Vietnam-Brasil na Etnomusicologia. Revista BRASIL-EUROPA 135/12. Bispo, A.A. (Ed.). Academia Brasil-Europa e ISMPS





Revista

BRASIL-EUROPA

Correspondência Euro-Brasileira©

 

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Fotos A. A. Bispo
©Arquivo A.B.E.

 

Revista Brasil-Europa - Correspondência Euro-Brasileira 135/12 (2012:1)
Prof. Dr. A.A.Bispo, Dr. H. Hülskath (editores) e Conselho Científico
da
Organização Brasil-Europa de estudos teóricos de processos inter- e transculturais e estudos culturais nas relações internacionais (reg. 1968)
- Academia Brasil-Europa -
de Ciência da Cultura e da Ciência

e institutos integrados

© 1989 by ISMPS e.V. © Internet-edição 1998 e anos seguintes © 2012 by ISMPS e.V. Todos os direitos reservados
ISSN 1866-203X - urn:nbn:de:0161-2008020501

Doc. N° 2853



Vietnam-Brasil na Etnomusicologia e no estudo de processos músico-culturais em contextos globais
Campo de tensões: o internacional na ideologia e a análise de decorrências coloniais


Ciclo de estudos Vietnam/Brasil da A.B.E..40 anos da introdução da Etnomusicologia no Brasil. Teatro Municipal e Museu Histórico de Ho-Chi-Minh

 
A atenção dada atualmente por organizações e órgãos de intercâmbio científico e fomento da pesquisa à internacionalização diz respeito, naturalmente, também à musicologia.

A cooperação internacional, porém, já marca há muito essa área disciplinar, bastando aqui lembrar do trabalho de sociedades e congressos internacionais, o que se reflete também em publicações especializadas.

Também não é recente o estudo de culturas musicais de contextos e países diversos daqueles do pesquisador.

Já essas indicações sumárias permitem que se reconheça o risco de superficialidade e a necessidade de reflexões mais profundas e diferenciadas quanto ao singular interesse atual pela internacionalização.

A retomada desse conceito, ainda que bem intencionada, se insuficientemente refletida, pode trazer até mesmo um retrocesso ao desenvolvimento teórico-cultural.

A A.B.E. propugna, pelo seu escopo, a condução de estudos culturais em estreito relacionamento com o estudo da própria ciência. Também na área da pesquisa musicológica, a internacionalização de rêdes de pesquisadores não é suficiente; deve ser acompanhada por análises de contextos internacionais do objeto de estudos e, ao mesmo tempo, da inserção dessas rêdes, de seus membros e de correntes de pensamento em processos culturais, também relativamente àquele que se dedica às análises.

Em algumas áreas disciplinares, em particular e justamente naquela da Etnomusicologia, marcada que é de forma tão acentuada determinada por rêdes, grupos e "communities", a análise dos próprios envolvidos assume atualidade e mesmo premência, apresentando-se como pressuposto para o desenvolvimento consciente da pesquisa.

Necessária reflexão a respeito do Internacional e de processos internacionalizadores

Há, na discussão relativa a questões relacionadas com o intuito internacionalizador um problema que imediatamente se impõe: o das concepções relativas ao internacional, à internacionalidade e à internacionalização.

Sobretudo em sistemas e em círculos marcados pelo Marxismo, o Internacional assume um significado determinado ideologicamente que necessita ser levado em consideração na cooperação internacional se não se deseja cair em mal-entendidos na comunicação e mesmo nos enfoques e nas interpretações.

Os problemas que se levantam e as mudanças que se fazem necessárias e se operam na pesquisa com a mudança de sistemas políticos foi discutido pelo ISMPS por ocasião da queda do muro de Berlim com relação a países lusófonos da África particularmente relacionados com a antiga República Democrática Alemã. (http://www.revista.akademie-brasil-europa.org/CM08-01.htm) As reflexões da época, porém, exigem contínuas atualizações e reconsiderações a partir de diferentes situações e contextos.

Com relação ao Sudeste da Ásia, foco das atenções em 2011 por motivo dos 500 anos da tomada de Malaca por Afonso de Albuquerque, essa discussão surge como de particular relevância devido ao Vietnam com o seu sistema político de orientação marxista. Esse fato determina concepções do Internacional, assim como perspectivas e interpretações históricas relativas a processos internacionais e mesmo concepções de solidariedade internacional. Os procedimentos e a produção científica assim fundamentados fazem parte da história cultural e do presente, não podendo ser ignorados nos intuitos voltados ao fomento da internacionalização da ciência, no caso da musicologia.


Local de reflexões: Museu Nacional de Ho-Chi-Min - 240 anos do movimento Tây Son

Oportunidade para a consideração da interpretação de processos históricos e mesmo construção da história a partir de concepções político-ideológicas de movimentos internacionais deu-se com uma exposição realizada no Museu Nacional Histórico de Ho-Chi-Min/Saigon pela passagem dos 240 anos do movimento Tây Son.

Essa exposição, de realização difícil devido à situação insuficiente da documento e dàs condições criadas pela história recente conturbada do país, foi possibilitada através de materiais provenientes de diferentes museus e de coleções particulares. O seu objetivo foi o de apresentar um panorama aproximativo de um passado que é valorizado, sob a perspectiva do atual sistema político do Vietnam, decantado como sendo obra extraordinária de uma dinastia heróica, digna de ser venerada pelas gerações mais jovens.

Trata-se aqui do período de 32 anos (1771-1802) marcado pelo movimento de camponeses Tây Son. A esse movimento é conferido um significado de especial relevância numa compreensão de uma história progressista no contexto global de processos de validade internacional. A partir desse enfoque, outras épocas da história do Vietnam surgem naturalmente sob luz negativa. Este é o caso da época sob a dinastia Nguyên, que, segundo os organizadores da exposição, teria levado à destruição de documentos dessa época. heróica.

Assim, a interpretação marxista da história, apesar de feita a partir de esparsos materiais documentais, determina a visão de mais de 2000 anos de história vietnamesa. Essa longa história está representada na rica coleção de objetos conservados no museu.

Entre esses objetos encontram-se instrumentos musicais, entre êles alguns exemplares de bronze, de percussão, como um Trung-Bóng de ca. de 2000 anos, de incalculável valor para o patrimônio cultural de toda a Humanidade.

A consideração dos objetos de significado organológico no Museu de Ho-Chi-Min motivaram reflexões relativas ao significado do estudo da cultura musical no Vietnam sob a perspectiva da pesquisa conduzida no mundo de língua portuguesa e das questões teóricas que levantam.

O estudo da cultura musical do Vietnam na Etnomusicologia em língua portuguesa

A cultura musical do Vietnam foi tratada pela primeira vez no Brasil no âmbito dos cursos de Etnomusicologia da Faculdade de Música do Instituto Musical de São Paulo, em 1972. Os estudos se basearam sobretudo em texto de Tran Van Khê, em tradução portuguesa de Nuno Gonçalves. (A música vietnamiana", Enciclopédia da Plêiade, A Música: das Origens à Actualidade I, ed. R. Manuel, Minho:  Arcadia 1965, 341-347). Esses trabalhos contribuiram à divulgação da obra e do nome de Tran Van Khê no Brasil que, em 1974, realizou uma conferência em São Paulo.

Se o estudo de culturas musicais da Índia surgia como de fundamental importância devido aos antigos elos de Goa com o mundo de língua portuguesa, se o estudo musicológico da China era reconhecido como de alto significado devido a Macau e pela existência de expressiva comunidade de chineses em São Paulo, a consideração do Vietnam se justificava sobretudo pelo fato de representar relações e interferências dessas duas esferas.

Esse fato, salientado de início no trabalho de Tran Van Khê que serviu de base aos estudos, traz à consciência a importância da região para estudos culturais voltados privilegiadamente a encontros, interrelações e a processos culturais caracterizados por momentos de coexistência e graduais transformações no sentido de um predomínio maior de referenciações culturais.

Segundo Tran Van Khê, a própria história da música vietnamesa poderia ser estudada segundo períodos determinados pelo maior ou menor pêso dessas duas esferas músico-culturais: do século X ao início do XV teria havido uma predominância do elemento indiano; do século XV a fins do XVIII teria aumentado a preponderância chinesa devido ao fato de músicos locais terem entrado em contato com escolas chinesas, e, do século XIX às vésperas da Segunda Guerra Mundial ,teria a música vietnamesa "afirmado a sua originalidade", apesar da influência ocidental.

Constata-se, nessa periodização, uma determinada visão do desenvolvimento histórico, percebendo-se critérios de interpretação histórica e mesmo valorativos dirigidos a uma afirmação de originalidade no decorrer do tempo e que implica em atitude crítica relativa a internacionalizações através de influências ocidentais.

A consideração do Vietnam a partir de enfoques do mundo de língua portuguesa, porém, trouxe à consciência a necessidade de reflexões quanto a esse posicionamento e a interpretação histórica respectiva. Tanto relativamente à Índia como à China, o pesquisador português e brasileiro não podia deixar de considerar a documentação histórica relativa a séculos de contatos, e, em particular, a história e o presente de centros marcados pelo contato com o Ocidente. O mesmo, assim, deveria valer para uma região intermediária ou mediadora entre as duas grandes esferas, no caso a Indochina.

Exigência de consideração de fontes históricas para a auto-refletividade

A perspectiva determinada pelo ponto de vista própria de complexos culturais do mundo de língua portuguesa exige a consideração de fontes históricas em grande parte relacionadas com a história missionária. Trata-se, assim, de considerar a história músico-cultural da região nas suas inserções em processos de transformação cultural globais, no qual a própria perspectivação do decorrer histórico dirigida a uma afirmação de originalidade passa a representar apenas um momento, êle próprio apto a ser objeto da pesquisa.

Essa visão determinada pelos estudos brasileiros no âmbito da Etnomusicologia teve consequências para a discussão na Europa. A diferença entre as perspectivas desenvolvidas no Brasil - não apenas relativamente ao Vietnam - e aquelas de determinados círculos estabelecidos dessa disciplina na Europa e nos Estados Unidos não poderia deixar de levar a discussões, tensões e mesmo conflitos. Aos poucos, porém, conseguiu-se difundir e implantar em muitos casos um desenvolvimento que leva a sensíveis transformações disciplinares e mesmo da compreensão da musicologia. O objetivo do I.S.M.P.S., na linha de desenvolvimento iniciado no Brasil, passou a ser o estabelecimento não apenas de uma Etnomusicologia de orientação cultural, mas sim de uma musicologia direcionada a estudos de processos culturais em contextos globais.

A posição intermédia da área determinada pelo contato e interações de processos históricos indianos e chineses é de particular relevância sob enfoques globais. A história das relações do Ocidente com a China e com a Índia revela, apesar de sua inserção em contextos mais amplos, significativas diferenças. Essas diferenças manifestam-se da forma mais documentada na história da ação missionária nos dois contextos. A ação de religiosos europeus na China exigiu métodos outros daqueles que se fizeram necessários na Índia. Assim, o estudo dos processos postos em vigência com a ação dos portugueses em vastas áreas do Oriente exige a consideração diferenciada dos modos de procedimento e adaptação segundo exigências culturais locais.

O contexto regional em que se insere o atual Vietnam é de particular importância na história missionária nas suas relações com desenvolvimentos culturais e políticos da Europa. Pelo Vietnam passou Alexandre de Rhodes S.J., um dos principais vultos que marcou a história da predominância francesa a serviço da Propaganda Fide e o enfraquecimento do predomínio do Padroado Português na jurisdição eclesiástica e na ação missionária no Oriente. Tendo trabalhado na Cochinchina entre 1624 e 1627, assim como entre 1640 e 1645, adquiriu amplos conhecimentos da cultura e da língua nativa, criando um dicionário da língua vietnamesa para o português e o latim (Dictionarium Annamiticum Lusitanum et Latinum), com a primeira transcrição fonética do quôc-ngu, obra publicada pela Propaganda, em 1651. (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Universidade-Bangkok.html). O Vietnam surge, assim, no início da história vinculada à Sociedade de Missões Estrangeiras e à presença da França na região, o que, por fim, culminou com o regime colonial da Indochina Francesa no século XIX. (Vide http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Catedral-de-Saigon.html)


Teatro Municipal de Saigon (Ho-Chi-Minh)

Essas relações recíprocas de séculos com a Europa, em particular com a França, não podem deixar de ser consideradas na pesquisa musicológica voltada a processos culturais em contextos globais. Elas não representaram apenas transplantações passageiras, sem consequências para a vida cultural, em particular no período colonial. Elas implicaram em mecanismos de mudanças culturais de consequências no desenvolvimento músico-cultural e que não podem deixar de ser considerados. Elas marcaram sobretudo a vida musical nas grandes cidades e o ensino, e essa história da música vietnamesa não pode ser ignorada pela pesquisa.

Basta que o pesquisador se confronte com o teatro municipal de Saigon para que se conscientize que estruturas, tendências e mecanismos culturais implantados pela missão e pela colonização não podem ser apagados. Esse edifício, construído em 1897 é uma das mais significativas obras de arquitetura do período colonial francês da Indochina e relevante para estudos da arquitetura teatral de orientação cultural em contextos globais. A sua ornamentação, para além dos motivos mitológicos comuns a construções teatrais, apresenta representações das estações do ano em estilo art nouveau.


Elos da pesquisa com o universo cultural francês e ideais de originalidade

Tran Van Khê, que defendeu tese na Sorbonne, em 1958, tornou-se conhecido no Brasil por intermédio de Luís Heitor Correa de Azevedo, então em Paris. Tinha-se conhecimento, assim, da discussão levantada por aquele autor relativamente ao trabalho de Nguyen Dinh Lai ("Étude sur la musique sino-vietnamienne et les chants populaires du Viet Nam" no Bulletin de la Société des Études Indochinoises, nouvelle série XXXI/1, 1956). Sabia-se, no Brasil, dos estreitos elos existentes entre a pesquisa da cultura musical vietnamesa e a situação dos estudos indochineses em Paris.

O próprio artigo de Tran Van Khê que serviu de base aos estudos no Brasil incluia, na sua bibliografia, artigos publicados em obras francesas. Os mais antigos títulos considerados datavam de 1909 ("La musique indochinoise", Mercure musical et Bulletin français de la S.I.-M. III/9, 1907, 929-956), de 1912 ("Rapport sur une mission officielle d'étude musicale en Indochine", Internationales Archiv für Ethnographie XX, 1911, 123-151;165-188; 217-244; XXI, 59-65), de 1919 (Hoang Yen, La musique à Hué, Bulletin des Amis du Vieux Hué, jul-set. 1919, 233-381), e de 1972 (Ernest Lebris, "Musique annamite: Airs traditionells", Bulletin des Amis du Vieux Huê, 1922, 253-310; 1927, 137-148); um texto básico que lhe serviu como referência foi o da Enciclopédia da Música e do Dicionário do Conservatoire, de Lavignac (Gaston Knosp, "Histoire de la musique de l'Indochine", Encyclopédie de la Musique et le Dictionnaire du Conservatoire I, 3000-3146).

O próprio pesquisador, assim, pela sua formação e pela literatura utilizada, inseria-se no contexto privilegiado das relações entre o Vietnam e a França. Esses elos eram decorrentes do papel da França no seu Protetorado e remontavam à ainda mais remota influência exercida pelas atividades da Sociedade de Missões Estrangeiras de Paris a serviço da Propaganda Fide. Essas fontes do passado não deveriam ser apenas consideradas criticamente como referências insuficientes no caminho de uma verdadeira pesquisa da música a caminho da afirmação de sua originalidade, mas sim elas próprias como expressões de fases e desenvolvimentos históricos em contextos de relações globais.

Um estudo assim dirigido surge como de significado para a própria história da música do Ocidente. A presença de potências européias nas diferentes regiões da Ásia condicionaram a recepção de informações e o pêso dado a determinados países ou contextos culturais. A história dos conhecimentos e das pesquisas relativas à música das diferentes regiões vincula-se com a história político-cultural das várias nações européias. Devido às diferentes relações coloniais e político-internacionais, os países que se encontravam mais em foco na Grã-Bretanha eram outros do que aqueles aos quais as atenções da França mais se dirigiam.

Nesse intento de desenvolvimento de uma musicologia orientada a estudos de processos culturais em contextos globais e acompanhadas pela auto-crítica do pesquisador a respeito de seus próprios condicionamentos, o levantamento de fontes que auxiliam essa auto-refletividade tornou-se exigência fundamental.

Levada a efeito no âmbito dos trabalhos do I.S.M.P.S. e da A.B.E., fontes até então pouco ou não conhecidas possibilitaram a consideração do Vietnam em aulas do ciclo "Música no Encontro de Culturas" realizado em cooperação com o I.S.M.P.S. na Universidade de Colonia, a partir de 1997.

Passados 15 anos do início desse ciclo, alguns dos documentos então levantados e tratados merecem ser reconsiderados à luz das reflexões desenvolvidas em Saigon. 


Recepção de conhecimentos da música anamita na França

Significativo documento que testemunha a atenção a questões musicais do Vietnam na França de fins do século XIX e início do XX é um artigo publicado na coluna "Art d'Extrême-Orient" no semanário Journal des Voyages et des Aventures de Terre et de Mer", editado em Montmartre, Paris, em 1905. Essa publicação reunia em si os suplementos "Sur Terre et sur Mer", "Monde Pittoresque" e "Terre Illustrée". (Commandant Annet, "La Musique Annamite", Journal des Voyages et des Aventures de Terre et de Mer, 8 de janeiro de 1905, 117-118).

O autor - designado apenas como comandante Annet - demonstra, no seu texto, conhecimentos da cultura musical do Oriente. Inicia, assim, a sua argumentação salientando o significado da música para os orientais. Lembra, de entrada, que não apenas os ocidentais, mas sim também os asiáticos sempre haviam emprestado grande valor à música vocal e instrumental. No Oriente, esse significado chegava a tal ponto que a música era vista como um elemento essencial do bom govêrno e da felicidade dos povos.

O autor lembra que os antigos poetas anamitas haviam designado a música com termos encomiásticos como eco da sabedoria, mãe da virtude e expressão da união do céu com a terra. Entretanto, esse alto apreço pela música não significava que os anamitas fossem excepcionalmente dotados sob a perspectiva da música prática. Tratava-se antes de uma concepção abstrata, filosófica e relacionada com o edifício de noções do mundo. Assim, em contradição a esse alto apreço teórico, a prática musical surgia, para Annet, como uma atividade própria da vida de luxo das classes ricas, e somente as jovens de círculos elevados e alguns jovens de família estudavam e praticavam a música. Isso o faziam até a época do casamento. A partir daí, o cuidado das mulheres pelos filhos das mulheres e dos homens pelos negócios os impediam de dedicar-se à prática musical.

Annet não deixa de salientar que há referências a príncipes e influentes mandarins que nunca tinham deixado de cultivar a música. Cita o rei Dong-Kanh, entre outros, que teria sido bom executante de uma "espécie de cítara horizontal munida de um grande número de cordas e tocada com as unhas". Segundo as narrativas, Dong-Khanh, que temia cortar as suas unhas, muito longas como todo anamita que detinha o poder, fizera que lhe fossem feitas unhas postiças em prata, fixadas a seus dedos por pequenos anéis do mesmo metal.

O autor do texto salienta que os anamitas não faziam música ao acaso, ainda que assim se pudesse crer. Lembra que havia regras precisas e mesmo uma notação com sinais especiais. A ausência de semi-tons causava, porém, fatigante monotonia para o europeu que ouvia as suas composições musicais. Como Annet sublinha, a música anamita, como a chinesa, da qual segundo êle derivava, possuia para o europeu um certo cunho de doçura e de melancolia de estranha sedução.

Annet dedica particular atenção à descrição da orquestra anamita. A descreve como composta de uma grande variedade de instrumentos de cordas, de sôpro e percussão. Esses últimos, sobretudo, pareciam ter a grande preferência do povo; eram os gongos e os tam-tams de todas as dimensões, de címbalos de estranhas formas e de triângulos, guisos ou, mais simplesmente, de pedaços de madeira entrechocantes para acompanhar "toda a sequência de violinos, flautas, oboés e guitarras que formavam a parte sinfônica da orquestra indo-chinesa." Segundo Annet, havia oboés e os violinos muito similares aos europeus, salvo quanto ao fato de que as dimensões excessivas de alguns surgiam como desproporcionadas relativamente à exiguidade do corpo do instrumento, razão pela qual os "sons estridentes feriam o tímpano dos ouvidos daqueles pouco exercitados com esse barulho". Muitos desses instrumentos possuiam formas de tal modo bizarras que era difícil para o autor descrevê-los.

Annet menciona a existência desgrupos de músicos que não possuiam formação fixa; formados em bandos errantes, eram alugados para um determinado número de dias pelos mandarins e por pessoas de posses.

Uma das fotografias do texto registra um grupo de músicos ambulantes de Hanoi, exemplificando instrumentos e técnicas de execução.


Annet salienta não haver falta de ocasiões para a prática musical; os músicos apresentavam-se em recepções de mandarins, por ocasiões festivas de boa colheita, de perigos superados, do cessar da chuva ou da sêca, de um casamento ou de enterros.

Para os Mois, designados por Annet como "os selvagens do Annam", o conjunto instrumental é descrito como sendo muito rudimentar, constituido por tam-tams e gongs de diferentes tipos, tocados no acompanhamento do movimento coreográfico; para a execução da dança chamada de dança da guerra, utilizavam-se pedaços de bambus que eram entrechocados e acompanhados por gritos.

Uma das fotografias que acompanham o texto, designada como "un duo de cithàriste et de guitariste", demonstra a pratica musical em ambiente que denota elos com a vida social da época colonial. Entre os dois músicos e as duas crianças que os acompanham, em trajes tradicionais, vê-se uma mesa com garrafa e dois copos de bebida, vaso de flores e um guarda-sol branco.


Textos de significado para o estudo da visão do Vietnam na França

Esse texto relativo à música em revista dedicada à ampla difusão de informações sôbre regiões do mundo, se considerado com outras publicações de cunho de ilustração popular da época, ganha em significado para o estudo da recepção de conhecimentos sôbre a Indochina e da sua visão no Ocidente, em particular na França. Um exemplo a ser aqui mencionado é o capítulo sôbre a Indochina e Tonkin nos "Povos da Terra" da Biblioteca das Escolas e Famílias, cuja quinta edição foi publicada no mesmo ano de 1905 (Ch. Delon, Les Peuples de la Terre, Paris: Hachette, 1905, 132-134).

O leitor é, aqui, informado que, da imensa região da Indochina, submissa ao protetorado da França, somente os habitantes da Cambodja se aproximariam dos indianos pela etnia, língua, caráter e idéias. Quem falasse em cochinchinos, anamitas ou Tonkinois estava se referindo a chineses. Esse fato poderia ser reconhecido já na aparência física, nos costumes, na língua, nos usos, nas idéias, na administração e mesmo na religião. As suas qualidades e defeitos eram chineses: "Ces gens têtus, entichés de leurs vieilleries, défiants de l'étranger - excepté du Chinois, - ne manquent pas d'intelligence; ils sont rusés, flatteurs, fourbes, menteurs au delà du possible, peu surs en affaires. Avec cela, il faut leur reconnaitre la patience et la persistance, un certain gout pour l'étude, une bonté naturelle, et surtout l'amour de la famille: la vertu chinoise." (op.cit. 132)

Nessa caracterização sobretudo negativa dos chineses, os anamitas se diferenciariam por serem preguiçosos, ao contrário dos trabalhadores chineses. Esse característica seria devida também ao clima, marcado por calor húmido, abafante, de um país de baixadas húmidas, não saudáveis para os europeus. Essas condições tinham consequências político-coloniais, pois poucos europeus para lá iam, enquanto que os chineses, mais adaptados ao clima, avançavam. Haveria, assim, um aumento da influência cultural chinesa na Indochina. (loc.cit.) Para os franceses, os costumes dos anamitas, assim como daqueles de Tonkin e da Cochinchina, seriam muito similares aos chineses. O interesse francês era sobretudo o da moda, prestando-se particular atenção ao modo de vestir de homens e mulheres, das diferenças entre os trajes de classes mais privilegiadas, de funcionários, nobres e mandarins e aqueles dos trabalhadores mais simples. (loc.cit.)

A visão geral da Indochina fornecida por essa obra é a de uma imensa várzea, cujo litoral era marcado sobretudo por piratas:

"La Cochinchine n'est guère que l'immense delta du grande fleuve Mé-Kong, terre demi-noyée, coupée de branches de rivières et de canaux; le vrai Tonkin est le delta du fleuve Rouge, très peuplé et très cultivé, tout aussi muillé, mais un peu moins malsain que la Cochinchine, parce que la chaleur n'y est pas si forte; l'Annam accessible est une étroite bande de rivage; les parties montagneuses de ces pays sont, dans l'intérieur, couvertes de forêts, sans routes, presque inconnues et inabordables aux étrangers. Dans toutes ces régions de fleuves et de canaux, d'iles, de côtes, tous les transports, tous les voyages se font par eau; on ne voit que barques et navires; chaque famille a son batelet. Le paysan porte ses légumes au marché dans son bateau, la ménagère va faire ses provisions en bateau; et c'est en bateau aussi qu'on vole et qu'on pille... Le grand métier, le métier national des gens de la côte, en Annam et au Tonkin, c'est la piraterie, le brigandage de la mer." (op.cit. 133)

A luz dessa visão da Indochina na França pode-se compreender as dimensões do significado que uma construção como o Teatro Municipal de Saigon obtinha aos olhos das autoridades coloniais como símbolo do papel cultural e civilizacional francês perante a barbárie. Essa consciência evidencia-se ainda de forma mais expressiva no programa ornamental do palácio da administração colonial francesa, no coração de Saigon.


Grupo de estudos sob a direção de
Antonio Alexandre Bispo




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Indicação bibliográfica para citações e referências:
Bispo, A.A. "Vietnam-Brasil na Etnomusicologia e no estudo de processos músico-culturais em contextos globais. Campo de tensões: internacional na ideologia e a análise de decorrências coloniais.". Revista Brasil-Europa: Correspondência Euro-Brasileira 135/12 (2012:1). http://www.revista.brasil-europa.eu/135/Musica-no-Vietnam.html



  1. Observação: o texto aqui publicado oferece apenas um relato suscinto de trabalhos. Não tendo o cunho de estudo ou ensaio, não inclui aparato científico. O seu escopo deve ser considerado no contexto geral deste número da revista. Pede-se ao leitor que se oriente segundo o índice desta edição e o índice geral da revista (acesso acima). Pede-se ao leitor, sobretudo, que se oriente segundo os objetivos e a estrutura da Organização Brasil-Europa, visitando a página principal, de onde obterá uma visão geral e de onde poderá alcançar os demais ítens relativos à Academia Brasil-Europa de Ciência da Cultura e da Ciência (culturologia e sociologia da ciência), a seus institutos integrados de pesquisa e aos Centros de Estudos Culturais Brasil-Europa: http://www.brasil-europa.eu


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  3. Não deve ser confundida com outras instituições, publicações, iniciativas de fundações, academias de letras ou outras páginas da Internet que passaram a empregar designações similares.