R.H.Schomburgk no Sião. Revista BRASIL-EUROPA 135/6. Bispo, A.A. (Ed.). Academia Brasil-Europa e ISMPS





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BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Cidade real Bangkok, Wat Phra Kaeo

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Cidade real Bangkok, Wat Phra Kaeo


Fotos A.A.Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 135/6 (2012:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2847


Academia Brasil-Europa




Entre fascinação e confronto com contrastes nas Américas e no Sudeste da Ásia
O cientista-diplomata Robert Hermann Schomburgk (1804-1865) no reino de Mongkut, Rama IV (1804-1869) segundo registros de um pintor alemão


Ciclo de estudos Tailândia/Brasil da A.B.E.. Cidade real de Bangkok, Wat Phra Kaeo

 

Um dos vultos da história das ciências do século XIX que mais estreitamente une o continente americano com o antigo reino do Sião é Robert Hermann Schomburgk (1804-1865), irmão do botânico Moritz Richard Schomburgk (1811-1891).

Como cientista-viajante que  atuou em diversos continentes e a serviço de diferentes nações, Robert H. Schomburgk merece particular consideração nos estudos culturais em contextos globais e nas relações internacionais. Estabeleceu pontes entre o mundo científico alemão na tradição de Alexander von Humboldt (1769-1859) e a esfera política e diplomática em período de apogeu colonial da época vitoriana do Império Britânico, atuando tanto nas Índias Ocidentais como nas Orientais.

Alemão, tendo obtido formação em comércio em Naumburg (Saale), deu início à sua vida de viajante transcontinental na esfera da língua inglêsa em 1828, quando se transferiu aos Estados Unidos. Passando ao Caribe, esteve em várias ilhas, explarando em particular Anegada, nas Virgin Islands britânicas.

O nome de Schomburgk ficou sobretudo vinculado com o Norte da América do Sul devido a seus estudos e à sua atuação político-diplomática nas Guianas. Após ter realizado, com o apoio da Real Sociedade Geográfica de Londres, entre 1835 e 1839, uma expedição a essa região, tornou-se um dos melhores conhecedores dessa região, razão pela qual foi encarregado pelo Govêrno Britânico para estabelecer os limites entre as Guianas e a Venezuela, ficando o seu nome vinculado a uma linha demarcatória. Retornando à Inglaterra em 1844, trouxe grande quantidade de materiais botânicos e zoológicos, doados ao Museu Britânico. Pelos seus serviços, foi elevado a Cavaleiro pela Rainha Vitória.

Sob a perspectiva dos estudos brasileiros, Robert Hermann Schomburgk é conhecido sobretudo devido à Vitoria régia. Embora tendo sido essa planta já registrada por outros cientistas (1816 por Thaddäus Haenke, 1832 por Eduard F. Poeppig), foi Schomburgk que deu-lhe o nome que perenizou, na Botânica, a Rainha Vitória (1819-1901) (Nymphaea victoria). Com o nome de Vitoria régia passou a representar a Amazônia em jardins botânicos de várias regiões do mundo. Um desses principais exemplos, o do jardim de Adelaide, Austrália, ligado ao nome do seu irmão Moritz Richard Schomburgk, já foi alvo de trabalhos da A.B.E. (http://www.revista.brasil-europa.eu/119/Schomburgk.html)

Do comércio à ciência e diplomacia, do Caribe ao Sião

A carreira diplomática de Schomburgk iniciou-se mais propriamente com a sua nomeação a consul e responsável pelos negócios do Império britânico na República Dominicana. Nesse cargo, destacou-se pelo seu empenho pelos interesses comerciais britânicos e pela sua atuação como mediador no alcance da paz com o imperador haitiano Faustin Soulouque (1782-1867).

Com a experiência e o renome alcançado no Caribe, Robert Schomburgk foi nomeado, em 1856, a Consul Geral da Inglaterra em Bangkok.  Ali atuou até 1864, quando foi obrigado a retornar à Europa por razões de saúde, vindo a falecer no ano seguinte em Berlin-Schöneberg.

Schomburgk foi, assim, a personalidade de cientista e diplomata que mais conhecimentos e experiência possuia de países americanos na capital do Sião. Exerceu ali um papel sob vários aspectos comparável ao de Alfred Russel Wallace (1823-1913), naturalista que, após as suas pesquisas na Amazônia, atuou na Indonésia e no arquipélago malaio. Schomburgk, porém, destaca-se pelo papel diplomático e político que desempenhou. (http://www.akademie-brasil-europa.org/Materiais-abe-93.htm)

Ainda foi pouco estudada a atuação de Schomburgk em Bangkok e, em consequência, os conhecimentos que transmitiu e os elos que estabeleceu no Sião com o mundo das Índias Ocidentais e do Norte da América do Sul por êle tão bem conhecido.

Os elos do reino do Sião com o continente americano devem ser considerados com relação aos diferentes contextos e perspectivas determinados pela história colonial e pelas esferas de interesses das potências européias. Não se pode esquecer que à sua época havia em Bangkok uma comunidade de ascendência portuguesa de antigas origens. Os franceses, que dominavam a estrutura eclesiástica, esta marcada pelas tensões entre a ação do Vicariato Apostólico relativamente ao Padroado Português, garantiam contatos estreitos com a França e com outras regiões do mundo colonial francês. Schomburgk marcava a presença alemã e inglêsa, estabelecia pontes com a esfera britânica e os interesses britânicos no Caribe e no Norte da América do Sul. A sua vida no Sião coincidiu com o crescente significado do idioma inglês e do interesse pela América do Norte na Côrte. Surge, assim, como um vulto na história da internacionalização da ciência nas suas relações com a diplomacia.

Internacionalização dos conhecimentos no reinado de Mongkut (Rama IV) (1804-1869)

No estudo de processos internacionalizadores e de questões deles resultantes quanto à manutenção de identidade cultural e mesmo de independência de nações, o rei Mongkut ou Rama IV do Sião merece ser lembrado de forma especial.

Tendo sido monge, estava profundamente imbuído da cultura tradicional do Sião a partir de seus fundamentos religiosos e filosóficos. Os seus conhecimentos da história, em particular do passado mais remoto da antiga Ayutthaya manifestaram-se não apenas em estudos, mas sem em medidas práticas que procuravam garantir a continuidade cultural do Sião na nova fase de sua centralização em Bangkok. Foi, assim, um dos principais construtores de uma país de fisionomia própria, que manteve e mesmo alcançou por essa imagem o reconhecimento e o respeito de nações européias.

A manutenção da continuidade e mesmo a contrução histórica de um país de fisionomia cultural própria paralelamente à internacionalização de conhecimentos e o fomento do cosmopolitismo no Sião surge como um dos grandes feitos do reinado de Mongkut. Apesar de enraizado na cultura tradicional, esse rei dominou várias línguas e apoiou o ensino do inglês aos jovens siameses, em particular de círculos da Côrte. Manteve contato tanto com o Vicariato Apostólico e os seus religiosos franceses como também e sobretudo com missionários protestantes americanos. Admirava, porém, antes aspectos práticos do modo de vida ocidental cristã, mantendo distância e mesmo não aceitando a fé cristã na sua referência histórica à encarnação do Filho de Deus em determinada região do mundo e em determinado período da história.

Através de sua admiração pelos aspectos práticos de condução de vida, de inovações técnicas e de amparo medicinal transmitidos pelos missionários, sobretudo protestantes americanos, Mongkut  adquiriu conhecimentos do modo de pensar, de intuitos subjacentes à ação dos missionários e, assim, do edifício de concepções e mesmo de ideologia do Ocidente, em particular dos Estados Unidos.

Relato de um pintor alemão sôbre o Sião de meados do século XIX

Bangkok
Um documento significativo para os estudos culturais dessa época é o capítulo dedicado a Bangkok do relato de viagem ao redor do mundo de Eduard Hildebrandt, viajante que, com recomendação de A. von Humboldt, foi recebido por Schomburgk, que o acompanhou na visita de Bangkok e em cerimônias da Côrte. (Ernst Kossak, Professor Eduard Hildebrandt's Reise um die Erde nach seinen Tagebüchern und mündlichen Berichten erzählt. Berlin: Otto Janke 6a. ed. 1879, págs. 154-156)

Segundo as próprias palavras do relato, o objetivo da viagem decorria da vontade de um pintor de paisagens de percorrer o mundo para conhecer os fenômenos produzidos pelo mar, o ar e os continentes nas diferentes regiões. Para isso, tinha-se preparado através da leitura, em especial de publicações inglesas. Possuia considerável experiência de viagens inclusive no mundo de língua portuguesa. Havia estado em 1844/45 na América do Sul e do Norte, de 1847 a 1849 na Madeira e nas ilhas Canárias. Visitara a Espanha e Portugal e tinha estado na Itália, no Egito, na Síria, na Turquia e na Grécia entre 1851 e 1852. Em 1856, tinha feito uma viagem ao Cabo Norte. (op.cit. I, 1)

Os registros do diário de Hildebrandt na versão de Kossak ganha em interesse pelo fato do autor não esconder a parcialidade de seu olhar europeu, emprestando particular atenção ao insólito de situações decorrentes de uma situação de labilidade, marcada ambivalentemente por procura de afirmação e assimilação de impulsos estrangeiros. Na sua atitude, deixou registros que expressam o eurocentrismo da sua visão em observações irônicas, arrogantes, críticas e mal-humoradas a serviço de um humor próprio a seu contexto cultural.

Como pintor, tinha facilidade de perceber quadros singulares, característicos ou insólitos. O seu relato é, assim, antes um documento do europeu na história de processos internacionalizadores no mundo.

Hildebrandt registra Bangkok como uma cidade ainda em estágio primário de internacionalização, na qual os principais artigos de importação eram fósforos, meias de lã, linhas, pó para limpar dentes, chocolate e graxa de sapatos, artigos de luxo, difíceis de serem encontrados (op.cit. 159). Ao deixar Bangkok, fêz "três cruzes" ao ver desaparecer no horizonte a ponta aguda do pagode Waht; ao mesmo tempo, porém, doía-lhe o coração em ter que deixar atrás tantas pessoas amáveis e encantadoras que viviam naquele "terreiro pantanoso", sob céu escaldante. (op.cit. 160)

Aspectos questionáveis da realidade siamesa: roubos, corrupção, formação de dançarinas

O diário de Hildebrandt na versão de Kossak oferece impressões a respeito de locais procurados pelos visitantes de Bangkok em meados do século XIX. Descreve uma excursão que fêz com alguns conhecidos aos templos mais notáveis da cidade. Entre êles, descreve o What, visitando o templo com a imagem monumental Buda recostado. Para êle, a Europa possuia uma imagem falsa desses templos, muito menores do que esperados e, por detrás do dourado, o material empregado era de simples alvenaria. Seria um exagêro compará-los com os colossos do antigo Egito. (op.cit.149)

Num domingo, juntamente com um alemão residente na cidade e três outras pessoas, foi convidado a um passeio aquático ao Pratlat. Na viagem, passaram pelo presídio policial, tomando conhecimento do alto número de roubos que ocorriam em Bangkok, sendo que os objetos jamais eram recuperados, permanecendo com os policiais. (op.cit. 150)

O Pratlat visitado, onde viviam ca. de 10.000 habitantes, era uma fortaleza que, porém, não resistiria a qualquer ataque de forças européias; visitou ali a casa do governador militar, que possuia acima de 100 mulheres. Essas mulheres, obtidas com a permissão de seus pais ou conquistadas com violência na idade de 10 a 13 anos, eram instruídas na casa do Governador para se tornarem dançarinas e instrumentistas, uma vez que o nobre militar mantinha um teatro. Não seria difícil conseguir mulheres no Sião. Meninas a partir de seus dez anos podiam ser compradas, e o preço variava entre 100 e 200 dólares. Seria comum devolvê-las à família após algum tempo.

"Dem Vernehmen nach ist der Gouverneur von Pratlat sehr stark verheirathet und rekrutirt unaufhörlich unter der weiblichen Bevölkerung des Ortes für seinen Harem. Die Zahl seiner Frauen soll über hundert betragen. Die ihren Eltern mit Güte oder mit Gewalt entführten Mädchen werden in dem Alter von zehn bis dreizehn Jahren in dem Hause des Gouverneurs zu Tänzerinnen und Orchestermitgliedern ausgebildet, denn der edle Kriegsmann unterhält auch ein eigenes Theater." (op.cit. 150)

Essas referências de Hildebrandt sobre os aspectos questionáveis do recrutamento de jovens que passavam a atuar em teatro mantido particularmente por autoridade influente no Sião assume particular interesse por oferecerem dados complementares à descrição oferecida pelo viajante Josef Lehnert, da mesma época ((J. Lehnert, Um die Erde. Reiseskizzen II, Viena: Alfred Hölder 1878, 713 ss.). (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Musica-na-Tailandia.html)


Visita ao mestre-capela real e descrição da música siamesa

A convite do consul francês, o pintor alemão fêz uma visita ao mestre-capela real do Sião. Este é descrito como sendo um senhor de idade, que se deixava tratar com a mesma deferência que o rei. Os membros da capela eram mulheres de idade e jovens moças, sendo o principal instrumento descrito como "uma espécie de harmônica".

As observações de Hildebrandt sobre a música siamesa não deixam de ter interesse para uma história da descrição organológica no encontro de culturas. Também aqui a descrição denota um objetivo de divertir o leitor, acentuando situações ridículas. Assim, um atabale construído pelo mestre-capela pareceu ao observador ser uma grande lata de sardinhas, e o interesse desse regente teria sido antes despertado pelos seus cordões de sapatos.

"Wir fanden einen ältlichen Herrn, der sich von seinen Hausgenossen dieselben Ehren, wie die Könige des Landes, erweisen ließ. Die eben anwesenden Mitglieder der Capelle bestanden aus alten Weibern und jungen Mädchen, das Hauptinstrument war eine Art Harmonika, deren metallene Schalen - ich zählte neunzehn - mit zwei Klöppeln geschlagen werden und innerhalb eines runden fußhohen Korbes aufgestellt sind, in dessen Mitte der Spieler hockt. In einer ähnlich construirten Harmonika wird das klingende Princip durch geglättete Bambusschite gebildet. Die Blasinstrumente beschränkten sich auf eine mißtönende Rohrpfeife. Der Chef der Capelle, über dessen Compositionstalent ich mir kein Urtheil anmaßen darf, schien mit der Vervollkommnung der landesüblichen Orchestration angelegentlich beschäftigt zu sein. Er zeigte uns eine von ihm construirte Pauke, in der ich eine große Sardinenbüchse wieder zu erkennen glaubte. Bei dem engen künstlerischen Gesichtskreis, den ihm die siamesische Musik gestattete, ging der Herr Capellmeister sehr bald auf mein Schuhzeug über und erkundigte sich ausführlich nach den Preisen und der Dauerhaftigkeit." (op.cit. 152)

Cerimonial e diplomacia em situações de manutenção de tradições e internacionalização

A descrição de um jantar de gala nos jardins do palácio real oferecido pelo rei Mongkut pela comemoração do Ano Novo - do ano do porco ao ano do cão -, festejado no dia 20 de março, oferece um testemunho do significado emprestado às tradições e, ao mesmo tempo, da introdução de modos de vida do Ocidente na Côrte do Sião a partir das impressões obtidas pelos representantes europeus.

Esses diplomatas notaram, de princípio, as singularidades dos convites. Esses eram manuscritos, escritos pelo comandante das tropas reais, personalidade de experiência com a cultura européia e que era a mão direita do soberano. Os diplomatas deviam apresentar-se em full dress, ou seja, em traje preto, gravata branca e condecorações. De acordo com o uso da Côrte, convidava-se para o ato todas as personalidades de europeus de distinção que viviam em Bangkok, assim como os altos funcionários de Estado que se encontravam em postos de direção de órgãos públicos.

Entre os convidados encontravam-se um irmão mais velho do rei, os conselheiros da Coroa e aqueles homens de Estado que haviam estado como embaixadores na Europa. Apesar da formalidade exigida do traje, todos deviam estar descalços à espera do rei. Segundo o uso, este fazia-se esperar, sendo que em situações particularmente solenes, como a descrita, os representantes europeus precisavam esperar mais tempo do que de costume, ao redor de duas horas.

Singularidades de usos e costumes a serviço de encenações

O relato permite que se reconheça a atenção dada à encenação na entrada do soberano: acompanhado de grande séquito, o seu traje era mais rico do que em audiências. Usava, nesse primeiro dia do ano, antigos chinelos de palha leves, tendo à cintura um longo sabre de ouro que arrastava pelo chão. Apesar do sol já ter-se posto, o rei caminhava sob um parasol de grandes dimensões, de seda vermelha, ornamentado com fios de ouro. A seu lado, e meio à sua frente, iam, ajoelhados, dois guardas pessoais, com cuspideiras douradas nas mãos. Esses objetos eram necessários, pois o rei mastigava constantemente ervas.

O autor registra a estranheza que causava o hábito do cuspir e escarrar em público em certos países do Oriente. No caso da cerimônia vivenciada na Côrte do Sião, descreve que, apesar dos esforços dos funcionários que, arrastando-se, tentavam apanhar os escarros reais com os vasos, as cuspidas em geral caiam nas suas faces, uma vez que as escarradeiras, de forma bojuda, possuiam estreitas aberturas. Atrás desses rastejava-se uma pequena tropa de lacaios com doses de chá, pratos com bolos, além de cigarros e isqueiros.

Os descendentes do rei encontraram-se presentes nessa ocasião em menor número do que em geral acontecia, registrando-se a presença de apenas 14 de seus filhos mais prediletos. Apesar de ricamente trajados e pintados, esses jovens mexiam com curiosidade nos bolsos dos convidados, esperando presentes; não os obtendo, tratavam os convidados com desprêzo.Uma outra singularidade registrada pelos europeus foi o do uso do fumo pelas crianças. Assim, um dos pequenos príncipes, apesar da tenra idade, tragava em charuto de grandes dimensões durante a cerimônia.

Aproximando-se dos convidados, o rei dirigia a cada um palavras amáveis mas incompreensíveis. O seu irmão e as nobilidades da terra mantinham-se deitados no chão, estando este forrado com esteiras novas. Somente os europeus e aqueles que haviam sido elevados a cargos de maior importância não se prostavam.

Internacionalização: música de banda e costumes inglêses na Côrte

Um dos aspectos da cerimônia real de Ano Novo vivenciada pelos europeus que mais testemunhava a internacionalização e o cosmopolitismo no Sião dizia respeito à prática musical.

Já nessa época, a música de banda de cunho ocidental acompanhava o cortejo real e a recepção de convidados. O autor do relato descreve como o rei, caminhando entre as filas constituídas pela numerosa guarda pessoal, procedia ao som de uma banda de música regida por um mestre inglês. Assim, foi recebido com o "God save the Queen", usado, como em outras regiões do mundo, como hino real do Sião.

Os músicos europeus que tomavam parte da banda eram conhecidos pelas autoridades consulares, sendo que o próprio Sir Robert Schomburgk conhecia pessoalmente um trombonista que ali tocava, e que considerava como sendo um instrumentista de grandes aptidões. (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Musica-na-Tailandia.html)

Interferência de costumes tradicionais e cosmopolitas à mesa

A interferência de costumes tradicionais e internacionais fêz-se sentir sobretudo à ceia. Os convidados foram distribuidos em três mesas, dispostas em cenário de feérica iluminação, abaixo de centenas de lanternas, emolduradas pelos edifícios palaciais iluminados. Antes de tomar lugar, o rei, como gesto de deferência, passou a servir êle próprio os convidados.

A mesa estava posta a modo inglês, apresentando grande quantidade de garrafas de bebidas européias de todo o tipo, entre elas Bordeaux, Brandy, Champagne e Sherry. Entretanto, as refeições eram tão intensamente condimentadas que os europeus pouco as podiam saborear. Do corte dos assados ocupava-se o Marechal General, que havia servido como cozinheiro a bordo de vapores da mala postal e na armada francesa, antes de passar a auxiliar a formação do exército siamês.

Em intervalos de oito ou dez minutos, o rei chegava-se à mesa dos europeus e servia Cognac aos convidados indiferentemente em copos de água ou de vinho, sendo que os convidados deviam corresponder a seus toasts, ainda que incompreensíveis. Apesar de seus hábitos europeus, o rei fazia, com os dedos, bolinhos de arroz, carne e môlho, do tamanho de um ôvo, colocando-os na boca dos convidados. Também Sir Robert Schomburgk teve que se submeter a esse gesto patriarcal de alimentação dos hóspedes pelo soberano.

Defronte à mesa havia um palco onde as bailarinas do rei se apresentavam, formando um contraste e representando a tradição perante a banda de música.

"Der Tafel gegenüber war eine Bühne errichtet, auf der die Ballerinen des Königs ihre Pas und Posen aufführten. Sobald wir abgegessen hatten, hieß Sr. Majestät uns Cigarren anzünden und geleitete uns in allerhöchster Person auf die Bretter, um die nähere Bekanntschaft der jungen Künstlerinnen zu machen. Außer prächtigen, meistens knapp anliegenden Gewändern trugen sie obeliskenartige hohe Mützen und mehrzöllige, lange, rückwärts gekrümmte Nägel aus polirtem Silber. Der König nahm die den Tänzerinnen von mir ertheilten Lobsprüche gnüdig auf, schmunzelte wohlgefällig und gab mir, wie bei der ersten Audienz, einen Puff in die Seite" (op.cit. 155)

Após o jantar, o rei fêz que se distribuissem cigarros e acompanhou-os pessoalmente ao tablado para apresentar as jovens artistas a Schomburgk e seus acompanhantes. As artistas usavam trajes tradicionais, registrando os europeus os chapéus em forma de obelisco e as grandes unhas postiças de prata, encurvadas para trás.

Devido à diferença de costumes e à mistura de formas tradicionais e internacionais de procedimento e de etiqueta, os diplomatas tinham que se comunicar através de gestos anteriormente combinados para não incorrerem em ofensas ou ferir susceptibilidades. Assim, como sinal de partida, Sir Robert Schomburgk havia combinado com os seus acompanhantes o gesto de levar o relógio de bolso aos ouvitos. Puderam, assim, abandonar o recinto até mesmo antes do rei e do seu séquito terem jantado, às 9 horas da noite. O uso do aperto de mãos já estava introduzido, de modo que as despedidas foram feitas com muitos afagos, ao ruído das salvas.

Inventividade no jôgo entre tradição e internacionalização

O relato menciona a atenção que o rei Mongkut dedicava ao cerimonial. Era uma de suas predileções conceber solenidades e mesmo criar novas expressões protocolares e de etiqueta, variando fantasiosamente formas tradicionais e aquelas assimiladas do Ocidente.

No meio diplomático e dos europeus que viviam em Bangkok, era tido como uma grande honra jantar na sua presença. Essa honra era ainda maior quando êle próprio sentava-se à mesa do hóspede, participando da sua refeição. Esse gesto, porém, acontecia apenas em situações de particular bom humor, quando então costumava conceder ao hóspede a Ordem do Elefante de quarta classe.

Adaptação de missionários protestantes norte-americanos ao meio

O relato da viagem de E. Hildebrandt documenta o significado da ação de missionários norte-americanos em processos internacionalizadores no Sião. Ao mesmo tempo, porém, registra o quanto as atividades missionárias surgiam como estranhas aos olhos dos visitantes europeus. Obrigados à adaptação ao meio, os missionários utilizavam-se de atitudes insólitas, criando situações e hábitos que surgiam como ridículos aos olhos de visitantes europeus.

Assim, o autor do relato salienta que, tendo-se dedicado ao estudo da ação dos missionários, ganhara a convicção que os países cristãos fariam melhor em utilizar os seus capitais para a superação da miséria das viúvas e dos órfãos dos próprios países do que dispendê-los na suposta instrução de outros povos.

Assistindo a um culto desses missionários protestantes americanos, não pode conter o riso. A comunidade era constituída por uma costureira e quatro kulis sino-siameses. O missionário, vestido de forma inexpressiva com um casaco branco, marcava cada terceira palavra com um golpe sôbre a mesa, e isso parecia muito contribuir à edificação dos fiéis.

Um outro importante fator na ação desses missionários e igualmente insólito era a prática do canto. Todos os cinco membros da comunidade precisavam comparecer cinco vezes ao dia para cantar os corais congregacionais, acompanhados por uma sanfona tocada pela mulher do missionário. O barulho resultante não podia ser descrito. Entretanto, os nativos pareciam apreciá-lo. Segundo o autor, teriam uma tendência obscura por expressões vitais de cunho musical e consideracam as aulas dos missionários como uma espécie de conservatório de canto. (op.cit. 159)

Segundo esse relato, a música exercia uma função singular no processo internacionalizador. Ao mesmo tempo que transmitia melodias tonais do repertório hínico de uso nos Estados Unidos, muitas delas de proveniência européia, em particular da Grã-Bretanha, harmonizadas de forma convencional no acompanhamento de um acordeão, mal tocado por parte de esposas de missionários, ao mesmo tempo produziam um resultado sonoro insólito pelo volume e desafinação, o que parecia, aos ouvidos do europeu, comparável a expressões musicais da tradição siamesa.

A função internacionalizadora dos missionários expressava-se também na introdução do domingo como dia de descanso, o que, naturalmente, era bem visto pelos habitantes.  O Budismo não conhecia um dia livre, e mesmo que os seus seguidores não se desgastassem demais com o trabalho, era para êles uma inovação gratificante a introdução de um dia livre na semana, no qual os próprios céus davam ordens de sua guarda. (loc.cit.)

Grupo de trabalho sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo



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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Entre fascinação e confronto com contrastes nas Américas e no Sudeste da Ásia. O cientista-diplomata Robert Hermann Schomburgk (1804-1865) no reino de Mongkut/Rama IV (1804-1869) segundo registros de um pintor alemão". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 135/6 (2012:1). http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Schomburgk-em-Bangkok.html





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