Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Dança de Fiji. Foto A.A.Bispo ©

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Dança de Fiji. Foto A.A.Bispo ©

Dança de Fiji. Foto A.A.Bispo ©

Dança de Fiji. Foto A.A.Bispo ©

Dança de Fiji. Foto A.A.Bispo ©

Dança de Fiji. Foto A.A.Bispo ©

Dança de Fiji. Foto A.A.Bispo ©

Dança de Fiji. Foto A.A.Bispo ©

Caiapó de Piracaia. Foto A.A.Bispo ©

Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 136/17 (2012:2)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização de estudos de processos culturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência -

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2877


A.B.E.


Morte e ressurreição em danças de combates em Fiji e o Caiapó do Brasil
Fiji-Brasil na Etnomusicologia e no estudo de processos músico-culturais em contextos globais


Ciclo de estudos Rio 92-Sydney 2012 da A.B.E. no Pacífico Sul. Lautoka, Viti Levu, Fiji

 

Os estudos desenvolvidos na Oceânia, em janeiro de 2012, decorreram à luz dos 20 anos do congresso internacional realizado no Rio de Janeiro pelos 500 anos do Descobrimento da América, em 1992. Naquele ano, motivado pela data, as atenções foram dirigidas aos fundamentos das expressões culturais brasileiras, acompanhadas por reflexões sôbre os fundamentos teóricos dos estudos respectivos. (Veja Tema em Debate, nesta edição: http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Australia-Melanesia-Brasil.html)


Nesse contexto, o processo de transformação cultural por que passaram as culturas indígenas desde a chegada dos europeus foi alvo de particular consideração. Paralelamente, considerando a vigência de processos então desencadeados no presente, iniciou-se um projeto de atualização de conhecimentos e de perspectivas referentes às culturas indígenas.


Compreende-se que, com essa orientação programática, o congresso ocupou-se de modo especial com expressões tradicionais brasileiras que apresentam conotações indígenas e que são consideradas pelos pesquisadores como remontantes às primeiras décadas da formação da sociedade brasileira, resultante da colonização e da ação missionária.


Considerou-se, assim, ao lado de tradições tais como a Dança de Santa Cruz, tratada em eventos anteriores por diversas vezes como indicadora da prática festivo-religiosa nas missões (Vide e. o. R. Tavares de Lima, "Der Tanz zum Heiligen Kreuz: eine Tradition indianisch-jesuitischen Ursprungs", in A.A.Bispo et alii, Collectanea Musicae Sacrae Brasiliensis, Roma 1981, 189-202), sobretudo aquelas expressões cujos participantes apresentam-se como índios, com cocares ou adereços de penas e fibras vegetais, assim como outros atributos culturais sinalizadores da vida indígena, incluindo por vezes encenações de atividades, modos de vida e combates tribais.


Entre as expressões consideradas, incluiu-se aquela do folguedo conhecido como "Caiapó", praticado sobretudo no Estado de São Paulo, e cuja designação lembra um grupo indígena que, naquele Estado e no Brasil Central foi conhecido, no passado, como particularmente bravio na sua resistência à integração na sociedade colonial em expansão.


Desenvolvimento dos trabalhos relativos a expressões de conotação indigena


Tendo sido um dos objetivos dos trabalhos do congresso relacionar estudos históricos e empíricos, seguindo-se aqui preocupações de renovação dos estudos culturais remontantes à década de 60 e representadas hoje pela A.B.E.(http://akademiebrasileuropa.de/Chroniken/1966-Geschichte-Volkskunde.html), procurou-se levantar fontes documentais referentes aos grupos indígenas respectivos, à história missionária de sua catequese e transformação cultural, pertinente sobretudo a Goiás, e, ao mesmo tempo, rever os estudos relativos às expressões tradicionais segundo êles designadas. (Vide A.A.Bispo, "Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens: Stand und Aufgaben der Forschung - 4.Teil - Zur Geschichte der Forschung", Die Musikkulturen der Indianer Brasiliens, Jahrbuch Musices Aptatio 2000/2001, Roma/Siegburg 2002, 9-419)


Nesses trabalhos, tornou-se evidente que se tratava antes não de uma continuidade de expressões indígenas, ou seja, da permanência modificada de tradições dos Caiapós no Folclore, mas sim de problemas de imagens, de designação de danças com encenações de lutas segundo esse grupo indígena, o que, na verdade, já tinha sido reconhecido por pesquisadores, em particular por Rossini Tavares de Lima. Impunha-se, portanto, estudar tais expressões na sua estrutura e nos seus significados, situando-as no conjunto global da ordenação de imagens relacionadas com o homem e o ciclo anual, tanto relativamente à natureza, como à de sua interpretação no calendário católico de festas.


Nesse sentido, os trabalhos puderam basear-se em levantamento e estudos de dados documentais desenvolvidos em anos anteriores e que haviam sido tratados em publicações e eventos. No sistema de imagens e concepções que, a partir desses estudos, pôde ser reconstruido e analisado nos seus significados com base em aproximações hermenêuticas adequadas, pois correspondente a princípios intrínsecos ao próprio sistema, procurou-se situar danças de lutas conhecidas do populário cristão-europeu da Idade Média e de períodos subsequentes. (Veja, e.o. A.A.Bispo, Grundlagen Christlicher Musikkultur in der außereuropäischen Welt der Neuzeit: Der Raum des früheren portugiesischen Patronatsrechts I, Jahrbuch Musices Aptation 1987/88, Roma/Köln 1989, )


Foi possível, assim, reconhecer as relações dessas expressões tanto com ciclos festivos do ano natural e religioso do hemisfério norte como com concepções relativas ao Homem. O "homem selvagem" ou o bárbaro, conhecido das expressões medievais, foi estudado tanto sob o ponto de vista de uma Antropologica Cultural cristã, complexo temático debatido no Colóquio Internacional de Tradições Cristãs realizado na Alemanha, em 1989, como no sentido mais genérico de uma Antropologia Simbólica, tema de Colóquio Internacional realizado no Brasil, em 1998.


Neste último evento, considerou-se o fato singular da revitalização do Caiapó no interior de São Paulo no presente, em particular na região de Atibaia e Piracaia. Sobretudo pesquisadores de Folclore preocupados com a perda do patrimônio cultural brasileiro empenham-se no fomento dessa tradição.


Indígenas confrontados com expressões lúdicas de conotação indígena


Fiji em Centro Cultural da Polinesia, Havai.Foto A.A.Bispo ©
Na sessão final de simpósio realizado no âmbito do Congresso de Estudos Euro-Brasileiros, em 2002, um grupo de Caiapó assim revitalizado da cidade de Piracaia apresentou-se a indígenas vindos de Goiás e Tocantins especialmente para o evento (A.A.Bispo, "Musikgeschichte symbolischer Organisationsprinzipien des kulturidentifikatorischen Sandels in interaktiven Spannungsfeldern ruraler und stammesbezogener Gesellschaften", Musik, Projekt und Perspektiven, Köln 2003, 133-150) .


Motivado pela Campanha da Fraternidade da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil daquele ano, voltada à temática indígena ("À procura de uma terra sem males"), o encontro, dedicado a questões do binômio Tribal/Rural, procurou tratar de interrelações históricas e sistemáticas em processos desencadeados pelo encontro de culturas indígenas com a cultura conotada como rural ou sertaneja da sociedade predominante em expansão.


Os indígenas presentes, observando o Caiapó, mostraram-se surpreendidos ao constatar que coreografias, movimentos e gestos que lhes pareceram estranhos apresentassem atributos indígenas e fossem vistos por alguns pesquisadores como permanência de tradições indígenas. Demonstraram até mesmo uma certa suscetibilidade ferida por verem-se representados de forma divertida e mesmo grotesca.


Os participantes desse grupo designado como Caiapó, de fato, apresentaram-se representando indígenas, ainda que as fibras naturais de seus saiotes e outros atributos, tais como cocares e perneiras tivessem sido substituidos por materiais artificiais de plástico. Para além do fato dessa substituição ser resultado de exigências práticas quanto a recursos disponíveis, servia para acentuar o cunho lúdico do evento. Lembrou-se, na ocasião, que também se possui referências quanto à participação de Caiapós no Carnaval, e que a presença de índios e selvagens com rostos pintados de negro, vestimentas de palha e cocares de penas é comum na tradição carnavalística da Europa.


Em capítulo denominado de "Danças-Dramáticas de inspiração ameríndia", Oneyda Alvarenga, na sua Música Popular Brasileira, transmitiu informação de pessoa da sua família a respeito do Caiapó que era praticado, no passado, no sul do Estado de Minas Gerais, ou seja, em região não distante daquela do grupo apresentado de Piracaia.


"Os Caiapós muzambinhenses eram dançados por negros e ao grupo dos dançadores se dava o nome de terno. (....) A indumentária compunha-se de uma tanga curta de capim, uma espécie de perneira, também de capim, lembrando o envoltório das garrafas, amarrada nos tornozelos, agrindo para cima. Na cabeça, uma coroa baixa, de capim. Tronco, braços e pernas nus. Muitos colares e rostos pintados com garatujas brancas. Instrumentos, só dois pauzinhos que batiam um no outro e a caixa. Do terno só faziam parte homens, inclusive meninos. Pulavam e dançavam ao som dos tais instrumentos, mas não cantavam." (Oneyda Alvarenga, Musica Popular Brasileira, São Paulo, Porto Alegre e Rio de Janeiro: Globo, 1960, 83-85).


Como a autora salienta, essa descrição de tradição já então não mais existente de Minas Gerais coincidia com aquela do grupo de Caiapós de Atibaia, cidade vizinha a Piracaia, fornecida por João Batista Conte e Renato Almeida. Esses autores mencionavam que o cortejo de indivíduos vestidos de índios, em formação de dois a dois, que dançavam pelas ruas, era aberto por um cacique que trazia uma buzina de chifre a tiracolo. Esta servia para dar sinais e alarmas, por exemplo quando encontravam alguém de importância ou uma autoridade. Ao soar, os Caiapós se deitavam e apontavam as flechas para o suposto inimigo, erguendo-se a novo toque. Representavam, assim, grupos ariscos, pelo que tudo indica inimigos de representantes de civilidade.


Estudos de Rossini Tavares de Lima


O pesquisador que mais diferenciadamente estudou o Caiapó foi Rossini Tavares de Lima. Os resultados de seus estudos e levantamentos empíricos possibilitaram o esclarecimento de muitas questões, tendo sido discutidos por diversas ocasiões, entre elas na sessão dedicada à necessaria renovação teórico-cultural da Etnomusicologia alemã levada a efeito no Museu da Associação Brasileira de Folclore em debate com o diretor de instituto de musicologia comparada da Universidade Livre de Berlim, em 1981.


"Perseguindo a linha histórica do Caiapó, como folguedo de pessoas do povo que se vestem de índio ou selvagem, para desfilar e dançar, nós o relacionamos a um costume idêntico da Europa, desde o século XV. Antes mesmo, foi lançada a moda, talvez pela côrte de França, de organizar festas com indígenas e mesmo personagens fantasiados de indios. Ferdinand Dénis refere-se a uma festa de índios e mais marinheiros franceses, com indumentária do mesmo feitio, que teve lugar diante de Henrique II e Catarina de Médices, em Ruão, no século XVI. Garante por sua vez Souza Viterbo, recordado por Mario de Andrade, que já em 1619, os jesuítas faziam em Portugal bailados característicos figurando tapuias e aimorés. A moda do sauvage ou homme du bois, escreve Van Gennep, se difundiu e transformou-se nos grupos que, durante séculos, com suas fantasias de penas, acompanharam os manequins do carnaval francês. (...) Este costume europeu de organizar farranchos com índios ou gente vestida de índio, o que era mais comum, não demorou a ser trazido para cá, terreno favorável para a sua maior difusão." (Folguedos Populares do Brasil, Ricordi 1962, op. cit. 166)


Sôbre o episódio da morte e ressurreição


Há uma cena que se constata em diferentes expressões com danças de lutas de conotações indígenas que tem chamado a atenção de pesquisadores há décadas. Trata-se da representação da morte e ressurreição de um dos protagonistas que, trazido à vida pela ação de um pajé, inicia a parte final do folguedo, caracterizada por confraternização dos contraentes e pela alegria final.


A respeito, referindo-se à dança-dramática denominada de Caboclos, da Bahia, Oneyda Alvarenga lembra da discussão relativa ao significado desse complexo morte-e-ressurreição, salientando ser frequente nos bailados para cuja formação concorreram elementos de culturas primitivas (Cabocolinhos, Congos, Cucumbis, Bumba-meu-boi, Cordões de bichos" (op.cit. 90)


Essa formulação não é suficientemente precisa, considerando-se não se tratar de "bailados para cuja formação concorreram elementos de culturas primitivas", mas sim, como representações de indígenas por parte de participantes da sociedade dominante, de ascendência indígena ou não, como a própria autora manifesta na denominação do seu capítulo. As denominações de "Caboclos" ou a a menção a seu cultivo sobretudo por africanos e seus descendentes podem ser compreendidas a partir desse fato.



Paralelos entre a dança de combate de indígenas no Brasil e em Fiji


No âmbito dessas reflexões, expressões culturais de dança e representações de lutas na Oceania, em particular em Fiji, assumem particular significado.


Em contexto totalmente diverso do brasileiro, em região distante geograficamente e sem maiores vínculos com o Brasil do ponto de vista histórico-cultural, pode-se observar folguedos que que apresentam muitas similaridades com aqueles descritos e observados no Brasil.


Também ali se constata a representação de indígenas por participantes semi-nús, com saiotes, perneiras, braceletes ou coberturas de cabeça de folhas ou palhas, rostos e corpos pintados, que entram em cena em forma de cortejo, marchando pelas ruas em filas duplas, precedidos por vezes pelo tocar de buzina, ainda que, na região, feita de grande concha.


Dentre essas várias expressões de danças de combates da Oceania, praticadas em ocasiões festivas de boas vindas ou da expressão de desejos de boa viagem, salienta-se aquela observado em Fiji por incluir o episódio tão discutido no Brasil da morte e da ressurreição.


Também aqui, estruturados em duas filas, os guerreiros representam ataques e recuos, lutas dançadas com entrechoques de lanças, sendo que, em determinado momento, cai um ou caem dois dos guerreiros mortos; seguem-se várias tentativas de revivê-los, e somente retornam à vida com a intervenção de um participantes que pelo tudo indica desempenha o papel de feiticeiro, fato celebrado com expressões de alegria pelos participantes e pelos assistentes, conduzindo à roda final.


É sugestivo comparar o episódio da morte e renascimento no Caiapó apresentado no simpósio de 2002 no Brasil e aquele observado em Lautoka, Fiji.


No Brasil:



Em Fiji:



Como nas expressões brasileiras, os guerreiros dançantes não cantam, sendo porém as suas danças acompanhadas por um conjunto instrumental e por coro, este atuando sobretudo nos intervalos.


Assim como no Caiapó brasileiro, os selvagens apresentados pelos fijianos são estilizações, ou seja, são representados por protagonistas que não são e não se identificam com os representados, ainda que considerados como ameaçadores.


Se no Caiapó revitalizado de São Paulo nota-se a presença de fibras coloridas de plástico nas vestimentas, no de Fiji as lanças dos combatentes apresentam um chuço de plástico de côr rosa, o que também tira da expressão o sentido de representação realista da cultura nativa, dando-lhe um cunho divertido e mesmo hilariante e grotesco.


Significativamente, apesar das aparências que procuram encenar intuitos aterrorizadores, a morte e a ressurreição dos caídos são encenadas de forma a causar riso, com movimentos e gestos exagerados e cômicos, levando por fim a uma situação alegre de confraternização, na qual também os espectadores tomam parte.


Apesar, assim, de todas as diferenças quanto à música e aos instrumentos acompanhantes, há similaridades surpreendentes quanto à coreografia, a representação encenada, a conotação indígena ou selvagem e, pelo que tudo indica, também ao significado.


Naturalmente, levantam-se aqui questões relativas à justificação de tais similaridades em contextos culturais tão distantes entre si, em regiões sem vínculos histórico-culturais mais estreitos na sua formação.


Tentativas de elucidação desse fato apenas podem ser feitas dirigindo-se a atenção a processos globais derivados de contatos de europeus com povos não-europeus, para além de todas as suas contextualizações regionais e mesmo nacionais.


Tentativas explicativas do sentido da dança guerreira em situações coloniais


Como debatido no Brasil e retomado na Oceania, o contexto global lúdico no qual se inserem as lutas guerreiras e as demonstrações de aparência amedrontadora de agressividade, e que fazem que certas apresentações assumam até mesmo cunho carnavalesco, pode ser compreendido, do ponto de vista da Antropologia Cristã a partir das concepções do Homem Velho vistos a partir do Novo. Esse foi o caminho discutido em eventos e em publicações desde a década de 70, em particular no Colóquio Internacional de Tradições Cristãs na Alemanha, em 1989, e no de Antropologia Simbólica, em 1998 (Vide e.o. A. A. Bispo, Christliche Musikanthropologie: Eine Einführung, Jahrbuch Musices Aptatio 1992/93, Colonia,1999 )


Essas manifestações, em ambos os contextos, remontariam, assim, a situações missionárias do passado, na qual cristianizados representariam a própria cultura superada, dela distanciando-se através da desvalorização causada pelo fato de ser posta a serviço do divertimento, sendo levados assim a integrar-se na comunidade cristã.


Há, porém, um aspecto em ambos os contextos - o brasileiro e o oceânico - que merece particular atenção e que relativa essa interpretação, apesar de sua plausibilidade e de seus fundamentos histórico-culturais.


Alguns pesquisadores brasileiros procuraram explicar a origem de folguedos com atributos indígenas a partir de grupos que, já em contato com a sociedade cristã, por ocasião de festividades vinham de suas aldeias trazendo em muitos casos não apenas objetos e adereços indígenas, mas também vestes coloridas, chapéus e atributos conhecidos de folguedos tradicionais de origem européia.


Também no caso da Nova Caledônia pode-se registrar - como documentado por J. Garnier ( "Voyage a la Nouvelle-Calédonie", Le Tour du Monde XVI, 402° Liv. 161, 155 ss.). - que a prática de simulação de expressões amedrontadoras, com lutas e atos de suposta agressividade para fins pacíficos de expressar bons votos de viagem já existia antes da missionação cristã. (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Dancas-dramaticas-Pacifico-Brasil.html)


A única explicação plausível seria a de supor que já na cultura indígena da Nova Caledônia existisse uma estrutura marcada pela idéia de superação de um estado marcado pela agressividade a partir de um caracterizado pela paz, concórdia e sentimentos de amizade. Teria havido, assim antes uma acomodação de estruturas similares em edifícios de concepções indígenas e européias, apesar desta referenciar-se pela história cristã. Esta suposição é corroborada pelas narrativas orais consideradas em trabalhos no Centro Cultural Tjibaou e mencionada por elucidadores no museu-floresta de Vanuatu (Veja http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Tjibaou-Vegetais-e-Cultura.html ).


Esse direcionamento do debate permite que se descortine inusitadas possibilidades interpretativas e para a prática resignificadora no presente. Se indígenas da Nova Caledônia já possuiam no seu edifício cultural uma tensão entre um estado posterior, de paz, e um anterior, de guerras e amedrontador, então a representação de lutas entre duas filas diz respeito a um processo interno ao homem, não ao combate entre dois povos. Se essa interpretação puder ser aplicada ao Caiapó, então se trata aqui não da representação da selvageria do não-cristão vista pelo cristão, mas sim dos riscos de queda num estado de barbárie superado.


A morte e a ressurreição ao som de cantos de espirito wesleyano


A participação de meninos como guerreiros na dança indica o sentido didático da encenação, o que sugere a sua função no ensino em comunidades cristãs.

No caso de Fiji, a influência metodista na cristianização surge como decisiva (http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Entusiasmo-em-Fiji.html), o que também pode ser constatada no repertório e na expressão do coro que acompanha a encenação. Fator fundamental a ser considerado para que se compreenda o sentido do episódio da morte e da ressurreição é o imperativo dirigido ao "acordar" que, de fundamentação bíblica, permeia profundamente a convicção e a atitude perante a vida e ao próximo daqueles formados segundo a tradição de John Wesley (1703-1791).

Segundo essa perspectiva, a cena da morte e ressurreição deve ser entendida antes a um acordar daquele que se encontra dormindo no sentido figurado do termo. A encenação, que passa de situações de lutas e agressões a um fim de confraternização em alegria, apresenta como ponto central da transformação interior do Homem o acordar daquele que se encontra dormindo, o que pode ser entendido como aquele cuja atenção se encontra voltada apenas ao mundo dos sentidos.


Encenando esse Acordai! os fijianos se revelam na sua cultura profundamente influenciados pelo metodismo. Ao mesmo tempo, dirigem uma mensagem evangelizadora aos observadores estrangeiros onde, possivelmente, poder-se-ia detectar uma crítica à sociedade superficial de consumo desses visitantes.

Para os estudos brasileiros, essas constatações e reflexões em Fiji abrem caminhos para novas elucidações do Caiapó e expressões similares. Se também no Brasil puder-se comprovar que a morte e ressurreição nas tradições representam antes um acordar no sentido figurado daquele que se encontra morto, então tem-se uma situação de interesse para estudos de história religiosa. Não tendo havido influência metodista nessas expressões - mais antigas do que as origens desse movimento na Inglaterra - elas refletiriam uma concepção orientada pelo imperativo biblico na catequese de mais remotas origens. Essa aplicação no Brasil teria como pressuposto a existência de expressões similares na Europa medieval.

Parte individualizada de um contexto mais amplo da linguagem de imagens

De particular significado nas reflexões de R. Tavares de Lima é o fato de salientar que os Caiapós em geral possuiam imagem de associações negativas. Assim, registra o fato de seus participantes serem considerados em algumas localidades como pessoas de camadas sociais mais inferiores e mesmo de má fama.

Essa menção de R. Tavares de Lima corresponde também a registros segundo os quais os Caiapós surgem como contraentes de Congos, estes sempre vencedores. Neste caso, tratar-se-ia do esquema de cristãos contra infiéis, conhecidos de várias regiões e em diferentes formas de expressão, do qual as partes podem aparecer independentemente.

Quando a parte dos infiéis surge de forma independente, então a atenção é dirigida ao processo da transformação interior, simbolizado no reviver ou no acordar. Tratar-se-ia, assim de emancipação de uma das partes da luta que ocorre na parte vista como inferior da concepção tripartida do Homem, correspondente ao corpo ou à carne, aquela representada pelo mago Baltazar na linguagem simbolica de Reis. (A respeito: http://www.revista.brasil-europa.eu/133/Tradicoes-do-Brasil-na-Boemia.html)

Em situações determinadas de missão de povos vistos pelos missionários como particularmente presos à carne, compreender-se-ia que apenas essa parte conotada negativamente passasse a ser considerada em encenações lúdica de potencial educativo.

Dança de combates, universidade e a imagem de Fiji


A dança de combates, com a morte e a ressurreição - ou o despertar -, marca as representações culturais de Fiji no Exterior e mesmo a prática cultural universitária. Este fato pôde ser constatado nas apresentações do Centro de Culturas da Polinésia no Havaí, um dos mais visitados centros de cultivo e difusão de expressões culturais polinésicas, onde pesquisa, ensino, representação e espetáculo se interrelacionam de forma singular. (http://www.revista.brasil-europa.eu/125/Nobre_selvagem.html)


Os universitários que ali constituem a barca de Fiji no cortejo áquatico das nações do Pacífico apresentam encenações dançadas de lutas como distintivo de sua cultura.



Grupo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo


Todos os direitos relativos a texto e imagens reservados. Reproduções apenas com a autorização explícita do editor.

Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Morte e ressurreição em danças de combates em Fiji e o Caiapó do Brasil
Fiji-Brasil na Etnomusicologia e no estudo de processos músico-culturais em contextos globais
". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 136/17 (2012:2). http://www.revista.brasil-europa.eu/136/Dancas-de-Fiji-e-Caiapo.html



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  2. Brasil-Europa é organização exclusivamente de natureza científica, dedicada a estudos teóricos de processos interculturais e a estudos culturais nas relações internacionais. Não tem, expressamente, finalidades jornalísticas ou literárias e não considera nos seus textos dados divulgados por agências de notícias e emissoras. É, na sua orientação culturológica, a primeira do gênero, pioneira no seu escopo, independente, não-governamental, sem elos políticos ou religiosos, não vinculada a nenhuma fundação de partido político europeu ou brasileiro e originada de iniciativa brasileira. Foi registrada em 1968, sendo continuamente atualizada. A A.B.E. insere-se em antiga tradição que remonta ao século XIX.


  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.