios militares. Esse fato parece também ter tido influência na intensificação de apresentações musicias ao ar livre. A partir de 1917, os concertos, então levados a efeito pela banda municipal de Macau, voltaram a tocar no Jardim de São Francisco, uma vez que o coreto da Avenida Vasco da Gama já se encontrava, nessa época, em mau estado. (O Progresso, Macau 3/41, 10. junho de 1917, 3)

Com o recrudescimento de sentimentos patrióticos, sentiu-se a necessidade de que as gerações mais jovens de famílias que viviam em Hong Kong não perdessem o domínio do português. Para isso, criou-se uma escola decentralizada, que oferecia aulas em várias instituições da comunidade. Na ocasião da sua inauguração, oportunidade que reuniu esforços de portugueses de Cantão, de Hong Kong e de Macau, a Banda de Portugueses de Hong Kong, agora já com o nome de Sociedade Filarmônica, ofereceu um concerto, em maio de 1917.

A Banda da Sociedade Philarmonica de Hongkong, composta de portugueses, executou magistralmente algumas peças escolhidas do seu vasto repertorio e muito contribuiu para o brilhantismo da festa. Os nossos compatricios de Cantão e s. exa. o sr. Bispo de Macau mandaram telegramas de felicitação.
Por ultimo falou o sr. Leo Almada e Castro, que, como presidente da Associação de Socorros Mutuos, instou com todos que angariassem mais membros para a Associação, pedindo em especial ás senhoras que envidassem os seus esforços para aquele fim.
O comicio terminou cerca das 8 horas de noite
A escola funciona no Colegio de S. José, no Club de Recreio de Kowloon e no Club Lusitano, tendo estas duas últimas instituições franquado as suas salas a todos que em Hongkong desejassem estuaar a sua lingua materna. A escola já conta acima de 70 alunos e o numero vai augmentando de dia a dia.
(O Progresso, Macau 3/39, 27.5.1917, 5)

Significado para estudos de processos culturais entre a China e o Ocidente

A China apresenta-se hoje como crescente potência econômica, política e militar, e o observador ocidental surpreende-se, em Beijing, em constatar e dificilmente poder compreender a concomitância de processos capitalistas, modos de vida universitária e cultural que lembram situações marcadas pelo liberalismo econômico e concepções e formas comunistas de govêrno.

As cerimônias e comemorações oficiais, e sobretudo as paradas militares manifestam formas de representação conhecidas da história e do presente de muitos países do Ocidente, sobretudo daqueles de orientação política autoritária. Nessas  ocasiões, a música militar desempenha fundamental papel, trata-se, também aqui, não de tradições musicais chinesas, mas de música realizada com instrumentos, práticas de execução e mesmo repertórios ocidentais.

Um pesquisador chinês ou integrado na sociedade chinesa pergunta-se a respeito das origens e do desenvolvimento dessa prática musical de cunho ocidental na China.  Sob determinados aspectos, o pesquisador confronta-se com problemas similares àqueles que levantam no Brasil - e em muitos outros países - relativamente à pesquisa da música militar e da prática de bandas civís.

Por situar-se entre as esferas culturais definidas como erudita e popular, não foi considerada com mais cuidado na história da música convencional ou pelas disciplinas voltadas à cultura popular e ao folclore. Somente a renovação de perspectivas através da reflexão crítica de categorizações do objeto segundo erudito, cultural e folclórico e a reorientação das atenções a processos abriu novas possibilidades para o reconhecimento de seu significado para a história social e cultural. 

Nessa orientação, despertou-se já há muito a consciência do significado das bandas de música para a memória e a identidade de localidades e regiões. Para além de possíveis delimitações saudosistas e passadistas em preocupações voltadas ao cultivo da memória e do resgate histórico-cultural, esse direcionamento da pesquisa dirige a atenção a questões que dizem respeito à análise do presente a serviço do futuro na medida que considera as bandas de música à luz do debate teórico-cultural mais amplo, por exemplo relativo a mecanismos de transformação cultural e suas inserções políticas.

Esse olhar dirigido a processos, mecanismos, estruturas e à análise de seus sentidos leva ao reconhecimento da extrapolação de delimitações locais, regionais e mesmo nacionais na pesquisa. Se o levantamento de fontes, nomes e repertórios dos respectivos contextos representa pressupostos necessários para os estudos culturais específicos de comunidades e regiões e fundamentos para a pesquisa no seu todo, a análise adequada dos dados e o reconhecimento de suas inserções em desenvolvimentos históricos apenas pode ser feita a partir da consideração de contextos mais amplos.

A falta de distância e de conhecimento de situações da prática musical em outros países e continentes levou nas mais diversas nações a que se considerasse certas formas, gêneros e suas transformações por demais indiferenciadamente como expressões peculiares e nacionais. A constatação, com o crescente conhecimento de fatos, que esse não foi o caso, levou ao reconhecimento da necessidade de cooperação internacional para o intercâmbio de dados e para o estudo de caminhos de difusão de práticas, repertórios e formas de expressão para além e através de fronteiras nacionais, um debate, no qual o Brasil vem tomando já há muito parte.

Essa discussão relativa ao estudo da música militar e de bandas de música civis contribuiu de forma significativa ao reconhecimento da necessária renovação da musicologia no seu todo, não apenas por chamar a atenção para a necessidade de um direcionamento da atenção a processos músico-culturais - e não apenas á esfera da música erudita ou a obras de arte - mas sim também a rêdes sociais e culturais em contextos internacionais.

O intento de estudar-se processos músico-culturais em contextos globais surge por vezes como o de reconstrução de um mosaico, do qual muitas peças faltam; essa dificuldade é ainda maior por não se tratar de um mosaico estático, mas sim de complexos relacionamentos de transmissões, recepções e transformações. A pesquisa no seu todo deve ser aqui considerada por um pesquisador chinês e, ao mesmo tempo, a consideração de desenvolvimentos chineses surgem como de relevância para a área de estudos em geral. Serve, em especial, para esclarecer aspectos que dizem respeito a estudos culturais referentes ao Brasil.

Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Migrações a centros de comércio e mudanças de práticas tradicionais. Das cavalgadas do Divino de zonas rurais inglesas à música de banda em Manchester e na integração de portugueses no universo britânico de Hong Kong". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 137/15 (2012:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Hong-Kong-banda-de-portugueses.html





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