Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Cidade Imperial, Beijing. Foto A.A.Bispo©

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Cidade Imperial, Beijing. Foto A.A.Bispo©

Cidade Imperial, Beijing. Foto A.A.Bispo©

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 137/5 (2012:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2889


A.B.E.


A música na influenciação mental da China
Eunucos como veículos de missionários
em inveracidade de relações humanas: fins justificam meios?



Ciclo de estudos em Peking/Beijing e Manchester
no ano da participação da China como nação convidada na Feira de Hannover 2012
pelos 500 anos de contatos entre chineses e portugueses
em atualização de trabalhos da A.B.E. em Hong Kong e Macau
à época da transferência de soberanias européias à China (1996). Cidade Proibida, Beijing/Peking

 

Os ciclos de estudos realizados em Peking/Beijing e Manchester no corrente ano foram motivados pela presença especial da China na Feira de Hannover 2012, um evento que trouxe mais uma vez à consciência o relevante papel chinês no mundo científico, tecnológico e econômico da atualidade.

Ao mesmo tempo, esse evento chamou novamente a atenção à necessidade de análises culturais de relações entre a China e o Ocidente, para o entendimento mútuo e para o tratamento de questões relacionadas com Direitos Humanos e Ética. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/China-Brasil.html)

Esses estudos puderam basear-se em trabalhos anteriores, dos quais um marco significativo foi a realização de pesquisas e encontros do Instituto de Estudos da Cultura Musical do Mundo de Língua Portuguesa (I.S.M.P.S.) em Hong Kong e Macau, em 1996, por motivo da transferência de soberanias desses territórios à China.

Essa iniciativa deu prosseguimento a estudos que já tinham há muito demonstrado o papel relevante desempenhado pela música na história das relações entre a China e o Ocidente, o que foi um motivo significativo dos esforços que levaram à institucionalização do I.S.M.P.S. no Ano Europeu da Música de 1985.

Em sessão na Faculdade de Filosofia da Universidade de Colonia, em 1997, o editor desta revista salientou que as questões que aqui se levantam não representam apenas singularidades históricas, curiosidades sem maior relevância para uma atualidade marcada pela emergência da China no cenário internacional. ("Die historische Rolle der Musik in der Begegnung von Abendland und China“, Brasil/Europa & Musicologia, Colonia 1999, 357-366)

Pressuposto para o desenvolvimento de estudos desse papel relevante é que sejam conduzidos de forma refletida e em disposição de auto-crítica cultural, uma vez que uso da música em procedimentos do passado não deixa de revelar aspectos questionáveis.

Em 2003, esses aspectos questionáveis de procedimentos de missionários na China foram discutidos em colóquio na Universidade de Bonn sob a perspectiva dos Gender Studies.

Voltaram a ser considerados em 2010, quando da passagem dos 400 anos de morte de Mattheo Ricci S.J., missionário que surge, ao lado de Johann Adam Schall von Bell S.J. (1592-1666) (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Schall-von-Bell.html) como um dos principais nomes que devem ser considerados sob a perspectiva do estudo de procedimentos ocidentais na história das relações da Europa com a China. Em Peking/Beijing, em 2012, esses problemas foram relembrados em visita simbólica à sepultura de Mattheo Ricci S.J.

A música em encontros culturais espontâneos e em procedimentos dirigidos

Para compreender-se os problemas que aqui se levantam torna-se necessário considerar a situação dos estudos relativos 1) a processos informais e 2) procedimentos dirigidos nos encontros e interações culturais no âmbito das relações entre a China e o Ocidente, tratados mais especificamente em outros textos desta edição. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Budismo-aplicado.html; http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Confucionismo.html)

Em todos êles tem-se constatado e analisado o significado de intercomunicações de imagens relacionadas com a virgem, mãe d'água e rainha dos céus da tradição vigente sobretudo no meio comercial-marítimo do litoral da China e aquelas do culto mariano da Imaculada Conceição, da Assunção e do Rosário dos portugueses.

1) Esse caminho do estabelecimento de relações culturais sino-ocidentais, que inicialmente processou-se de forma não-dirigida e refletida, por assim dizer espontanea em esfera popular da cultura, foi também aquele da primeira fase dos procedimentos dirigidos de entrada na China pelo missionário italiano Mattheo Ricci, o do Budismo aplicado. Aqui, os chineses viram em Nossa Senhora da Misericórdia, correspondente à tradição da terra natal de Ricci, Macerata, uma forma de expressão da sua virgem do mar e rainha dos céus como Divindade da Compaixão Universal, aquela que escuta a voz das criaturas e as atende. Ainda que venerada em forma feminina, as concepções remontam a uma dimensão do Divino acima de oposições e polaridades.

2) Numa segunda fase do desenvolvimento do método de ação na China, constatando a inconveniência de uma introdução na esfera budista para a integração na sociedade chinesa com o objetivo de alcance de situações de influência e poder, Ricci passou a se apresentar como erudito, procurando relações de amizade a moldes acadêmicos com chineses empenhados na procura de saber. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Confucionismo.html)

Para tal, os missionários contavam com a formação obtida na Europa segundo o sistema das sete artes liberais, nas quais as disciplinas  relacionadas com o número constituiam o quadrivium - aritmética, geometria, astronomia e música -, e as verbais o trivium - gramática, retórica, dialética.

As primeiras relacionavam-se em antiga tradição filosófico-natural com os elementos nas suas diversas associações no edifício de concepções do mundo e do homem. Assim como essas concepções e associações, as disciplinas quadriviais relacionavam-se entre si, de modo que os missionários podiam passar como matemáticos, astrônomos e músicos, demonstrando proporções na música e na astronomia, implicações musicais na explicação dos céus e do mundo ou celestiais na música.

A música, correspondendo nesse complexo de associações à água, fluindo como esta, assume dimensões cósmicas e humanas, relacionando-se com a imagem do mar em que o homem navega na sua vida e que é repleto de perigos e, portanto, com o conjunto de concepções que é próprio daquele da tradição da virgem do mar e rainha dos céus.

A ordenação segundo o número desse fluxo no conjunto quadrivial assumia, assim relevância transcendente, e para isso oferecia-se aos missionários o tratamento privilegiado da teoria musical, por exemplo da divisão da oitava em 12, de configurações escalares segundo o número 7, de tetracordes segundo o número 4, das diferentes proporções intervalares com as suas relações com consonâncias e dissonâncias.

Os instrumentos de teclado permitiam a elucidação desses rudimentos teórico-musicais de forma particularmente compreensível e aliciante, transformando-se em veículo privilegiado para os missionários no seu procedimento segundo o caminho do conhecimento, reconhecido como necessário devido à organização da sociedade segundo a tradição confuciana.

Eunucos como mediadores na infiltração e influenciação cultural da esfera imperial

O convívio acadêmico com eruditos apenas possibilitavam até determinado ponto a entrada em esferas mais elevadas do poder.

Diferentemente dos eruditos e mandarins, os eunucos do Palácio transitavam no espaço mais recôndito da vida imperial, mantendo contato com o ambiente feminino das concubinas, tendo assim acesso mais próximo ao Imperador.

Assim, o convívio acadêmico com eruditos representou apenas um passo na estrategia de infiltração em círculos influentes da sociedade chinesa; o caminho para o seu cimo era aquele através dos eunucos. Estes, homens de sensibilidade, interessados na música e nas artes, também por vezes musicistas, conviviam nos círculos reservados das concubinas imperiais, podendo influenciá-las e, estas, o Imperador.

Em 1601, Ricci presenteou a Côrte Imperial com um clavicórdio. Com esse presente, deu continuidade a uma bem elaborada estrategia. Já um ano antes havia feito que o seu companheiro aprendesse a afinar e a tocar clavicórdio com um jesuíta com conhecimentos musicais. O plano teve sucesso, pois logo o missionário foi procurado por um eunuco que se sentia fascinado pelo instrumento e queria aprendê-lo.

Esse eunuco era membro do grupo que tocava instrumentos de sêda perante o imperador. Na escala de valores dos instrumentos - de madeira, bambú, terra, pedra e metal, os de seda ocupavam a posição mais elevada.

O lendário Fou-hi, êle próprio teria sido, segundo a narrativa, o inventor desses instrumentos no ano 2637 A.C.. Os executantes desse tipo de instrumentos eram vistos como matemáticos, ou seja, eruditos em questões teórico-especulativas referentes à música. A própria configuração desses instrumentos refletiam uma doutrina cosmológica de natureza simbólico-numerológica. Com instrumentos de seda podia-se representar Céu e Terra, os 8 ventos, as 4 estações, os 5 planetas e os 5 elementos. Também o seu comprimento de 7 pés era visto como imagem de leis universais. Através do som suave desses instrumentos, o coração devia ser regulado, ou seja, posto em sintonia com a harmonia do cosmo, os homens civilizados e levados à obediência para com as leis; o artesanato e as artes eram fomentados.

Sob esse pano de fundo, compreende-se que os eunucos que passaram a aprender clavicórdio tratassem o instrumento com suma consideração, como se fosse um ser com alma, como os missionários constataram com admiração.

Cantilenas do clavicordio

Com oito trechos musicais, que entraram nos registros como Cantilenas del Clavicordo, os missionários procuraram exercer influência indireta na esfera reservada do Palácio Imperial. Esses discípulos ocuparam-se um mês com o instrumento. Nesse espaço de tempo, apenas puderam aprender algumas peças. (Xiqin quyi bazhang, in Tianxue chuhan I, 283-291, cit.Jonathan Spence, O Palácio da Memória de Matteo Ricci: A História de uma viagem da Europa da Contra-Reforma à China da Dinastia Ming, trad. D. Bottmann, São Paulo: Schwarcz 1986, 212-215)

As peças tinham textos em chinês, de modo que podiam transmitir imagens e idéias. É provável que, melodicamente, procurassem corresponder estreitamente ao texto. Nesse caso, Ricci estaria a par das tendências teóricas da época na Europa. Basta aqui lembrar que Nicolo Vicentino, em 1555, no seu tratado, considera um arquicembalo que estaria em condições de corresponder a melodias com textos em alemão, francês, espanhol, húngaro e turco.

Os textos dessas Cantilenas foi tirado por Ricci de escritos de autores antigos. As palavras decantavam o anelo do coração humano às alturas, o que a música poderia fazer. Como essas noções correspondiam àquelas da tradição confuciana, foram aceitas com sucesso; os seus textos foram melhor elaborados por eruditos chineses e impressos em letras chinesas e latinas.

Apesar de toda a sua concordância com idéias confucianas, os textos continham mensagens cristãs. Elas procuravam salientar que a Graça divina preenche o mundo de forma mais completa do que a harmonia dos instrumentos faria no espaço. Por detrás da harmonia que se manifesta no mundo, o Homem deveria dirigir a sua atenção para o Invisível oculto e o Inaudível. Assim, um simples concordar do modo de vida e dos sentidos segundo o visível não era suficiente. .

Tradição pastoril da cultura cristã de fundamentação humanística

Na segunda Cantilena de Ricci, um canto pastoril, essas concepções são expressas de forma significativa: a serenidade do coração não é alcançada se o Homem dirigir a sua atenção às aparências do mundo. Êle deve perceber o sentido oculto de tudo, o que apenas pode ser encontrado no seu íntimo. O Homem encontra a sua felicidade à medida em que traz o seu coração dentro de si e não no mundo exterior. (J. Spence, op.cit. 213)

Com essa Cantilena, Ricci introduz no Cidade Proibida concepções do bucolismo e do idílio pastoril conhecidos do Ocidente sobretudo da época do ciclo do Advento e do Natal e inseridos na tradição humanística. Assim agindo, transmite também o contexto de sentidos que permite que se compreenda essas imagens, ou seja, o do nascimento do Logos no passado na humanidade carnal.

Nessas Cantilenas, Ricci transmite a mensagem espiritual não através de argumentos da razão, mas sim através de expressiva linguagem de imagens. Também no emprêgo da música utilizava-se sobretudo do método mnemônico usado também por outros jesuítas. Tratava-se de um desenvolvimento do pensamento em imagens, do olhar interno da imaginação, como era procurado nos Exercícios dos Jesuítas.

Esses pensamentos correspondiam também aos ensinamentos da tradição confuciana, como transmitidos por exemplo no livro de Mencius (veja http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Primado-do-Carater.html).

Questionabilidade de procedimentos: inveracidade nas relações humanas

O aspecto questionável desse procedimento reside no fato de servir-se de eunucos sem que os missionários tivessem exposto os seus intentos, sugerindo uma amizade que não era certamente sincera.

Mesmo não sendo necessariamente homosexuais, os eunucos estavam inseridos em uma cultura na qual a presença destes era aceita e as suas contribuições à sociedade e à cultura valorizadas.

Os missionários procuraram esconder dos chineses que, na mesma época, nas Filipinas, os cristãos assassinavam homosexuais, queimando-os vivos. Esse procedimento era também comum em outras regiões do mundo, onde os cristãos - como na América - faziam com que cães bravos estraçalhassem em vida a indígenas homosexuais.

Mesmo evitando por motivos estratégicos expor o real procedimento dos cristãos em outras regiões do mundo, Ricci procurou influenciar os chineses para a adoção de uma atitude negativa para com homosexuais através de imagens. Assim, utilizou-se de uma imagem da destruição de Sodoma e Gomorra para transmitir aos eruditos chineses as posições católicas. (J. Spence, "A Terceira gravura: Os homens de Sodoma", op.cit. 216 ss.)


grupo de trabalho sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "A música na influenciação mental da China. Eunucos como veículos de missionários
em inveracidade de relações humanas: fins justificam meios?". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 137/5 (2012:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Eunucos-na-China.html




  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


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  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.