Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Biblioteca de Nouméa.Fotos A.A.Bispo©

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Place des Cocotiers. Nouméa.Fotos A.A.Bispo©

Place des Cocotiers. Nouméa.Fotos A.A.Bispo©

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General Orly.Place des Cocotiers. Nouméa.Fotos A.A.Bispo©

General Orly.Place des Cocotiers. Nouméa.Fotos A.A.Bispo©

Place des Cocotiers. Nouméa.Fotos A.A.Bispo©

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 136/4 (2012:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2864


A.B.E.


Découvrez des richesses Historiques
Problemas historiográficos dos estudos culturais em mundos descobertos pelos europeus:
Nova Caledonia e Amapá
pelos 200 anos de Louis-Marie-François Tardy de Montravel (1811-1864)


Ciclo de estudos Rio 92-Sydney 2012 da A.B.E. no Pacífico Sul. Biblioteca da cidade de Noumea, Nova Caledônia

 
Place des Cocotiers. Nouméa.Fotos A.A.Bispo©

Há 20 anos, por ocasião da passagem dos 500 anos do descobrimento da América por Colombo, levantaram-se vozes de protesto no Brasil e em outros países do continente americano contra a comemoração de uma data que marcava o início da história colonial do continente. Trazia-se à consciência que, em comemorações festivas da data não se levava em consideração as consequências trágicas de processos históricos então desencadeados para os indígenas do continente. (Veja Tema em Debate http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Australia-Melanesia-Brasil.html)

Essas vozes não podiam deixar de ser ouvidas por ocasião da realização do congresso internacional realizado no Rio de Janeiro e no qual tratou-se de questões de fundamentos nos estudos culturais no Brasil. Tanto relativamente a fundamentos de processos culturais colocados em vigência com a chegada dos europeus, como àqueles de natureza epistemológica referentes à própria pesquisa impôs-se o problema da visão dos acontecimentos históricos na dependência do posicionamento do pesquisador.

Ambas as perspectivas do decorrer histórico - aquela da colonização européia e dos países que dela resultaram - e aquela do indígena necessitam ser consideradas. Essas perspectivas correspondem também a distinções disciplinares nos próprios estudos culturais, onde há convencionalmente áreas voltadas mais à cultura do observador inserido em contextos derivados da colonização - o Folclore - , e aquelas à dos indígenas - a Etnologia. No âmbito historiográfico, a situação é mais difícil devido ao fato de serem as fontes escritas provenientes do próprio europeu. Esforços de desenvolvimento de uma historiografia indígena a partir de ângulos adequados podem ser registrados, podendo-se esperar uma intensificação desses intentos com o crescente número de indígenas com formação acadêmica.

Por essa razão, paralelamente às sessões dedicadas a estudos de fundamentos de expressões culturais de proveniência européia, euro-africana e de suas respectivas áreas disciplinares, deu-se particular atenção à questões de fundamentos de culturas indígenas e seus estudos. Nesse sentido, deu-se início a um projeto de levantamento dos estados de conhecimentos e de reflexões referentes a culturas indígenas, nos quais representantes de diferentes áreas disciplinares foram envolvidos, tanto não-indígenas como indígenas, tanto estudiosos da própria cultura - p.e. folcloristas - como etnólogos.

Esse procedimento foi resultado de debates que ressaltaram a necessidade da procura de novos caminhos no tratamento de questões de perspectivas históricas conflitantes. O interrelacionamento de perspectivas e a tomada de uma posição mais distanciada que permitam considerar ambas as visões de um ângulo maior representa uma exigência da realidade dos fatos, uma vez que nem os processos desencadeados pelos europeus são reversíveis, nem a intensificação da consciência histórica dos indígenas será interrompida - o que também não seria desejável.

Essa procura de novos caminhos para a solução de problemas de perspectivas historiográficas vem também de encontro a tendências teóricas renovadoras nos estudos culturais, passando a fazer parte dos debates relativos ao desenvolvimento de uma culturologia trans- e metadisciplinar, compreendida como mais ampla do que um simples conjunto de disciplinas culturais.

Essas reflexões iniciadas no Brasil no âmbito de encontros realizados em vários Estados e regiões foram também discutidas em outros países latino-americanos e, em particular, nos Estados Unidos. Aqui, considerou-se, em cotejo, as tendências de pensamento voltadas à consciência e à perspectiva histórica de comunidades indígenas nas suas relações com a história americana, um complexo de questões pelo que tudo indica já mais diferenciadamente e intensamente tratado do que no Brasil. (http://www.revista.brasil-europa.eu/128/Estereotipos-Panindigenismo.html)

O desenvolvimento dos trabalhos trouxe à consciência que a questão historiográfica - ou melhor historiológica - deveria ser tratada no contexto global das relações entre a colonização européia e os demais povos do mundo por êles encontrados e também considerados como indígenas pelas sociedades deles resultantes. Não era bastante superar nos debates as fronteiras nacionais do Brasil, atentando ao todo dos povos ameríndios, mas também considerar a situação das discussões historiográficas respectivas em outras regiões do mundo.

Com esse objetivo, realizou-se, em 2012, estudos em ilhas da Melanésia, onde a revalorização da cultura indígena surge como de particular atualidade para países de emancipação política relativamente recente. Questões de perspectivas historiográficas colocam-se com particular intensidade na Nova Caledônia, território francês que prepara plebiscitos para a escolha ou não de sua independência política relativamente à metrópole européia. Esses debates assumem também uma especial relevância considerando-se o desenvolvimento dos trabalhos museológicos que ali se observa, levados a efeito em instituições de diferentes orientações.

Aproximações aos problemas historiográficos da Nova Caledônia: Musée de la VIlle

No centro da capital novo-caledoniana, Nouméa, situa-se uma das instituições dedicadas aos estudos históricos locais: o Museu da Cidade. Essa instituição traz à consciência o significado - e a dificuldade - de levantamento, coleção e arquivamento de documentos e objetos do passado de Nouméa e de toda a ilha. Ela reflete uma preocupação encontrada no Brasil e em muitas outros países voltada à conservação do patrimônio cultural e artístico da sociedade desenvolvida desde a chegada dos europeus.

Esse intento museológico diz respeito à consciência e identidade cultural da população novo-caledoniana, à sua história e sobretudo memória. É a partir dela que, como em outros países, se desenvolve uma consciência de identidade suficientemente forte para relações refletidas e auto-seguras com a metrópole colonial, seja para a escolha da emancipação, seja para a manutenção dos vínculos políticos de cariz colonial.

O próprio edifício do museu se insere no conjunto arquitetônico do centro velho da cidade de Nouméa. É situado perante um jardim histórico e botânico que remonta aos primórdios da vila e que constituiu sempre um de seus orgulhos: a Place des Cocotiers. Essa praça poderia encontrar-se em alguma cidade de dimensões médias do interior de alguns Estados do Brasil. Num de seus lados levanta-se o edifício da administração.

Apesar de reformas relativamente recentes, a sua configuração paisagística e o seu mobiliário correspondem a modêlos que se internacionalizaram no século XIX. Salienta-se o coreto, de consideráveis dimensões, sempre evocado em narrativas saudosistas do passado de Noumea e que testemunha o significado da música de banda em colonia que foi tão marcada pela presença de militares e da marinha francesa.

Belem, Pará.J.Garnier.Arquivo A.A.Bispo

O centro da praça é marcado por uma fonte que é considerada como um monumento de especial significado para Nouméa. Apenas pode-se compreender esse significado sabendo-se da falta de fontes de água na cidade, o que sempre foi visto como um problema resultante da escolha do local onde se situa.

A fonte surge assim como um marco de uma determinada fase urbana, quando conseguindo-se superar esse problema vital, decidiu-se comemorá-lo com uma obra de arte, a primeira em espaço público, no centro do seu jardim. A realização da plástica, porém, que deveria simbolizar uma fase de desenvolvimento cosmopolita de Nouméa, levou a escândalos de natureza moral e preconceituosa ou discriminatória, uma vez que o modêlo que serviu ao artista foi a de uma mulher que pousou nua e que se procura identificar, supondo-se ser a de uma mestiça.

Observando-se a situação do museu no conjunto da praça do centro antigo de Nouméa, poder-se-ia supor que fosse expressão de uma consciência comunitária e identificação histórica comparável àquela de alguma cidade do interior de alguns Estados no Brasil que já não apresenta nenhum elo com o longinquo passado indígena, sendo a presença de nativos inexistente no presente. A situação de Nouméa caracteriza-se, porém, pelo fato de ser de fundação relativamente recente, do século XIX, sendo constantemente confrontada com a presença de grupos populacionais de ascendência nativa.

Retirada de placa em monumento como sinal de problemas historiográficos

Cunho emblemático da situação que aqui se apresenta é a estátua ao General Orly, Governador da Nova Caledônia, um dos principais monumentos históricos da cidade, levantado em 1893 numa das extremidades da praça. O observador atento constata que uma placa no pedestal do monumento foi afastada, ali se vendo apenas os orifícios de seus antigos suportes.

Essa placa, que elucidava a razão da comemoração monumental de Orly, foi retirada por pressão de grupos que se revoltavam contra a apresentação de indígenas vencidos aos pés do militar. Manteve-se, assim, a estátua de Orly em posição heróica de vencedor, sufocando-se na memória o fato histórico e suas implicações étnicas e culturais que justificou a sua vitória e monumentalização.

Se o relêvo onde surgiam os indígenas vencidos por Olry na vitória obtida na rebelião kanak de 1878 foi afastado, fato visto como um sucesso de movimentos críticos a expressões do colonialismo, a figura de Orly permanece com o seu gesto de significado patriótico pela causa da França.

Assim, o monumento surge como imagem da ambivalência, ou melhor das tensões internas existentes na visão do passado na Nova Caledônia, sempre na potencialidade de serem revividas justamentes em anos em que se discutido a emancipação política ou a manutenção da situação de território de ultramar francês.

Se no centro antigo da capital da Nova Caledônia é o passado da cidade colonial que marca sobretudo a identidade cultural e a consciência histórica local, tornando compreensível que ali se localize o Museu Histórico, o patrimônio indígena pré-colonial e sua revalorização no presente é representada pelo Museu Etnográfico, uma das instituições de maior significado científico-cultural de toda a Melanésia e mesmo da Oceania em geral. A concepção da instituição não é apenas voltada a um passado tido como encerrado. Em programas didáticos, procura-se desenvolver nos jovens escolares a consciência quanto a expressões e valores tradicionais. A perspectiva histórica que assim se cria ou aprofunda difere daquela proporcionada pelo Museu Histórico. (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Musica-Nova-Caledonia.html )

Entre referenciais inglêses e franceses na historiografia novo-caledoniana

A história das relações entre a Europa e a Melanésia tem o seu marco inicial na historiografia oficial na viagem do navegador inglês James Cook (1728-1779). A ilha da Nova Caledonia foi encontrada na sua segunda viagem de circumnavegação, em 1774, sendo por êle assim designada por associações com a Escócia, também conhecida como Caledonia. (John Robson, The Captain Cook Encyclopaedia, Glenfield, Auckland 2004, 158-159) Essa denominação, por muitos incompreensível, pois a ilha dificilmente recorda na sua aparência paisagens escocesas, apenas pode ser compreendida a partir do significado do termo Caledonia.

Como tratado em edições anteriores desta revista, a consciência do remoto passado da antiga Caledonia foi de particular em determinados círculos político-culturais britânicos, atuando na vida cultural de colonizadores e imigrantes de colonias britânicas do mundo extra-europeu. O nome de Caledonia, a antiga província romana na região que passou a chamar-se posteriormente Escócia,   vinculou-se a uma acentuada consciência tradicionalista, expressa no cultivo de expressões culturais conotadas com a identidade cultural da Escócia (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Trabalho-correcional-no-Colonialismo.html)

O descobrimento de Cook deu-se em época que ficou marcada na história escocesa pela expulsão dos pequenos camponeses para a formação de grandes áreas destinadas à criação de carneiros. Foi, assim, uma fase de tensões sociais e culturais resultantes de reorganização da terra e determinante na história das emigrações de escoceses provenientes dos altos planaltos. A Nova Caledonia, no seu próprio nome, torna presente esse passado escocês de imigração e colonização, e que tem a sua principal expressão na Nova Escócia, no Canadá, em particular na ilha de Cape Breton (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/127/Trabalho-correcional-no-Colonialismo.html; http://www.revista.brasil-europa.eu/128/Tradicionalismo-escoces.html).

Cook desembarcou e esteve por algum tempo em Balade, no nordeste da ilha, vivendo no seio de uma tribo e que por décadas guardou a memória da sua estadia. Daí, descendo ao sul, ao longo do litoral Leste, atingiu o Cabo da rainha Charlotte e a Ilha des Pins.

À época de Cook, também os franceses encontravam-se particularmente ativos nessa região do hemisfério sul do globo. Supõe-se, assim, ter sido a ilha visitada por Jean-François de La Pérouse (1741-1788), navegador, explorador e militar francês cujo nome ficou estreitamente vinculado à luta contra os inglêses na concorrência colonial entre a França e a Grã-Bretanha no mundo. Assim, atuara a favor dos interesses franceses e contra os inglêses nas Antilhas, procurara impedir o domínio britânico na baía de Hudson e, por Luís XVI, foi enviado à Oceania, onde Cook havia descoberto a Nova Caledonia. Embora uma possível estadia sua na ilha não tenha sido guardada na memória dos nativos - ao contrário daquela de Cook - La Pérouse entrou na história como uma espécie de mártir francês da política colonial do Antigo Regime, uma vez que a sua expedição com as naves La Boussole e l'Astrolabe desapareceu na ilha de Vanikoro, no atual Vanuatu, em 1788.

A história posterior da presença francesa na ilha prende-se ao envio de uma expedição com as naves La Recherche e l'Espérance à sua procura, sob o comando respectivamente do Vice-Admiral Antoine Raymond J. d'Entrecasteaux (1737-1793) e Jean-Michel Huon de Kermadec (1748-1793), também pelo rei Luís XVI, em 1791, ou seja, já nos anos abalados do movimento revolucionário francês. Sem atingir o seu objetivo, passando porém pela Île des Pins,  também d'Entrecasteaux perdeu a vida no decorrer do prosseguimento da viagem, tendo falecido em escorbuto ao largo de Java. O nome de Huon de Kermadec traz à consciência os contextos políticos globais dessas viagens marítimas de exploração francesas sob a direção de nobres, uma vez que participou ativamente de empreendimentos militares no Novo Mundo; também Huon de Kermadec adoeceu e faleceu durante a viagem. (http://www.revista.brasil-europa.eu/115/PassionsBotaniques.html)

Essas tentativas de auxílio aos náufragos de La Pérouse, elas mesmo trágicas, fundamentaram uma historiografia de aura mítica que marcou a consciência histórica francesa relativamente à sua presença no hemisfério sul. Essa presença, fundamentada sobretudo na Île de France (Maurício), de tanto significado para a França do Antigo Regime, e que ficou perenizada e mundialmente conhecida por Paul et Virginie  (http://www.revista.brasil-europa.eu/123/Paul_et_Virginie.html), também teve a sua expressão literária no relato da viagem d'Entrecasteaux publicado por Élisabeth Rossel em 1809 e que alcançou grande difusão.

O conhecimento da Geografia, Botânica e do homem dessa parte do mundo foi devida aos naturalistas que participaram dos empreendimentos inglêses e franceses, sobretudo Johann Georg Adam Forster (1754-1794) para a esfera britânica e de Jacques-Julien Houtou de Labillardière (1755-1834) para o mundo francofone. (http://www.revista.brasil-europa.eu/125/Taiti_e_Humboldt.html)

O grande nome de viajante francês de época já posterior, já da Restauração francesa, o de Jules-Sébastien-César Dumont d'Urville (1790-1842), vinculou-se também ao mistério do desaparecimento da expedição comandada por La Pérouse. Sendo o local do naufrágio esclarecido pelo comerciante de sândalo originário de Martinica, Peter Dillon (1788-1847), cujo nome ficou vinculado à história das relações de Fiji com a esfera britânica, em 1826, dois anos depois pôde d'Urville encontrar restos da nave L'Astrolabe.

A d'Urville cabe o mérito de ter registrado e divulgado pormenores científico-naturais e etnográficos do Pacífico, a êle remontando a sua divisão nas esferas da Melanésia, da Polinésia e da Micronésia. Os seus conhecimentos a respeito da viagem de La Pérouse e das suas próprias explorações foram divulgados em obras que exerceram grande influência na intensificação dos interesses pelas ilhas na França, salientando-se "Notice sur les îles du Grand Ocean et sur l'origine des peuples qui les habitent", publicado no Bulletin de la Société de Géographie de Paris 17/1 (1832), 1-21, e, sobretudo, Voyage de la corvette l'Astrolabe, 1826-1829, em 12 volumes, publicada em Paris (1830-1839). Realizou, em 1827, trabalhos hidrográficos, reconhecendo sobretudo as Ilhas Lealdade.

Na sua época e nas décadas seguintes, as ilhas continuaram a ser visitadas por pequenos navios de cabotagem, de comerciantes de sândalo, na sua maior parte inglêses, que realizavam negócios com os seus habitantes e muito contribuiram pas a devastação das ilhas. Um capital inglês, de nome Paddon, chegou a ter estabelecimentos florescentes na ilha de Nou, desempenhando um papel quase que de soberano local antes do assentamento dos franceses em Nouméa.

Tomada de posse francesa da Nova Caledônia e elos com o Brasil: Tardy de Montravel

A tomada de posse da França foi preparada pela chegada de missionários franceses a Balade, em 1843. Apesar dos frequentes conflitos com os naturais, que não queriam aceitar os ensinamentos cristãos e a mudança de seus modos de vida, os missionários passaram a exercer uma influência considerável no meio, contribuindo à tomada de posse no dia 24 de setembro de 1853.

O pavilhão francês foi implantado pelo contra-admiral Auguste Febrier-Despointes (1796-1855), comandante das forças navais francesas do Pacífico. Preparados pelos missionários, os franceses puderam inicialmente instalar-se em Balade, onde construiu-se um posto militar.

Em 1855, chegaram à Nova Caledônia as primeiras tropas de infantaria de mar, época em que acabara de ser criado (1854) o posto de Port-de-France pelo capitão de mar Louis-Marie-François Tardy de Montravel (1811-1864), no qual erigiu o Fort Constantine, e que viria ser a capital, tendo o seu nome mudado para Nouméa em 1866.

A fundação de Nouméa deu-se em singular contexto relacionado com o Brasil. Antes de viajar à Nova Caledônia e fundar o Port-de-France, Tardy de Montravel havia estado no Brasil, encarregado de realizar trabalhos de reconhecimento do relêvo hidrográfico da costa norte brasileira do Amapá, assim como da foz do Amazonas, trabalhos que foram de significado para a delimitação de fronteiras entre o Brasil e a Guiana Francesa, em 1856.

Os primeiros anos da ocupação foram empregados sobretudo em viagens de circumnavegação para o reconhecimento do território e das áreas de mar entre os recifes e a terra. Os locais menos perigosos para a ancoragem, na costa oriental, foram aqueles também em que mais intensos se desenvolveram os contatos com a população insular; a costa ocidental foi apenas visitada puntualmente.

O estabelecimento de Nouméa marcou o fim de um período de paz nas relações com os kanaks e o início de uma série de hostilidades. Estas teriam razões intertribais, religioso-culturais e de resistência contra o assentamento europeu. Assim, os franceses, para povoar a nova colonia ao redor da guarnição do forte, trouxeram consigo indígenas conversos das missões de Balade e Poebo, sujeitos à direção de missionários, o que teria sido uma das razões das animosidades, uma vez que o surgimento de uma nova sociedade de ascendência indígena, identificada com os franceses, tornou-se evidente. Aos ataques de kanaks sucederam-se expedições punitivas francesas, com atrocidades de ambos os lados, uma situação conhecida das regiões do Sul do Brasil que também passaram a ser colonizadas nessa época.

O estabelecimento dos franceses levou também ao estreitamento de laços inter-coloniais com outras possessões da França, em particular com o Tahiti.

Já um dos primeiros governadores dos estabelecimentos francêses da Oceania - Tahiti e Nova Caledonia - o oficial de marinha De Saisset, atravessou a ilha com uma expedição a partir de dois pontos, em 1859. Nessa época, estando a ilha já "pacificada", abriram-se caminhos e estabeleceu-se serviço de correios entre Nouméa e um novo assentamento denominado de Napoléonville, na baía de anala.

Com o fim de Balade, terminou a fase preparatória iniciada pelos missionários, iniciando-se o período propriamente colonial centralizado em Nouméa. Entretanto, movimentos reativos, de cunho religioso, continuaram a marcar as relações entre franceses e nativos e seus descendentes. Em 1860, um dos grupos de ascendência indígena atacados solicitou ajuda aos franceses de Nouméa, o que levou a uma expedição punitiva que fêz com que os atacantes se refugiassem em montanhas pouco acessíveis. Em 1862, outra expedição feita contra indígenas levaram ao estabelecimento de um posto militar em Houagap, no litoral leste.


Obra esquecida de significado para os estudos culturais: Jules Garnier

Durante os trabalhos euro-brasileiros na Nova Caledônia, salientou-se o significado de uma publicação hoje esquecida mas que é de significado relevante para os estudos históricos regionais e também para os estudos culturais em contextos internacionais: a do Engenheiro Civil de Minas Jules Garnier, com o relato de sua viagem à Nova Caledônia realizada de 1863 a 1866.(Garnier, Jules. "Voyage a la Nouvelle-Calédonie", Le Tour du Monde XVI, 402° Liv. 161, 1867, 155 ss.)

Esse engenheiro foi enviado à Nova Caledônia pelo Ministério da Marinha e das Colonias em missão de exploração geológica e de procura de minas.

O relato de sua estadia de trabalho na Nova Caledônia é de importância sobretudo por registrar dados de anos de exploração sistemática e implantação colonial nas ilhas que haviam passado há pouco ao poder francês. O seu empreendimento apenas pode ser entendido no contexto do interesse que a Nova Caledônia passou a despertar na França de meados do século.

Já na introdução do seu relato, Jules Garnier sugere a situação de concorrência que então se estabelecia entre a Grã-Bretanha e a França relativamente ao mundo extra-europeu. O autor inicia lembrando que a Nova Caledônia se situava a grande distância a oriente da Nova Holanda e ao norte da Nova Zelândia, grandes terras que, de "asilos da solidão e da barbárie" de cem anos atrás, transformavam-se dia-a-dia em imagem da Europa através da ação britânica. Ao norte da Nova Caledônia situavam-se as Novas Hébridas, as Vitis, as Salomões e outras, arquipélagos importantes mas ainda pouco explorados, em todo o caso mais quentes e menos salubres do que a Nova Caledônia.

Para Garnier, a colonia francesa da Nova Caledônia era um complemento às duas outras possessões inglêses da Nova Zelândia e da Nova Holanda, apresentando condições climáticas ainda mais favoráveis para a colonização do que aquelas. Assim, tentativas coloniais feitas em regiões tórridas da Nova Zelândia haviam fracassado. Além do mais, pela sua posição, a Nova Caledônia adquiria uma importância estratégica, parecendo ter sido posta premeditadamente a igual distância das duas grantes terras oceânicas, temperada entre o grande calor de uma e o grande frio da outra. Agradavelmente arejada por ventos e pela brisa do mar, que podia circular livremente devido às condições geográficas, a Nova Caledônia oferia oferecia condições propícias aos europeus. Também para a navegação oferecia boas condições com os seus canais entre os bancos de corais e a terra, que ao mesmo tempo possibilitavam a entrada de navios e ofereciam segurança. Jules Garnier incentiva a fantasia de seus leitores franceses salientando a beleza desses corais e do neles quebrar das ondas, assim como o momento solene em que um navio, vindo do alto-mar, penetrava no passo entre as barreiras corais:

"Un silence absolu règne à bord, troublé seulement par le clapotement de la lame qui frappeles flancs du navire, par le fasaiement d'une voile, ou le grincement du gouvernail; c'est que, à ce moment, une saute de vent, un calme subit, un courant imprévu, une bourrasque seraient peut-être l'arrêt de mort de tous; mais, peu à peu, les mouvements du bâtiment deviennent plus doux, la lame s'aplatit, la passe s'élargit, en face la mer est calme et libre jusqu'à ces contours élevés, ssombres et nuageux, vers lesquels tous les regards se tournent et aspirent (...) C'est ainsi que le 11 décembre 1863. je débarquai dans le port de la capitale de l'ile, Nouméa, heureux d'être au terme d'un aussi long voyage, mais imprégné d'une vague anxiété. J'étais bien dans une de ces iles océaniennes où les souvenirs des lectures du jeune âge me montraient des hommes olivâtres, nus, farouches, ornés de plumes, un lambeau de chair humaine à la main (...)" (op.cit. 157-158)


Nouméa já era 'à época de J. Garnier uma pequena povoação, formada por colonos que se agrupavam ao redor do posto criado em 1854 por Tardy-de Montravel e que era ainda conhecido sob o nome de Port-de-France.

A escolha do local para esse estabelecimento, justificado sob o ponto de vista de defesa e por oferecer um porto seguro, protegido pelas montanhas de ataques dos nativos, foi criticada por Jules Garnier pelo fato de não possuir meios para o suprimento de água da população. Criada como forte militar, não apresentava condições favoráveis para a sua transformação em povoação voltada à agricultura e ao comércio, uma vez que obrigava a seus habitantes a transportar água de localidades distantes.

O estabelecimento de canalizações era porém prejudicado pelas condições topográficas locais. Assim, o engenheiro defendia uma mudança da capital:

"Je suis forcé d'ajouter, et mon avis est celui de tous ceux qui connaissent la Nouvelle-Calédonie, que le progrès de la colonie est attaché à la translation de la capitale sur les bords d'un de ces cours d'eau qui ont créé jadis les grandes plaines de l'êle et qui les fécondent aujourd'hui." (op.cit. 160)

Esse contexto, elucidado expressivamente no relato de J. Garnier, torna compreensível o significado da posição do Museu Histórico de Nouméa perante a fonte de água da praça central, cuja importância como marco e memorial apenas pode ser percebida considerando-se a história da ocupação colonial da Nova Caledônia. O Museu, defrontando-se com essa fonte, aviva a consciência histórica dos habitantes, lembrando dos primeiros momentos da fundação da cidade e dos problemas que então se colocaram para o seu desenvolvimento.

Nova Caledônia, Amazonas e Amapá na literatura francesa de viagens

Se os elos históricos entre o Norte do Brasil, em particular a foz do Amazonas e o Amapá e a Nova Caledônia são estabelecidos por Tardy de Montravel, o fundador de Nouméa, demonstrando a concomitância de interesses franceses nas Guianas e na Oceania, esses paralelos disseram respeito também à recepção de conhecimentos pelos leitores franceses e, consequentemente, à formação de imagens das duas regiões.

Significativamente, o relato de Jules Garnier, publicado na revista Le Tour du Monde, em 1867, segue àquele da viagem de Paul Marcoy pelo Amazonas, no qual descreve o cruzamento do continente do Oceano Pacífico ao Oceano Atlântico. O leitor francês, assim, é preparado para o relato da estadia de Garnier na Nova Caledônia com esse texto referente ao Brasil, cujo significado não pode deixar de ser salientado nos estudos culturais (Vide http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/CM07Index.htm).

Uma ponte entre os dois textos é feita por uma extensa nota da redação do órgão, na qual o artigo de P. Marcoy é atualizado com referências às explorações de William Chandless sobre o Purus.  A publicação já se encontrava na imprensa quando vieram à luz os relatos de Chandless pela Sociedade de Geografia de Londres ("Ascent of the River Purus", Royal Geographical Society of London, 1866). Desejosos de colocar os seus leitores a par de uma questão que teria, para os habitantes do Brasil e do Peru significado comparável àquele dos geógrafos europeus pelas origens do Nilo, a publicação oferece um resumo das revelações de Chandless. Este, por iniciativa privada, em 1864 e 1866, apesar dos riscos, subiu o Purus e seu afluente Aquiry até as proximidades de suas fontes. Os resultados desapontaram os peruanos, pois levava a uma modificação de mapas dos altos afluentes do Amazonas. (op.cit. 154)


Com a publicação, em sequência, dos dois relatos, o relativo ao Amazonas e aquele da Nova Caledônia, o leitor francês também foi confrontado com ilustrações feitas a partir de fotografias de duas regiões e que sugeriam paralelos quanto ao modo de vida em regiões tropicais e resultantes de contatos entre europeus e indígenas de duas partes do globo. Paul Marcoy de um lado e Jules Garnier de outro, apesar das diferenças que se denotam nos textos, de seus interesses e concepções, surgem aqui relacionados, ainda que de forma não explícita. Modos de vida das redondezas de Belém e aqueles de Nouméa são apresentados quase que lado a lado.


Grupo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Problemas historiográficos dos estudos culturais em mundos descobertos pelos europeus:
Nova Caledonia e Amapá pelos 200 anos de Louis-Marie-François Tardy de Montravel (1811-1864)
". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 136/4 (2012:2). http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Nova-Caledonia-Amapa.html







  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.