Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Monumento a Chopin, Manchester. A.A.Bispo©

Monumento a Chopin, Manchester. A.A.Bispo©

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City Hall, Manchester.A.A.Bispo©

City Hall, Manchester.A.A.Bispo©

City Hall, Manchester.A.A.Bispo©

City Hall, Manchester.A.A.Bispo©

City Hall, Manchester.A.A.Bispo©

City Hall, Manchester.A.A.Bispo©


















Cidade Proibida, Peking.A.A.Bispo©

Cidade Proibida, Peking.A.A.Bispo©

Cidade Proibida, Peking.A.A.Bispo©

Cidade Proibida, Peking.A.A.Bispo©


Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 137/14 (2012:3)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2898


A.B.E.



Heroísmo e sentimento, patriotismo e internacionalidade: da Polonia ao mundo
Chopin em Manchester e na China e o acariciar teclas de Anton de Kontski (1817-1899)
O Despertar do Leão e a Marcha a Camões


Ciclo de estudos em Peking/Beijing e Manchester
no ano da participação da China como nação convidada na Feira de Hannover 2012
pelos 500 anos da presença portuguesa na China
em atualização de trabalhos da A.B.E. em Hong Kong e Macau
à época da transferência de soberanias européias à China (1996). Monumento a Chopin em Manchester

 

Com a participação especial da China na Feira de Hannover 2012, evento de significado mundial quanto a inovações tecnológicas, questões relativas às relações entre a China e o Ocidente ganharam em renovada atualidade.

O reconhecimento da necessidade de estudos de processos histórico-culturais em contextos globais para a compreensão de desenvolvimentos sino-europeus do presente não é recente, tendo levado a trabalhos do I.S.M.P.S./A.B.E. em Hong Kong e Macau em 1996, por motivo da transferência de soberanias européias desses territórios para a China.

Em 2012, as atenções foram dirigidas sobretudo para elos entre comércio, desenvolvimento técnico-industrial e cultura na história das relações sino-européias. Para considerar algumas das questões que aqui se levantam, realizaram-se ciclos de estudos não só em Peking/Beijing como também em Manchester, cidade que possui uma das mais vitais comunidades chinesas do Ocidente e centro por excelência da história e dos estudos da Revolução Industrial, do comércio mundial, do Liberalismo econômico e de movimentos trabalhistas e político-sociais (veja Tema em Debate).

Há um aspecto à primeira vista surpreendente que vincula Manchester à China: o culto à F. Chopin (1810-1849).

Monumento a Chopin, Manchester.A.A.Bispo©

Monumento a Chopin, Manchester.A.A.Bispo©
Culto a Chopin em Manchester e na China

Manchester é uma das cidades do mundo - entre elas o Rio de Janeiro - que possui um monumento a Chopin. Se a estátua na Praia Vermelha apresenta Chopin antes em atitude de introspecção, a de Manchester revela, no coração comercial de Manchester, em conjunto plástico teatral, referências revolucionárias e a admiração feminina da música de Chopin.

Obra do escultor polonês Robert Sobocinski, esse monumento, o maior fora da Polonia, lembra a revolta de 1831 dos poloneses contra o Império Russo. Na sua inauguração, no 16 de setembro de 2011, marcando o período da presidência polonesa da União Européia, o presidente da Comissão de Migração e da Diáspora Polonesa do Senado da Polonia salientou o significado do monumento a Chopin em Manchester como cidade que possui considerável parcela populacional de imigrantes poloneses.

A Sociedade do Patrimônio Polonês (Polish Heritage Society PHS) da Grã-Bretanha apoiou o projeto, que coroou as comemorações do Bi-Centenário de Chopin de 2010. As solenidades foram encerradas com um recitais de obras de Chopin pelo pianista Andrew Wilde no Town Hall de Manchester.

Chopin apresentou-se no Gentlemen's Concert Hall de Manchester, no contexto de sua estadia na Grã-Bretanha no dia 28 de agosto de 1848. Como convidado de Adolf Salis Schwabe (1800-1853), judeu alemão converso ao Unitarismo, homem de negócios de posses, vulto do Liberalismo, presidente da Manchester School of Free Traders, residiu na Crumpsall House e, embora em debilitado estado de saúde, tocou para um público extraordinariamente numeroso de 1200 ouvintes.

O Bi-Centenário de Chopin de 2010 foi comemorado na China com encenações e concertos que revelaram a fascinação que a sua obra desperta na juventude musical chinesa e as suas conotações político-culturais.

Esse fato adquire significado revelante para estudos culturais do presente, uma vez que testemunha profundas transformações político-culturais. Muitos pianistas chineses destacaram-se no passado como intérpretes de Chopin,  entre êles Fu Cong, vencedor de Concurso Chopin na Polonia, em 1955, assim como a pianista Gu Shengying, também convidada para apresentar-se na Polonia, em 1958, artistas que sofreram com perseguições á época da Revolução Cultural.

Hoje, vários jovens pianistas chineses projetam-se internacionalmente como intérpretes de Chopin, entre êles Lang Lang, Li Yundi, vencedor do Concurso Internacional Chopin de Varsóvia do ano 2000, e o menino prodígio Niu Niu.

A popularidade de Chopin vem de encontro ao interesse pelo piano nas famílias em ascensão econômica na China, instrumento que passou a ser indicativo de status social. A China transformou-se em país que concorre no mercado internacional da construção de pianos e a música de Chopin encontra-se constantemente presente na vida quotidiana de Beijing, sendo usada para fundos sonoros de casas comerciais e para sinais de celulares.

Em 2007, erigiu-se, em Shanghai, um monumento a Chopin que, com sete metros de altura, é o mais alto do mundo. Chopin esteve no centro das atenções no pavilhão da Polonia na Exposição Mundial de 2010 em Shanghai.

Tem-se procurado explicar o fenômeno do entusiasmo por Chopin na China sob diversas perspectivas. Uma delas seria o da atualidade para a China de conotações político-culturais e de estados de espírito relacionados com Chopin e sua obra, salientando-se campos de tensão marcados por patriotismo e sentimentos nacionais, cosmopolitismo e globalização, ímpetos revolucionários e cultivo de valores de sensibilidade, de suavidade e melancolia. Para outros, a popularidade de Chopin seria um resultado do desenvolvimento da fabricação de pianos e da situação social criada por família com um só filho e que passa a ser alvo dos impulsos de ascensão de seus pais.

Chopinofania, Chopinística e Chopinologia sob a perspectiva dos estudos euro-brasileiros

A análise do fenômeno da difusão da obra de Chopin e do fascínio que desperta a sua personalidade na China não é sem significado para o Brasil, país há muito tem-se salientado a presença de Chopin no passado e no presente brasileiro, demonstrado no ensino do piano, no repertório pianístico e mesmo nas suas repercussões na criação musical.

Já em 1942, em aula inaugural de História da Música no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, Mário de Andrade tratou o tema da "Atualidade de Chopin" no contexto político da época, expressando a sua opinião de que a os "os prantos e a revolta de Chopin se universalizaram simbolicamente num sentimento unânime e de todos, o amor da terra, a desgraça maldita que causam as opressões." Nisso residiria a atualidade simbólica de Chopin e nisso êle seria sempre atual. ("Atualidade de Chopin", O Baile das Quatro Artes, São Paulo: Martins, 1963, 137-165,165).

Para retomar essas reflexões sob perspectivas mais recentes do pensamento teórico em contextos internacionais, o editor desta revista orientou, em 2003, na Universidade de Bonn, um colóquio que considerou proposições dos estudos relativos a Chopin e que são por vezes diferenciadas sob os termos Chopinofanismo, Chopinística e Chopinologia. (M. Tomaszewski, Frédéric Chopin und seine Zeit, Laaber, 1999, 288 ss.)

Nesse colóquio, salientou-se o significado dos estudos referentes a Chopin para o desenvolvimento de uma musicologia histórica de orientação cultural e, sobretudo, para a internacionalização dos estudos histórico-musicais.

Os estudos assim dirigidos, porém, não podem limitar-se a constatações de difusões e recepções. O intento de renovação dos estudos histórico-musicais através de sua orientação teórico-cultural pressupõe o desenvolvimento de estudos de processos culturais em geral.

Essa perspectiva permite superar em parte a extrema personalização que marca os estudos e os empreendimentos, dirigindo a atenção para contextos e processos culturais nos quais Chopin se inseriu, abrindo novas perspectivas também para o tratamento de sua obra.

É esse caminho que permite analisar desenvolvimentos mais amplos e tratar adequadamente da ação e da obra de outras personalidades que foram ofuscadas pelo culto a Chopin e que desempenharam por vezes  papel significativo na história músico-cultural de muitas regiões do mundo.

Sob essa perspectiva, pode-se reconhecer o significado de um músico conterrâneo e contemporâneo de Chopin, hoje caído no esquecimento, e que atuou como virtuose-compositor no mundo extra-europeu, visitando a China e outras regiões orientais e do Pacífico apenas no fim de sua vida: Anton de Kontski.

Anton de Kontski (1817-1899): um pianista celebrado caído no esquecimento

Nascido em Cracóvia, Galícia, Anton de Kontski provinha de família marcada pelo cultivo da música. Os seus irmãos foram músicos de significado, salientando-se Apollinarius (1825-1879), violinista de renome e professor, aluno de Niccolò Paganini (1782-1840), fundador de Escola de Música de Varsóvia, que também se apresentava em companhia do seu irmão Stanislaus (*1820) professor em Paris, por vezes também de sua irmã, a pianista Eugenie. Outro seu irmã, Karol (1815-1867), também era violinista e compositor, atuante na Opéra Comique em Paris.

Tendo estudado com o pianista e compositor irlandês John Field (1782-1837) e em Viena, Anton de Kontski possuia estreitos elos na sua formação com a tradição de Muzio Clementi (1752-1832) e com a esfera musical britânica. Seguindo o seu professor, De Kontski tornou-se um cultor de noturnos, o que também se expressou na sua obra (p.e. Myosotis, Nocturne for piano, op. 225).

De Kontski unia em si a cultura musical do Leste europeu, em particular da Polonia, profundamente influenciada pela França, e aquela das grandes cidades da Inglaterra, de Paris e Berlin. Afirmava ter sido o único discípulo vivo de L. v. Beethoven (1770-1827), único capaz de executar as suas obras como o compositor as executava, o que demonstra os seus vínculos com a cultura musical alemã, passando a ser considerado na esfera britânica como músico alemão. Ao mesmo tempo, os elos familiares e de sua vida com Paris eram tão estreitos que também passou a ser conhecido como Chevalier Antoine de Kontski, nome com que se apresentou fora da Europa. Viveu durante vários anos em Londres, transferindo-se depois para os Estados Unidos.

Representante do virtuosismo pianístico de sua época, também compôs, tendo sido a sua obra op.1 significativamente uma ária variada dedicada a Paganini.

De Kontski viveu entre 1851 e 1854 em Berlin, sendo apreciado pelo rei da Prússia Wilhelm IV (1795-1861). Quando de sua estadia em Berlin, em fevereiro de 1851, procurou ir a Weimar para fazer uma visita a F. Liszt (1811-1886) (Briefe hervorragender Zeitgenossen an Franz Liszt. Band I. 1824-1854 I, hg. von La Mara: Adamant Media Corporation I, Elibron Classics, 2003). Wilhelm IV. soberano deu ordens ao diretor geral da música do Corpo da Guarda, Wilhelm Wieprecht, para realizar uma elaboração de composição de de Kontski para banda militar, a Marcha da Armada, em 1853 (Berlin: Schlesinger). A lembrança do nome de De Kontski no presente prende-se em grande parte a essa composição e ao nome de Wilhelm IV. Recebeu do rei a medailha de ouro por méritos artísticos.

Desenvolvendo intensa atividade de composição em Berlim, onde as suas obras foram publicadas pela casa M. Trautwein. De Kontski procurou nelas vir de encontro ao gosto e às possibilidades técnícas de amadores, criando peças brilhantes e não muito difíceis, que, em poucos meses exigiram ser reeditadas.  Para difundí-las ainda mais, procurou publicá-las em Paris.

O sucesso extraordinário de Anton de Kontski no Leste da Europa na década de 50 é documentado pelo Neue Berliner Musikzeitung. Toma-se conhecimento que em 1853, após uma série de oito concertos brilhantes em Varsóvia, onde as suas composições clássicas e românticas foram aplaudidas da forma mais entusiástica, De Kontski viajou para Kiew, passando por Lublin e Dubuo, sendo acolhido de forma triunfal na Ucrânia. Apresentou-se ali com o seu irmão no auditório da Universidade, um concerto que teve um público extraordinariamente numeroso de 20.000 pessoas. Nunca houvera antes um espetáculo tão concorrido e tão extraordinariamente bem acolhido em  Kiew, sendo os irmãos chamados mais do que vinte vezes ao palco. Da Ucrânia, De Kontski partiu para S. Petersburg (op.cit. VII, 1853, 79).

A extraordinária popularidade de De Kontski no Leste Europeu levou-o a estabelecer-se em S. Petersburg, ali fundando, em 1857, uma sociedade para a execução de música clássica. Procurou, na Rússia, dar continuidade à sua missão de manter a uma tradição remontante a Beethoven.

Em 1867, transferiu-se para Londres. Indício de seus elos com a maçonaria oferece um comentário publicado no magazine dos maçons de 1870, onde o seu estilo é considerado como essencialmente de cunho germânico e didático, severo e erudito, ainda que apresentando efeitos originais, entre êles aquele da "ondulação melódica". Esse efeito era derivado possivelmente da técnica de deslizar dedos nas teclas, o seu "acariciar".

De Kontski‘s style is essentially didactic and Germanesque, but at the same time he is not above creating very fine effects with very simple means. Amazingly startling and original, the effect produced in the undulating melody is very remarkabel, N. de Kontski‘s style of playing is essentially severe and learned. The music is never tritled with, never cut up." The Freamasons‘ quarterly XXII, 1870.

Essa menção ao estilo didático de De Kontski pode ser entendida como indício de sua orientação acadêmica, o que se manifestava também na sua composição, onde se encontram exemplos de peças escritas em estilo antigo (por ex. Minuet pour le Piano, dedicado à condessa de Yonage Doria, opus 312, Londres: Boosey s/d)

Em Londres viveu à época da Guerra Franco-Prussiana de 1870/71, tendo escrito uma fantasia militar de título Echo de la Guerra (Londres: Chappel, 1870). A Guerra franco-prussiana marcou o florescimento da música militar na Grã- Bretanha e a presença de sugestões militares e heróicas na obra composicional de De Kontski. Esse aspecto de sua criação artística foi fomentado pelo concurso de composição musical e de arranjos ocorrido em 1871 para os concertos Promenade no Alhambra do Conventry Garden. Para esse concurso, compositores de todas as nações foram convidados para que apresentassem uma grande Fantasia original para orquestra, coro e banda militar. Das quatro peças selecionadas de 40 obras apresentadas, de Luigi Arditi (1822-1903), Arthur Sullivan (1842-1900), Sir Julius Benedict (1804-1885),  Fred Godfrey (1837-1882) - mestre da Guarda Coldstream - e John Smith (1750-1836) - mestre da Royal Artillery-, venceu A Soldier's Dream, de A. Kontski.

De suas composições de maior envergadura, as obras mais mencionadas de De Kontski foram a ópera Marcelo (1880) e a opereta Les deux distrais (1872), baseado na obra Die Zerstreuten de August Friedrich Ferdinand von Kotzebue (1761-1819), assim como Anastácia (1882).

Reveil du Lion, A. de Kontski. Arquivo ISMPS/ABE
De Kontski na América

A atuação de De Kontski no continente americano não tem sido estudada com a atenção que merece. Dos dados esparsos que se conhecem pode-se avaliar a popularidade de seu nome e de suas composições em cidades norte-americanas.

Sabe-se que, na Califórnia a sua peça "O despertar do Leão" (Das Erwachen des Löwen, Reveil du Lion, Caprice heroique , Braunschweig: Henry Litolff; Awakening of the lion, New York: Carl Fischer, 1884). foi particularmente apreciada, o mesmo valendo para a sua Dance des Sorcières.

"O despertar do Leão" de De Kontski parece representar, no repertório de salão, um ímpeto heróico remontante nos seus fundamentos à revolta polonesa de 1815 contra a soberania russa e intensificado com as revoltas de 1830 na França. Tendo a Rússia respondido com violência, o ímpeto patriótico despertou em vários países da Europa um sentimento de simpatia para com a Polonia.

Em New York, onde viveu desde 1883, escreveu a ópera Le sultan de Zanzibar, em 1885/6, que, em elaborações reduzidas para piano, também passou a ser uma das composições mais conhecidas de De Kontski. O título dessa peça indica a atualidade dos interesses voltados a Zanzibar nessa época.  O sultanato, ampliado até o lago de Tanganica, tornava-se alvo de conflito com a sociedade alemã da África Oriental que, à época da composição, adquiria direitos no continente. Já antes da Conferência da África, os inglêses, assentados em Zanzibar, tinham obrigado ao sultão Barghash ibn Sa'id em 1873 a por término ao comércio de escravos; este, porém, teve continuidade, desenvolvendo-se um mercado clandestino de escravos até 1879. O ímpeto patriótico e heróico do polonês De Kontski vinculou-se, assim, aos anelos anti-escravagistas.

Em Los Angeles publicou-se a sua composição Polish Patrol op. 380, em 1895 (The Barlett Music Co.), com uma imagem do compositor, já idoso, e com a indicação de ter composto mais de 400 peças de salão (R. Stevenson, "California Sheet Music Collection, 1104, UCLA Research Library, Special Collections", Inter-American Music Review , ed. R. Stevenson, VIII/Fall-Winter, 1986/1, 90 b.)


Questão de critérios para o reconhecimento do significado de Kontski

Considerando-se os dispersos testemunhos de extraordinário sucesso de A. de Kontski em vários países na sua época, o pesquisador surpreende-se com o fato de pouco poder encontrar a respeito da sua pessoa, de suas obras e de suas atividades em léxicos e enciclopédias.


Essa situação de esquecimento, que também pode ser registrada relativamente a outras personalidades da história da música, foi objeto de um colóquio na Universidade de Bonn, em 2003/4, dirigido pelo editor desta revista dedicado especificamente para questões de critérios e de perspectivas adequadas para a consideração de processos musicais em contextos globais.


Discutiu-se, nesse colóquio, a necessidade de reflexões a respeito de problemas resultantes de uma orientação excessiva das atenções da pesquisa musicológica segundo o conceito de obra. Esse direcionamento da atenção salienta músicos criadores cujas composições surgem como obras de primeira grandeza, de excepcional significado estético, de cunho modelar ou clássico no sentido normativo, expressando épocas e determinando desenvolvimentos; ofusca, porém, outras perspectivas na análise de desenvolvimentos histórico-musicais, de contextos e da atuação de personalidades.


Para o estudo de novas situações surgidas em metrópoles cosmopolitas do século XIX, sobretudo sob condições criadas pela industrialização, essa perspectiva dirigida unilateralmente à obra coloca obstáculos ao estudo adequado do papel da música no desenvolvimento cultural e social.


Essa dificuldade surge também e em especial na consideração do mundo extra-europeu, uma vez que também aqui o observador se confronta com nomes esquecidos, silenciados, considerados como "mestres menores", desvalorizados como de segunda ordem. Para os países extra-europeus que procuram estudar o seu passado e valorizar o seu patrimônio, a mudança de perspectivas torna-se uma exigência.


Também Anton de Kontski não tem o seu significado devidamente reconhecido, tanto no concernente à sua atuação na Europa, quanto àquela nos Estados Unidos, no Extremo Oriente e na Oceania.


Diferentemente de Chopin, A. de Kontski não adquire relêvo primordialmente pela sua obra composicional, ainda que a sua produção tenha sido grande e que inclua títulos que alcançaram considerável difusão e popularidade na sua época. Caídas hoje no esquecimento, podem levar o pesquisador a supor que também o papel desempenhado por Kontski em processos culturais tenha sido irrelevante, representando as suas atuações em regiões extra-européias apenas notas curiosas na historiografia.


Uma leitura mais atenta de comentários do passado, porém, indica que as suas composições e, sobretudo, a sua arte pianística exerceram fascínio e despertaram entusiasmo pelo espírito que as imbuia. Anton de Kontski foi celebrado como executante, pela sua técnica e por valores qualitativos de sonoridade do seu toque, assim como pelos impulsos ao mesmo tempo heróicos e ternos que trasmitia . Foi essa técníca, as características estéticas do seu domínio do instrumento e o espírito de liberdade que justificaram a sua popularidade em centros cosmopolitas de vastas regiões do globo, marcando desenvolvimentos que podem explicar situações atuais.


Também os inúmeros pianistas chineses que na atualidade prestam culto a Chopin não o fazem em grande parte por motivos teórico-culturais voltados à obra composicional de Chopin no contexto de sua época ou outros interesses analíticos e da erudição, mas sobretudo por fascínio resultante de critérios técnico-estéticos de toque, de produção de som, de execução límpida e "aperolada", de suavidade ou de volume, assim como por conotações ao mesmo tempo revolucionárias e românticas de sua obra, e não considerá-los seria menosprezar possibilidades de análise de desenvolvimentos culturais no âmbito das relações entre a China e o Ocidente.



"O indispensável do pianista": estética pianistística de Anton de Kontski


Uma aproximação ao reconhecimento dos critérios de consideração adequada de Anton de Kontski em processos culturais possibilita a única obra mais familiar dos estudos musicológicos convencionais que lhe dedica maior atenção: "A Estética do Toque do Piano" de Adolph Kullak (1823-1862), publlcada em 1860 e que teve várias edições (1876,1889,1906,1916,1920)  (Die Ästhetik des Klavierspiels, Reprint da 2a. ed., ed. M. Gellrich, Regensburg: ConBrio 1994).


Adolph Kullak, irmão do renomado pianista Theodor Kullak (1818-1882), atuou como professor de piano em Berlim, tornando-se personalidade reconhecida no meio musical da Prússia. Como autor de textos publicados na Neue Berliner Musikzeitung, criticava a superficialidade da música de salão e o brilhantismo de obras de virtuosidade de sua época, defendendo uma seriedade e profundidade na música na tradição de Beethoven.


Kullak foi um autor que vem sendo reconhecido como de significado na história da estética, em particular pela sua obra sôbre o Belo Musical (Das musikalische Schöne: Ein Beitrag zur Ästhetik der Tonkunst, Leipzig 1858) e na qual toma posição distinta relativamente à obra de Eduard Hanslick (1825-1904) (Vom Musikalisch-Schönen. Ein Beitrag zur Revision der Ästhetik der Tonkunst, 1854).


Analisando o método L'Indispensable du Pianiste Opus 100 de A. de Kontski (Edition nouvelle et augmentée de L‘Indispensable du Pianiste. Exercices quotidiens pour le Piano. Op. 100. En Commission chez Trautwein, Berlin; Neue Berliner Musikzeitung 5, ed. Gustav Bock, V, Berlin 1851, 337), Kullak expressa de início a sua impressão de que a escola de Kontski representava uma aproximação menos mecânica do toque do piano do que métodos mais antigos.

Um sinal dessa orientação era a de que era mais resumido do que os outros métodos, procurando em grande parte apenas oferecer impulsos teóricos. Na sua primeira parte, De Kontski rejeitava de forma temperamental todo tipo de recursos auxiliares exteriores, a saber a régua de Friedrich Kalkbrenner (1785-1849), o Dactylion de Henri Herz (1803-1888), o teclado mudo, o chirogimnasta, e mesmo a escola de exercícios de dedos, oferecendo sugestões para que o próprio pianista desenvolvesse exercícios necessários para o seu caso.

Kullak registra, porém, que no decorrer da obra de De Kontski ocorriam insuficiências e incoerências. Como exemplo, cita que, ao contrário da perspectiva de liberdade na criação de exercícios defendida de início, o autor salienta a indispensabilidade e utilidade de exercícios mecânicos de cinco notas. Assim, ainda que a obra fosse repleta de exemplos de exercícios e de regras úteis, no todo, porém, a técnica era tratada de forma muito superficial, tendo o autor procurado, com o texto, suprir uma falta de cuidado na concepção da metodologia.

O efeito do acariciar as teclas e o papel do toque, do sentimento e de ideais nobres

Kullak salienta que o principal pêso era dado na obra de De Kontski a um único efeito, descrito pormenorizadamente por A. de Kontski. Dizia respeito ao colorido do toque designado como Carezzando. Os dedos acariciavam a tecla na medida em que deslizava do seu centro à margem, apoiando nesse movimento a tecla de modo a que os martelos apenas tocassem a corda muito levemente. Em apresentações públicas, De Kontski alcançava desse modo efeitos de público até então desconhecidos. Nesse sentido, Kullak lembra que de Kontski dava prosseguimento aqui a um efeito já citado na escola de Kalkbrenner, onde também surgia o termo "caresser" para o acariciar de teclas. (a respeito: Jonathan Bellmann, "Frédéric Chopin, Antoine de Kontski and the carezzando touch", Early Music 29 (2001), 399-407)

Para Kullak, importante era a teoria da posição da mão de De Kontski, diferente e mesmo oposta à tradição vigente desde Bach e que remontava a maneiras de antigas eras. Enquanto que em outras escolas dava-se importância a dedos encurvados e à horizontalidade das mãos, sendo que o seu dorso e o antebraço deviam permanecer tranquilos, em algumas escolas salientando-se a manutenção elevada do pulso, De Kontski exigia uma posição baixa do pulso e dedos quase que totalmente esticados. Para êle, a ponta era a parte menos sensível dos dedos, produzindo um som sêco; com isso, como registra Kullak, De Kontski defendia uma opinião contrária àquela baseada na experiência, segundo a qual justamente a ponta dos dedos era o possibilitava maior delicadeza de tato. Para Kullak, porém, a técnica de De Kontski trazia certas vantagens, o que se manifestava também exemplarmente no modo de tocar de De Kontski, caracterizado por uma mecânica muito suave e fluente.

Quanto ao capítulo dedicado à interpretação, De Kontski caia, segundo Kullak, nas imperfeições da escola de Adam. Para De Kontski, o principal era o toque e o sentimento. Toque e sentimento é que faziam a música tornar-se irresistentemente atrativa. Essa atração a música não podia exercer através da velocidade de execuções. Ideais nobres e coração seriam essenciais para compreender e expressar a elevada tarefa da música. (Kullak, Ästhetik des Klavierspiels, cap. 3)

Atuação em Macau - compositor da Marcha a Camões

Já octogenário, De Kontski realizou uma viagem artística ao redor do mundo. Sob o seu nome em versão francesa de Chévalier de Kontski, o pianista-compositor apresentou-se em Macau, no Teatro D. Pedro V, a 29 de outubro de 1895.


O seu concerto realizou-se sob o patrocínio do Governador e o artista apresentou-se como pianista da Corte do Imperador da Alemanha. Esse elo com a cultura alemã foi salientado pelo fato do pianista anunciar-se como o último discípulo de Beethoven. O aspecto espetacular que sempre dava às suas apresentações - e que lhe valeu por vezes críticas de falta de seriedade - manifestou-se no fato de, abrindo o concerto, demonstrar, no exemplo da Sonata op. 27 n° 2 ("Ao Luar"), a forma com que Beethoven teria executado as suas próprias obras. O cunho alemão do programa manifestou-se também na inclusão de obras de K. M. v. Weber (1786-1826) e de R. Schumann (1810-1856).


O seu elo com o mundo português foi demonstrado com a inclusão de sua Marcha dedicada a Luís de Camões (Paris: Léon Escudier, ca. 1880), escrita para os festejos do Terceiro Centenário de Camões em Paris, salientando-se ter sido então executada por banda militar.


De Kontski homenageou Macau com a inclusão dessa obra, a cidade que era conhecida internacionalmente pela sua gruta de Camões. Assim como foi o caso de outros estrangeiros, parece ter sido esse o principal motivo da viagem do pianista a Macau, considerando-se o fato de ter-se ocupado mais profundamente com o escritor português à época do seu Centenário. O fato de A. de Kontski ter-se dedicado ao grande vulto da cultura portuguesa surge como de significado para os estudos culturais relacionados com Camões, uma vez que indicam a sua recepção no contexto de ideais heróico-românticos de conotações político-culturais representado pelo pianista polonês.


O concerto de Macau foi encerrado com a apresentação da composição mais amplamente difundida de Kontski, mundialmente conhecida, o Capricho heróico "O despertar do Leão" (Opus 115).



O jornal Eco Macaense (3/16, págs. 3-4), de 30 de outubro de 1895, oferece uma notícia desse concerto:

"O Chévalier de Kontski, pianista da Corte do Imperador da Alemanha e único discípulo sobrevivo de Beethoven, deu no theatro D. Pedro V um concerto, sob a protecção de s. Exa. o sr. Governador. O programa foi o seguinte: Beethoven (como tocava Beethoven a Moonlight Sonata), Camões March, composta por Kontski por ocasião do 3° Centenário de Camões e executada pela Banda militar em Paris, Schumann, Weber e, por fim, "Le Reveil du Lion", de De Kontski.

Atuação na Austrália e Nova Zelândia

Dando continuidade à sua viagem, tem-se notícias da atuação do idoso De Kontski na Austrália e na Nova Zelândia. Um comentário mais pormenorizado no jornal de Auckland tece apreciações sôbre a sua técnica pianística e o estilo de suas composições, demonstrando ter sido também ali uma estética de execução marcada pela caricia e um espírito heróíco movido por ideais nobres e patrióticos os principais fatores do fascínio que exercia.  ("An Octogenarian Pianist", Auckland Star, XXVII/215, 11 de setembro de 1896, 9).


Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Heroísmo e sentimento, patriotismo e internacionalidade: da Polonia ao mundo. Chopin em Manchester e na China e o acariciar teclas de Anton de Kontski (1817-1899): O Despertar do Leão e a Marcha a Camões". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 137/14 (2012:3). http://www.revista.brasil-europa.eu/137/Anton-de-Kontski.html





  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.